JOÃO
GALIZZI
Retilíneo
em ciência e ética; paladino da melhor relação médico-paciente
João
Amílcar Salgado
João
Galizzi, Romeu Cançado e J. B. Greco estão definitivamente na história da
medicina brasileira como líderes dos discípulos que passaram, a partir do final
da década de 30, a
aplicar na clínica médica os princípios científicos de seu mestre, o bioquímico
Baeta Viana. Esta corrente representou
um salto de qualidade na assistência médica, não só em Minas mas no Brasil,
inclusive com a pioneira interiorização da tecnologia laboratorial
simplificada. Galizzi foi catedrático de
Clínica Propedêutica na Faculdade de Medicina da UFMG, onde suas lições de
Semiologia Médica, ministrada com o auxílio de seguidores fieis, formou
multiplicadores docentes e não-docentes, em sucessivas gerações, todos testemunhas de que nessa disciplina foi
recebida a estrutura nuclear de suas reconhecidas competências.
Essa
capacitação nuclear foi depois estudada na busca de critérios de avaliação
educacional para além da prova-de-múltipla-escolha - e que fossem coerentes com
a inovação educacional implantada em 1975. Daí surgiram os requisitos da
relação estudante-paciente efetiva e do conceito de realidade
curricular. De tudo isso se concluiu que o curso anual ministrado pela equipe
do professor João Galizzi foi a principal trincheira de qualidade que evitou a
derrocada completa do ensino de cinco anos, adotado de 1965 a 1975. Afinal se determinou que do período formal de
cinco anos resultava um sofrível currículo real de menos de dois anos.
Tais
estudos só foram feitos pela disponibilidade de subsídios coligidos por gente da equipe do professor João Galizzi.
Foi um grupo coeso que, acrescido de outros entusiastas, se constituiu em raro
aglomerado de clínicos interessados em pedagogia médica. Esse fato merece
ênfase, pois o ensino da medicina vinha sendo monopolizado por vários
especialistas, com notória ausência de internistas, o que não passou de grave
erro. No caso, sanitaristas, psiquiatras, legistas e pedagogos-não-médicos
cederam lugar a clínicos e cirurgiões, logo transformados em coordenadores do
processo de desenvolvimento curricular, entre 1972-85. Essa experiencia
influenciou toda a educação médica brasileira, sendo considerada uma das quatro
vanguardas internacionais no ensino pós-flexneriano.
Outra
característica marcante da equipe galizzeana foi o intercâmbio com centros de
ciência médica no país e principalmente estrangeiros. O deslocamento de seus integrantes teve a
peculiaridade multilateral de buscar indistintamente fontes inovadoras, no ensino, na pesquisa e na clínica, tais
como na Grã-Bretanha, França, Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Canadá, África
do Sul, países vizinhos da América do Sul, México e Cuba. Sou testemunha do
prazer inexcedível que um pai pode sentir, quando, no Hospital Royal Free de
Londres, nosso Galizzi ouviu as melhores referencias a João Galizzi Filho,
externadas por Sheila Sherlock, a maior hepatologista do mundo. Não foram
elogios de conveniência, pois seu filho retornou ao Brasil para ser o maior
hepatologista brasileiro. A propósito, lembro que o professor Derek P. Jewell
nos convidou para participar de uma reunião clínica. No final me perguntou como
era o ensino em nossa faculdade, pois já estava impressionado com os Galizzi,
pai e filho, e agora também, na discussão daquele caso, com mais dois: Luiz de Paula Castro e eu.
A
produção científica ligada a João Galizzi também é amplamente sabida. Em sua
Cadeira veio trabalhar o gastrenterologista alemão Rudolf Schindler, a maior
autoridade mundial em endoscopia digestiva alta e criador do gastroscópio
flexível. Em conseqüência, o grupo de cientistas que no Hospital das Clínicas
hoje pesquisa a úlcera péptica e doenças correlatas é líder no Brasil e
reconhecido internacionalmente. Por outro lado, foi em seu Serviço que se fez
estudo completo da primeira doente
descrita da doença de Chagas, reencontrada em 1961, o qual integra seleto
conjunto de contribuições ao conhecimento da patologia regional brasileira. Ao
mesmo tempo, um sonho de João Galizzi e de sua equipe deixou de ser realizado:
a redação daquele que seria o melhor livro de Semiologia Médica do país foi interrompida
nos capítulos iniciais. O perfeccionismo do mestre causou a suspensão do
projeto.
Demais,
no meio universitário brasileiro, João Galizzi foi por décadas respeitadíssima
referência no rigor da linguagem médica e na estrita observância ética, seja no
ensino e na pesquisa, seja na atenção clínica. Assim, este cavalheiresco
artífice da melhor relação médico-paciente, este campeão da compostura
profissional - além de co-fundador de associação de classe e de associação
especializada - foi o milagroso conciliador entre o ceticismo metódico derivado
de Baeta Viana e a mais permanente tradição hipocrática, sendo que desta
extraiu surpreendente e popular didática aforismática. Conciliação que, na devoção à música, se repetiu
entre Wagner e Bach, no que, aliás, foi honrosamente precedido por Schweitzer.
Finalmente
cumpre dizer que, por trás do varão clássico tão querido de estudantes e
colegas, sempre foi possível percebê-lo curioso de sua circunstância
existencial. Esta fez dele o homem culto incapaz de esconder o entrechoque da
ascendência luso-mineira com a herança greco-latina – ainda mais com a
obrigação de ser herói, ao lado de Aleijadinho, da cidade de Congonhas. Tal
inquietude fez também dele uma das influências decisivas na criação e no
enriquecimento do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, a última mas
não a menos importante das irradiações de sua invulgar personalidade.