João Amílcar Salgado

sábado, 24 de agosto de 2013

JOÃO GALIZZI
Retilíneo em ciência e ética; paladino da melhor relação médico-paciente

João Amílcar Salgado
João Galizzi, Romeu Cançado e J. B. Greco estão definitivamente na história da medicina brasileira como líderes dos discípulos que passaram, a partir do final da década de 30, a aplicar na clínica médica os princípios científicos de seu mestre, o bioquímico Baeta Viana.  Esta corrente representou um salto de qualidade na assistência médica, não só em Minas mas no Brasil, inclusive com a pioneira interiorização da tecnologia laboratorial simplificada.  Galizzi foi catedrático de Clínica Propedêutica na Faculdade de Medicina da UFMG, onde suas lições de Semiologia Médica, ministrada com o auxílio de seguidores fieis, formou multiplicadores docentes e não-docentes, em sucessivas gerações,  todos testemunhas de que nessa disciplina foi recebida a estrutura nuclear de suas reconhecidas competências.
Essa capacitação nuclear foi depois estudada na busca de critérios de avaliação educacional para além da prova-de-múltipla-escolha - e que fossem coerentes com a inovação educacional implantada em 1975. Daí surgiram os requisitos da relação estudante-paciente efetiva e do conceito de realidade curricular. De tudo isso se concluiu que o curso anual ministrado pela equipe do professor João Galizzi foi a principal trincheira de qualidade que evitou a derrocada completa do ensino de cinco anos, adotado de 1965 a 1975.  Afinal se determinou que do período formal de cinco anos resultava um sofrível currículo real de menos de dois anos.
            Tais estudos só foram feitos pela disponibilidade de subsídios coligidos por  gente da equipe do professor João Galizzi. Foi um grupo coeso que, acrescido de outros entusiastas, se constituiu em raro aglomerado de clínicos interessados em pedagogia médica. Esse fato merece ênfase, pois o ensino da medicina vinha sendo monopolizado por vários especialistas, com notória ausência de internistas, o que não passou de grave erro. No caso, sanitaristas, psiquiatras, legistas e pedagogos-não-médicos cederam lugar a clínicos e cirurgiões, logo transformados em coordenadores do processo de desenvolvimento curricular, entre 1972-85. Essa experiencia influenciou toda a educação médica brasileira, sendo considerada uma das quatro vanguardas internacionais no ensino pós-flexneriano.
Outra característica marcante da equipe galizzeana foi o intercâmbio com centros de ciência médica no país e principalmente estrangeiros.  O deslocamento de seus integrantes teve a peculiaridade multilateral de buscar indistintamente fontes inovadoras,  no ensino, na pesquisa e na clínica, tais como na Grã-Bretanha, França, Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Canadá, África do Sul, países vizinhos da América do Sul, México e Cuba. Sou testemunha do prazer inexcedível que um pai pode sentir, quando, no Hospital Royal Free de Londres, nosso Galizzi ouviu as melhores referencias a João Galizzi Filho, externadas por Sheila Sherlock, a maior hepatologista do mundo. Não foram elogios de conveniência, pois seu filho retornou ao Brasil para ser o maior hepatologista brasileiro. A propósito, lembro que o professor Derek P. Jewell nos convidou para participar de uma reunião clínica. No final me perguntou como era o ensino em nossa faculdade, pois já estava impressionado com os Galizzi, pai e filho, e agora também, na discussão daquele caso, com mais dois:  Luiz de Paula Castro e eu.
A produção científica ligada a João Galizzi também é amplamente sabida. Em sua Cadeira veio trabalhar o gastrenterologista alemão Rudolf Schindler, a maior autoridade mundial em endoscopia digestiva alta e criador do gastroscópio flexível. Em conseqüência, o grupo de cientistas que no Hospital das Clínicas hoje pesquisa a úlcera péptica e doenças correlatas é líder no Brasil e reconhecido internacionalmente. Por outro lado, foi em seu Serviço que se fez estudo completo  da primeira doente descrita da doença de Chagas, reencontrada em 1961, o qual integra seleto conjunto de contribuições ao conhecimento da patologia regional brasileira. Ao mesmo tempo, um sonho de João Galizzi e de sua equipe deixou de ser realizado: a redação daquele que seria o melhor livro de Semiologia Médica do país foi interrompida nos capítulos iniciais. O perfeccionismo do mestre causou a suspensão do projeto.
Demais, no meio universitário brasileiro, João Galizzi foi por décadas respeitadíssima referência no rigor da linguagem médica e na estrita observância ética, seja no ensino e na pesquisa, seja na atenção clínica. Assim, este cavalheiresco artífice da melhor relação médico-paciente, este campeão da compostura profissional - além de co-fundador de associação de classe e de associação especializada - foi o milagroso conciliador entre o ceticismo metódico derivado de Baeta Viana e a mais permanente tradição hipocrática, sendo que desta extraiu surpreendente e popular didática aforismática.  Conciliação que, na devoção à música, se repetiu entre Wagner e Bach, no que, aliás, foi honrosamente precedido por Schweitzer.

Finalmente cumpre dizer que, por trás do varão clássico tão querido de estudantes e colegas, sempre foi possível percebê-lo curioso de sua circunstância existencial. Esta fez dele o homem culto incapaz de esconder o entrechoque da ascendência luso-mineira com a herança greco-latina – ainda mais com a obrigação de ser herói, ao lado de Aleijadinho, da cidade de Congonhas. Tal inquietude fez também dele uma das influências decisivas na criação e no enriquecimento do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, a última mas não a menos importante das irradiações de sua invulgar personalidade.