LUIZ
CISALPINO CARNEIRO
ESPLÊNDIDA SÍNTESE ENTRE RETIDÃO DE CARÁTER E
ESPÍRITO SOLIDÁRIO
João Amílcar Salgado
Quando o
Luiz Carneiro se aposentou e fechou seu laboratório de análises clínicas,
numerosos clientes se sentiram desamparados, pois ele era, principalmente para
os próprios médicos e respectivas famílias, o que havia de mais confiável em
exames complementares. Atendia desde famílias tradicionais até altos
dignitários e autoridades, sendo também de altíssima confiança para
documentação científica. Foi o último
profissional artesanal nesta área, pois o controle de qualidade para ele
significava conferir pessoalmente cada exame e cada laudo que produzia.
Em seu laboratório particular, no
serviço laboratorial da cátedra de Clínica Médica, comandada pelo professor
Caio Benjamim Dias, e no laboratório central do Hospital das Clínicas da
Universidade Federal de Minas Gerais, este perfeccionista da patologia clínica
desenvolveu várias técnicas, tendo incrível facilidade para, tão logo algum
procedimento era proposto na literatura médica, tê-lo na rotina de sua bancada,
o qual generosamente repassava aos colegas da capital e do interior.
Foi pioneiro, por exemplo, na
dosagem do iodo protêico, cuja introdução veio facilitar o diagnóstico de
doenças da tireóide, substituindo a trabalhosa medida do metabolismo
básico. Vários interessados falharam em
estabelecer a técnica, após mais de uma tentativa, até que do Luiz Carneiro o
êxito veio da primeira vez. Foi nessa
época que a meu pedido dosou o iodo protêico de uma paciente atendida no
ambulatório do Hospital da Cruz Vermelha, quando disse: foi a dosagem mais baixa que já medi e a doente não tem aparência da
doença. Concluímos que o fator racial mascarava aqui a aparência de
mixedema descrita em gente européia. E mais: o principal quadro apresentado era
psiquiátrico, que se reverteu com o tratamento com tireóide. O Luiz então me perguntou: quantos pacientes, como esta, estarão aí
pelos hospícios brasileiros tomando eletrochoque, em vez de beneficiados pela
terapêutica certa? A pesquisa que faríamos para responder a esta pergunta
foi impedida por razões suspeitas. Meu
amigo lamentou: é uma pena, pois tenho
muito carinho pelos loucos. Esta data, 1963, deve ser reconhecida como do
início da humanização da psiquiatria no Brasil.
Na verdade a investigação que
pretendíamos era mais ambiciosa, pois iríamos determinar não só o percentual de
loucuras reversíveis com prescrição de tireóide, mas também aquelas causadas
por pelagra (freqüente entre nós pela soma de alcoolismo e desnutrição), a qual
é brilhantemente reversível com ácido nicotínico. Fomos obstados e o mesmo
aconteceu mais tarde, quando tentamos ser pioneiros na dosagem de álcool no
sangue, hoje rotina para motoristas bêbados. Eu ensaiava cimetidina para úlcera
péptica e guardei o sangue dos pacientes para dosar eventual diminuição dos
hormônios sexuais. Ia dosar também eventual alcoolismo, pois, ao contrário da
crença comum, surgiu a evidência de que a bebida alcoólica, em vez de agravar,
melhorava a úlcera. O fabricante de cimetidina foi contrário à dosagem do
hormônio. As amostras de sangue estavam estocadas e um belo dia o congelador
amanheceu desligado.
Outra dosagem de que o Luiz
Carneiro foi pioneiro é a do colesterol. Quando controlar colesterol estava se
tornando modismo, ele experimentou o período de maior movimentação em seu
laboratório. Dosou o colesterol de todos os ricaços e gente importante de
Minas. Permitiu-lhe até comprar uma casa e deixar de morar de aluguel. Havia
obsessivos que exigiam a dosagem semanal. Sendo aquele que mais tempo conviveu
com a idéia fixa de muita gente contra a hipercolesterolemia, chegou à
conclusão de que, entre a maioria daqueles com persistente colesterol alto, que
acompanhou até a morte, esta se deu por causa não relacionada a tal obsessão.
Assim, nosso Luiz deve ser considerado pioneiro na denúncia daquilo hoje conhecido em inglês como
“overdiagnosis & overtreatment business”.
Cumulativamente, Luiz Carneiro
nunca deixou de dedicar-se ao estudo de problemas sociais, vislumbrados por ele
de um ângulo inusitado, ou seja por meio do buraco-da-fechadura de sua
especialidade, adrede colocado em ponto alto da medicina mineira. Isto porque
seu irmão mais velho, José Maria Carneiro, formado pela atual UFMG em 1932 (contemporâneo
de Guimarães Rosa), foi laboratorista de alta reputação e influente dentro e
fora da profissão. Nosso Luiz, formado
na mesma Universidade em 1952, passou a seu auxiliar, desde o curso médico até
suceder-lhe. Isso o fez laboratorista do Instituto Raul Soares, onde convivia
com os dementes - repetição de circunstância de sua meninice, pois conviveu em
Barbacena com os internos de lá, quando seu pai era encarregado das obras na
Colônia de Alienados. Com isso, ele acabou sendo o observador privilegiado de
nossa realidade social, acompanhando simultaneamente, de um lado, a elite da
elite e, de outro, os penúltimos colocados na escala da dignidade humana: os
doentes mentais.
Certo dia o Luiz me disse que ia
pedir demissão da Universidade, pois fora escalado para plantonista do
Laboratório Central, função que não suportaria exercer naquela altura da
vida. Imediatamente o requisitei para
ficar à disposição do Centro de Memória da Medicina. Em seu primeiro dia no Centro, implorou para
que jamais conversássemos com ele sobre laboratório clínico. Diante disso
concluí que ele estava repetindo algo que acontecera com um papa. Segundo uma
lenda, certo cardeal fora escolhido papa como única salvação em momento de
crise. Fez tudo para recusar, mas foi coagido a tomar posse e resolveu a crise.
Então o cardeal seu confidente lhe perguntou por que recusara. E ele disse
sinceramente que, quando apelaram para ele, tinha acabado de tornar-se ateu.
No
caso do Luiz Carneiro, não havia propriamente crise, mas ele nos chegou pronto
para duas coisas definitivas: cuidar da memória de Juscelino Kubitschek, de que
é admirador sem par, e proporcionar-nos um momento histórico em nosso ensino
médico. Isto porque havia quem muito elogiasse a inovação curricular de 1975,
exceto certa tendenciosidade antipsiquiátrica. Éramos acusados pela cúpula
psiquiátrica mineira de promiscuidade com as idéias de gente como Michel
Foucault, Georges Lapassade, Franco Basaglia, Ivan Illich, Pierre Bourdieu,
Timothy Leary, Jürgen Habermas, Ronald Laing, Wilhelm Reich, Hélio Pellegrino,
Domingos Gandra e Célio Garcia. Tal preconceito retratava a incultura dos
acusadores, pois éramos apenas democraticamente abertos a todas as correntes,
pois nossos estudos se iniciaram com Piaget, Jairo Bernardes e o ortodoxo
psicanalista chileno Hernan Davanzo.
Diante disso, Carneiro, com base num artigo de Hélio Pellegrino sobre a
assistência psiquiátrica cubana, se prontificou a comparecer a Cuba, no que
correu grande risco frente à repressão da época, para nos trazer aquela
experiência. E submetê-la, em debate, a todas as correntes da psiquiatria
existentes no Brasil, desde a antipsiquiatria à psicocirurgia.
Essa
foi a origem do célebre Seminário sobre Alternativas de Atenção à Saúde
Mental, de 1982. Foi um dos fortes desafios à abertura esboçada pela
ditadura e é descrito em outro texto, mas adiantamos que foi iniciado com a
expectativa de três apresentações: aula inaugural de Nise da Silveira, exibição
do filme Um Estranho no Ninho (um dos três melhores filmes já produzidos)
e o audiovisual do Luiz Carneiro sobre a experiência cubana. Lamentavelmente, a
querida conferencista adoeceu e a cópia do filme foi sonegada por forças
ocultas. Mas o Luiz deu seu recado e tão bem que neutralizou as duas
frustrações. A seguir, pela primeira
vez, algo impossível aconteceu: renomados psiquiatras, que se maldiziam longe
uns dos outros, sentaram-se lado a lado no palco da Faculdade e mostraram que a
psiquiatria, aos olhos dos não-psiquiatras, estava flagrantemente obscura,
desordenada e até caótica, o que fazia contraste com os altos honorários
cobrados de quem podia pagar e até de quem mal podia pagar. Em outra sessão,
algo inédito: pacientes, ex-pacientes e representantes de segmentos sociais
discriminados também subiram ao palco e também foram ouvidos sem chacota, mas,
diferentemente dos profissionais, foram demoradamente aplaudidos. Tudo culminou
com o debate inesquecível entre Márcio Vasconcelos Pinheiro e José Guilherme
Merquior.
E
foi assim que um médico laboratorista, acometido de total compaixão pelos
doentes mentais, protagonizou uma das páginas mais luminosas da atenção à saúde
neste país.
O autor é professor titular de Clínica
Médica e pesquisador de História da Medicina da Universidade Federal de Minas
Gerais