IVO PITANGUY
A mais requintada expressão da cirurgia mineira
João
Amílcar Salgado
Era
julho de 1946, eu estava no 3º ano de primeiras letras e acompanhava a animação
em minha casa por causa da formatura naquele final de ano de meu tio, Aprígio
de Abreu Salgado (saneador da malária sulmineira, sem o que não haveria
Furnas), que morava conosco. Na casa em frente residia a dona Sinhaninha, prima
de minha mãe, e ali estavam dois outros formandos: o filho dela, Adauto Barbosa
Lima (cardiologista de nossa primeira circulação extracorpórea), e o primo
deste, Oscar Resende Lima (proeminente docente de psiquiatria da USP). E na
cidade havia um quarto formando, filho de grande amigo de meu pai: Alberto
Sarquis (admirável médico integral). Aquela cidadezinha, Nepomuceno, que
raramente formava um médico, naquele ano formava nada menos do que quatro e
numa das mais brilhantes turmas da Universidade. Lembro-me bem que o Adauto e o
Oscarzinho orientavam o Aprígio e o Alberto sobre a casimira que deviam
vestir na festa.
Em
meus verdes nove anos, mal sabia que conviveria longamente com outros formandos
daquele ano, em minha carreira docente na mesma Faculdade que os graduou. E mal
sabia eu que estaria aqui hoje a saudar o astro insigne dessa turma de
estrelas, o scollar Ivo Helcius Jardim de Campos Pitanguy. Por este
nome, que é um verso alexandrino, percebe-se que seus pais, o cirurgião Antônio
Campos Pitanguy e a beletrista Maria Stael Jardim, eram poetas, e com poesia
profetizaram a especialidade do filho, eis que a cirurgia plástica nada mais é
que o ramo da medicina mais próximo da expressão estética.
A
medicina mineira tem bela história a dizer ao mundo. Esta afirmação eu a fiz
nos 90 anos de nossa Faculdade Máter e a repeti em seu centenário, no ano
passado. Não cabem aqui as páginas que listem as impressionantes primazias
mineiras. Basta dizer que são mineiras as maiores contribuições brasileiras à
ciência: a descoberta da doença de Chagas por Carlos Chagas e a da bradicinina
por Wilson Beraldo, além de serem egressos desta mesmíssima Faculdade o maior
presidente brasileiro: Juscelino Kubitschek, o maior memorialista lusófono:
Pedro Nava, e o mais original prosador do idioma: Guimarães Rosa.
Cabe, contudo,
acrescentar que Baeta Viana, paraninfo dessa formidável turma de 1946, se
coloca ao lado desses cinco gigantes, não por alguma descoberta científica, mas
por ter descoberto um conjunto harmonioso de cientistas pré-clínicos, um deles
Beraldo, e outro conjunto, não menos esmerado e influente, de clínicos
cientistas e cirurgiões cientistas, um destes, Ivo Pitanguy.
E o
apostolado científico desse paraninfo fez dele um engajado político, pois em
1946 ele era apontado como uma das alavancas que fendilharam a sólida ditadura
Vargas. Então essa turma está na história do Brasil como aquela que celebrando
a ciência em Viana, celebrou nele a democracia, que ele pregou irmã daquela. E
mais, é a turma que, na memória deste país, realizou algo inédito: teve a
audácia de, homenageando o herói Eduardo Gomes, projetá-lo como candidato à
presidência da República.
Minas está bem presente
na personalidade do maior cirurgião plástico do mundo. Sim, Ivo Pitanguy deve
ser considerado uma das personalidades simbólicas do fenômeno antropológico
muitas vezes chamado de “jeito mineiro de ser”. Se seu jeito é este,
impõe-se perguntar: que menino e que adolescente foi ele?
De acordo
com a tradição, infelizmente abandonada, na turma de 1946, cada formando foi
retratado em soneto jocoso, assinado por autor incógnito (certamente João Vale
Maurício), sendo Ivo Pitanguy assim descrito: “Esse rapaz tem vocação
“cortante” / Seu destino é pegar... no bisturi / Tem esse nome lírico e
cantante: / Hélcio Jardim de Campos Pitanguy // O seu “campo” de estudo é a
Anatomia / O seu esporte: tênis, natação / E encerra a vida nessa trilogia: /
Uma raquete, um bisturi, um calção. // ... ... ... // “
Em verdade, no
humor do texto está resumida a admiração que causava. Trazendo, nos sobrenomes
Jardim e Campos, heráldicas raízes coloniais mineiras, o estudante Ivo, filho
de estimada família da Capital, fez parte da juventude dourada dos anos
dourados belorizontinos. Este ambiente hoje é bem conhecido graças ao sucesso
do livro O ENCONTRO MARCADO, de Fernando Sabino, de 1956, sendo que
Hélio Pellegrino, um dos protagonistas, foi contemporâneo (turma de 1947) de
Ivo na Faculdade.
Desse já tão alto
promontório despontou a vocação irresistível de Ivo Pitanguy para conciliar o
tradicional e o moderno. De imediato, impressionou seus colegas universitários,
afeitos ao francês do Testut, com o acréscimo do inglês e assim alargou o
alcance de sua formação humanística, trazida de berço. Igualmente, aos
hábitos ancestrais das famílias mineiras ajuntou o culto ao esporte, abrangendo
da natação ao tênis e à luta marcial. Acrescente-se depois sua desenvoltura
internacional, em estágios nos melhores centros médicos dos EUA, da Inglaterra
e da França e decorrentemente como conferencista em congressos e como formador
de centenas de especialistas oriundos de dezenas de países. Tudo isso
alicerçou o estilo original e perfeccionista que imprimiu à especialidade que
escolheu, tornando-se figura singular e inigualável no panteão mundial da
cirurgia plástica.
No Rio, onde
cursou o sexto ano de sua graduação, foi-lhe oportuno fazer profuso atendimento
a pequenos e grandes traumas em pronto-socorro. Isso lhe deu a inspiração para
organizar inéditos e modelares serviços, na 38ª Enfermaria da Santa Casa
e em atendimento privado. De tais realizações, sua liderança e seu carisma
extraíram novo pioneirismo, desta vez em pedagogia: criou, em 1960, a primeira
pós-graduação cirúrgica formal no Brasil, pela Pontifícia Universidade Católica
carioca.
Além de
cirurgião plástico, com numerosos discípulos, clientes e admiradores,
multiplicados pelo Brasil e pelo mundo, entre os quais várias celebridades, foi
inevitável que se tornasse autor de livros científicos e literários, alguns em
co-autoria. Escreveu MAMAPLASTIAS (1976), CIRURGIA ESTÉTICA DA CABEÇA E CORPO
(1981, em inglês, prêmio de melhor obra científica do ano, na Feira
Internacional do Livro de Frankfurt), OPERAÇÕES PLÁSTICAS DA ORELHA (1982,
bilíngüe), DIREITO À BELEZA (1984, trilíngue), ANGRA DOS REIS – BAÍA DOS REIS
MAGOS (1986), UM JEITO DE VER O RIO (1991), PARATII-PARATY (1992), APRENDENDO
COM A VIDA (1993), ATLAS DE CIRURGIA PALPEBRAL (1994), APRENDIZ DO TEMPO
(2007), CARTAS A UM JOVEM CIRURGIÃO (2008). Em 2011 o escritor e jornalista
John Holzer lançou nos EUA um livro consagrador sobre Pitanguy, prefaciado por
nada menos que Denton Cooley, o extraordinário implantador e transplantador de
corações.
Com a
experiência e a erudição que Ivo Pitanguy acumulou, verifica-se, por seus
textos, que afinal desenvolveu uma espécie de filosofia estética, na qual se
percebe também inovador ingrediente ecológico. Aristóteles, Vitrúvio e
Michelangelo lhe invejariam as oportunidades de ter lidado não só com os mais
belos, mas com os mais defeituosos e variados corpos humanos imagináveis, em
impressionante amostragem internacional, tendo como ponto de partida a
esplêndida composição racial nativa.
Do rococó
diamantinense ao multifacetado Rio de Janeiro, do trópico brasileiro ao
sofisticado burburinho internacional, Ivo Pitanguy não nega e nem procura
esconder sua venusta radicalidade mineira. Ao contrário, é dela a fronte e a
insígnia, em entalhe e lavor ao pé da letra.
O autor é
professor titular de Clínica Médica da UFMG e criador do Centro de Memória da
Medicina de Minas Gerais. Texto de 2012, quando saudou Pitanguy a convite de LOR