João Amílcar Salgado

terça-feira, 9 de agosto de 2016

IVO PITANGUY
A mais requintada expressão da cirurgia mineira

João Amílcar Salgado
         Era julho de 1946, eu estava no 3º ano de primeiras letras e acompanhava a animação em minha casa por causa da formatura naquele final de ano de meu tio, Aprígio de Abreu Salgado (saneador da malária sulmineira, sem o que não haveria Furnas), que morava conosco. Na casa em frente residia a dona Sinhaninha, prima de minha mãe, e ali estavam dois outros formandos: o filho dela, Adauto Barbosa Lima (cardiologista de nossa primeira circulação extracorpórea), e o primo deste, Oscar Resende Lima (proeminente docente de psiquiatria da USP). E na cidade havia um quarto formando, filho de grande amigo de meu pai: Alberto Sarquis (admirável médico integral). Aquela cidadezinha, Nepomuceno, que raramente formava um médico, naquele ano formava nada menos do que quatro e numa das mais brilhantes turmas da Universidade. Lembro-me bem que o Adauto e o Oscarzinho orientavam o Aprígio e o Alberto  sobre a casimira que deviam vestir na festa.
          Em meus verdes nove anos, mal sabia que conviveria longamente com outros formandos daquele ano, em minha carreira docente na mesma Faculdade que os graduou. E mal sabia eu que estaria aqui hoje a saudar o astro insigne dessa turma de estrelas, o scollar Ivo Helcius Jardim de Campos Pitanguy.   Por este nome, que é um verso alexandrino, percebe-se que seus pais, o cirurgião Antônio Campos Pitanguy e a beletrista Maria Stael Jardim, eram poetas, e com poesia profetizaram a especialidade do filho, eis que a cirurgia plástica nada mais é que o ramo da medicina mais próximo da expressão estética.
          A medicina mineira tem bela história a dizer ao mundo. Esta afirmação eu a fiz nos 90 anos de nossa Faculdade Máter e a repeti em seu centenário, no ano passado. Não cabem aqui as páginas que listem as impressionantes primazias mineiras. Basta dizer que são mineiras as maiores contribuições brasileiras à ciência: a descoberta da doença de Chagas por Carlos Chagas e a da bradicinina por Wilson Beraldo, além de serem egressos desta mesmíssima Faculdade o maior presidente brasileiro: Juscelino Kubitschek, o maior memorialista lusófono: Pedro Nava,  e o mais original prosador do idioma: Guimarães Rosa. 
Cabe, contudo, acrescentar que Baeta Viana, paraninfo dessa formidável turma de 1946, se coloca ao lado desses cinco gigantes, não por alguma descoberta científica, mas por ter descoberto um conjunto harmonioso de cientistas pré-clínicos, um deles Beraldo, e outro conjunto, não menos esmerado e influente, de clínicos cientistas e cirurgiões cientistas, um destes, Ivo Pitanguy.
        E o apostolado científico desse paraninfo fez dele um engajado político, pois em 1946 ele era apontado como uma das alavancas que fendilharam a sólida ditadura Vargas. Então essa turma está na história do Brasil como aquela que celebrando a ciência em Viana, celebrou nele a democracia, que ele pregou irmã daquela. E mais, é a turma que, na memória deste país, realizou algo inédito: teve a audácia de, homenageando o herói Eduardo Gomes, projetá-lo como candidato à presidência da República.
Minas está bem presente na personalidade do maior cirurgião plástico do mundo. Sim, Ivo Pitanguy deve ser considerado uma das personalidades simbólicas do fenômeno antropológico muitas vezes chamado de “jeito mineiro de ser”.  Se seu jeito é este, impõe-se perguntar: que menino e que adolescente foi ele?
       De acordo com a tradição, infelizmente abandonada, na turma de 1946, cada formando foi retratado em soneto jocoso, assinado por autor incógnito (certamente João Vale Maurício), sendo Ivo Pitanguy assim descrito: “Esse rapaz tem vocação “cortante” / Seu destino é pegar... no bisturi / Tem esse nome lírico e cantante: / Hélcio Jardim de Campos Pitanguy // O seu “campo” de estudo é a Anatomia / O seu esporte: tênis, natação / E encerra a vida nessa trilogia: / Uma raquete, um bisturi, um calção. // ... ... ... // “
      Em verdade, no humor do texto está resumida a admiração que causava. Trazendo, nos sobrenomes Jardim e Campos, heráldicas raízes coloniais mineiras, o estudante Ivo, filho de estimada família da Capital, fez parte da juventude dourada dos anos dourados belorizontinos. Este ambiente hoje é bem conhecido graças ao sucesso do livro O ENCONTRO MARCADO, de Fernando Sabino, de 1956, sendo que Hélio Pellegrino, um dos protagonistas, foi contemporâneo (turma de 1947) de Ivo na Faculdade. 
     Desse já tão alto promontório despontou a vocação irresistível de Ivo Pitanguy para conciliar o tradicional e o moderno. De imediato, impressionou seus colegas universitários, afeitos ao francês do Testut, com o acréscimo do inglês e assim alargou o alcance de sua formação humanística, trazida de berço.  Igualmente, aos hábitos ancestrais das famílias mineiras ajuntou o culto ao esporte, abrangendo da natação ao tênis e à luta marcial. Acrescente-se depois sua desenvoltura internacional, em estágios nos melhores centros médicos dos EUA, da Inglaterra e da França e decorrentemente como conferencista em congressos e como formador de centenas de especialistas oriundos de dezenas de países.   Tudo isso alicerçou o estilo original e perfeccionista que imprimiu à especialidade que escolheu, tornando-se figura singular e inigualável no panteão mundial da cirurgia plástica. 
     No Rio, onde cursou o sexto ano de sua graduação, foi-lhe oportuno fazer profuso atendimento a pequenos e grandes traumas em pronto-socorro. Isso lhe deu a inspiração para organizar inéditos e modelares serviços, na 38ª  Enfermaria da Santa Casa e em atendimento privado. De tais realizações, sua liderança e seu carisma extraíram novo pioneirismo, desta vez em pedagogia: criou, em 1960, a primeira pós-graduação cirúrgica formal no Brasil, pela Pontifícia Universidade Católica carioca. 
       Além de cirurgião plástico, com numerosos discípulos, clientes e admiradores, multiplicados pelo Brasil e pelo mundo, entre os quais várias celebridades, foi inevitável que se tornasse autor de livros científicos e literários, alguns em co-autoria. Escreveu MAMAPLASTIAS (1976), CIRURGIA ESTÉTICA DA CABEÇA E CORPO (1981, em inglês, prêmio de melhor obra científica do ano, na Feira Internacional do Livro de Frankfurt), OPERAÇÕES PLÁSTICAS DA ORELHA (1982, bilíngüe), DIREITO À BELEZA (1984, trilíngue), ANGRA DOS REIS – BAÍA DOS REIS MAGOS (1986), UM JEITO DE VER O RIO (1991), PARATII-PARATY (1992), APRENDENDO COM A VIDA (1993), ATLAS DE CIRURGIA PALPEBRAL (1994), APRENDIZ DO TEMPO (2007), CARTAS A UM JOVEM CIRURGIÃO (2008). Em 2011 o escritor e jornalista John Holzer lançou nos EUA um livro consagrador sobre Pitanguy, prefaciado por nada menos que Denton Cooley, o extraordinário implantador e transplantador de corações.
       Com a experiência e a erudição que Ivo Pitanguy acumulou, verifica-se, por seus textos, que afinal desenvolveu uma espécie de filosofia estética, na qual se percebe também inovador ingrediente ecológico. Aristóteles, Vitrúvio e Michelangelo lhe invejariam as oportunidades de ter lidado não só com os mais belos, mas com os mais defeituosos e variados corpos humanos imagináveis, em impressionante amostragem internacional, tendo como ponto de partida a esplêndida composição racial nativa. 
     Do rococó diamantinense ao multifacetado Rio de Janeiro, do trópico brasileiro ao sofisticado burburinho internacional, Ivo Pitanguy não nega e nem procura esconder sua venusta radicalidade mineira. Ao contrário, é dela a fronte e a insígnia, em entalhe e lavor ao pé da letra.

O autor é professor titular de Clínica Médica da UFMG e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais. Texto de 2012, quando saudou Pitanguy a convite de LOR