CID
VELOSO EM TRÊS CENÁRIOS
João Amílcar Salgado
MÓDULO ECGRÁFICO
Em 1962, os
poucos clínicos que sabiam interpretar o eletrocardiograma e a radiografia
cardíaca causavam inveja e, ao mesmo tempo, sonegavam os respectivos segredos
aos aprendizes. Liderados pelo Razuk, providenciamos a vinda do Tranchesi e do
Fujioka para nos assenhorearmos destes dois mistérios. Descobrimos que tudo o
que o Tranchesi e o Fujioka sabiam o Elian e o Javert já sabiam, e a grande
virtude desses paulistas eram os massetes interpretativos que divulgavam. O Tranchesi, da escola do Cabrera, enfatizava
o lado vetorial do eletro, o que complicava a coisa. Aí é que entrou a
criatividade do Cid Veloso. Ele criou um módulo de treinamento da maior
simplicidade e rapidez - tornando obsoleto o excelente livro do Tranchesi.
Qualquer um que manuseasse sua coleção didática - democraticamente aberta a todos
- em seis meses já era um razoável intérprete. E coincidiu que foi lançada a
primeira linha de aparelhos portáteis. Vários foram encomendados. Um mandão da cardiologia recebeu a visita do
revendedor, entusiasmado com o boom de venda. Quis saber onde era o ninho dos
que ameaçavam sua reserva de mercado. Chegou à sala do Cid acompanhado do
Galizzi e do Elian que o viram espinafrar o imperturbável recém-formado. Gritou
ao Cid: você é um fedelho e dependendo de mim nem título de cardiologista terá.
O Elian e o Galizzi retiraram o
vociferante dali e lhe explicaram que aquele lugar era uma universidade e nela
nenhuma censura teria cabimento.
LESÃO DA PONTA
Em 1963, houve
entusiasmo com a descoberta do padrão eletrocardiográfico da chamada lesão de ponta, própria do coração
chagásico. Todos a elogiavam, mas Cid
Veloso fez reparo ao método da pesquisa, pois o autor se limitara a examinar
unilateralmente os registros dos pacientes falecidos com a lesão. Dois
cardiologistas ex-professores do Cid, o recriminaram fortemente. Galizzi pediu
ao jovem que respondesse àquelas duras palavras, e este, com a serenidade que
lhe é peculiar, surpreendeu a todos. Disse que a resposta não poderia ser
expressa ali, mas estava guardada nos arquivos do Bogliolo. E foi então que o
Cid Veloso, apoiado pelo Arnaldo Elian e por mim, fez a investigação recíproca:
procurar o tal padrão na coleção de registros e separar aqueles de pacientes
falecidos. Daí partiu para o arquivo anatômico e não encontrou a completa
correspondência entre o padrão e a lesão. A pesquisa saiu nos Arquivos
Brasileiros de Cardiologia (1964, 17, 505-18). Em reunião geral de todas as
cadeiras de Clínica Médica, o temido e avaro professor Osvaldo de Melo Campos,
que nunca fora ouvido elogiar alguém e nunca dera nota máxima em qualquer
concurso, apareceu com a separata desta investigação nas mãos e, antes de qualquer coisa, a exibiu dizendo:
esta
é a tese de doutorado para a qual eu daria nota dez. E foi assim que Melo
Campos concedeu pessoalmente ao jovem Cid o título de cientista.
BISPO TUTU
Em
21-5-1987, o bispo Tutu recebeu o título de professor honoris causa da UFMG. Em
reunião na reitoria, discutimos a programação da visita dele à Universidade e
quando levantamos a possibilidade de, na oportunidade, dar-lhe o título honoris
causa, houve nítida reação de desagrado de boa parte dos presentes, que
inclusive deram a desculpa de que havia uma burocracia a ser cumprida e que não
daria tempo. Alguém disse: será que esse preto merece tão alto título? Pois
bem, foi uma das coisas mais emotivas que aconteceu nesta instituição. No
gabinete da reitoria, saboreávamos o coquetel de recepção, quando todos fomos
para as janelas, pois iniciava-se vibrante batuque, executado uníssono, ali no
pátio em frente, por quase todos os grupos de congado de Minas. A seguir
descemos para diante de um palanque. Nele o bispo Tutu, acompanhado de padres
negros e mulatos, e também de oficiantes
de várias religiões, concelebrou arrepiante Missa Conga. Só mesmo Cid
Veloso, o primeiro reitor federal eleito pelo voto direto, poderia ter-nos
brindado com tão inesquecível cena.