João Amílcar Salgado

terça-feira, 13 de setembro de 2016

CID VELOSO EM TRÊS CENÁRIOS
João Amílcar Salgado
MÓDULO ECGRÁFICO
Em 1962, os poucos clínicos que sabiam interpretar o eletrocardiograma e a radiografia cardíaca causavam inveja e, ao mesmo tempo, sonegavam os respectivos segredos aos aprendizes. Liderados pelo Razuk, providenciamos a vinda do Tranchesi e do Fujioka para nos assenhorearmos destes dois mistérios. Descobrimos que tudo o que o Tranchesi e o Fujioka sabiam o Elian e o Javert já sabiam, e a grande virtude desses paulistas eram os massetes interpretativos  que divulgavam.  O Tranchesi, da escola do Cabrera, enfatizava o lado vetorial do eletro, o que complicava a coisa. Aí é que entrou a criatividade do Cid Veloso. Ele criou um módulo de treinamento da maior simplicidade e rapidez - tornando obsoleto o excelente livro do Tranchesi. Qualquer um que manuseasse sua coleção didática - democraticamente aberta a todos - em seis meses já era um razoável intérprete. E coincidiu que foi lançada a primeira linha de aparelhos portáteis. Vários foram encomendados.  Um mandão da cardiologia recebeu a visita do revendedor, entusiasmado com o boom de venda. Quis saber onde era o ninho dos que ameaçavam sua reserva de mercado. Chegou à sala do Cid acompanhado do Galizzi e do Elian que o viram espinafrar o imperturbável recém-formado. Gritou ao Cid: você é um fedelho e dependendo de mim nem título de cardiologista terá. O Elian e o Galizzi  retiraram o vociferante dali e lhe explicaram que aquele lugar era uma universidade e nela nenhuma censura teria cabimento.

LESÃO DA PONTA
Em 1963, houve entusiasmo com a descoberta do padrão eletrocardiográfico da chamada lesão de ponta, própria do coração chagásico.  Todos a elogiavam, mas Cid Veloso fez reparo ao método da pesquisa, pois o autor se limitara a examinar unilateralmente os registros dos pacientes falecidos com a lesão. Dois cardiologistas ex-professores do Cid, o recriminaram fortemente. Galizzi pediu ao jovem que respondesse àquelas duras palavras, e este, com a serenidade que lhe é peculiar, surpreendeu a todos. Disse que a resposta não poderia ser expressa ali, mas estava guardada nos arquivos do Bogliolo. E foi então que o Cid Veloso, apoiado pelo Arnaldo Elian e por mim, fez a investigação recíproca: procurar o tal padrão na coleção de registros e separar aqueles de pacientes falecidos. Daí partiu para o arquivo anatômico e não encontrou a completa correspondência entre o padrão e a lesão. A pesquisa saiu nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia (1964, 17, 505-18). Em reunião geral de todas as cadeiras de Clínica Médica, o temido e avaro professor Osvaldo de Melo Campos, que nunca fora ouvido elogiar alguém e nunca dera nota máxima em qualquer concurso, apareceu com a separata desta investigação nas mãos  e, antes de qualquer coisa, a exibiu dizendo: esta é a tese de doutorado para a qual eu daria nota dez. E foi assim que Melo Campos concedeu pessoalmente ao jovem Cid o título de cientista.

BISPO TUTU

              Em 21-5-1987, o bispo Tutu recebeu o título de professor honoris causa  da UFMG. Em reunião na reitoria, discutimos a programação da visita dele à Universidade e quando levantamos a possibilidade de, na oportunidade, dar-lhe o título honoris causa, houve nítida reação de desagrado de boa parte dos presentes, que inclusive deram a desculpa de que havia uma burocracia a ser cumprida e que não daria tempo. Alguém disse: será que esse preto merece tão alto título? Pois bem, foi uma das coisas mais emotivas que aconteceu nesta instituição. No gabinete da reitoria, saboreávamos o coquetel de recepção, quando todos fomos para as janelas, pois iniciava-se vibrante batuque, executado uníssono, ali no pátio em frente, por quase todos os grupos de congado de Minas. A seguir descemos para diante de um palanque. Nele o bispo Tutu, acompanhado de padres negros e mulatos, e também de oficiantes  de várias religiões, concelebrou arrepiante Missa Conga. Só mesmo Cid Veloso, o primeiro reitor federal eleito pelo voto direto, poderia ter-nos brindado com tão inesquecível cena.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016