CÍCERO FERREIRA E LUCAS MACHADO
Muito oportuna
a lembrança do erudito acadêmico Geraldo Magela Cruz de homenagear Cícero e
Lucas, pela Academia de Medicina.
Importante
homenagem a Cícero Ferreira foi feita no congraçamento intitulado FERREIRADA
(1982), publicado com um texto inicial de nada menos que Pedro Nava. Foi
recentemente lançada a biografia completa: CICERO FERREIRA – UM APÓSTOLO DA
MEDICINA (2018), redigido por Mário Lara, para a qual forneci assessoria. Acabo
de redigir o livro O CASO BERENICE DA DOENÇA DE CHAGAS, cujo capítulo final se
intitula ASPECTOS BIOGRÁFICOS DE CARLOS CHAGAS, com dados do parentesco entre Cícero
e Chagas, inclusive o fato de que a esposa de Cícero, Laura Chagas, é prima de
Carlos. Cícero e Carlos são conterrâneos da mesma cidade de Oliveira, pois Bom
Sucesso, onde nasceu Cícero, era distrito de Oliveira. Outro fato é que Nava
passou a ser clínico da viúva Iris, depois do falecimento de Carlos.
Lucas Machado
e sua família recebem também homenagem, que é oportuna adicionalmente diante do
falecimento recente de seu brilhantíssimo sobrinho Angelo Machado. A neta do
Angelim fez um vídeo sobre o avô que acabo de distribuir amplamente e peço que
seus inúmeros admiradores o multipliquem mais ainda (https://ecofalante.org.br/filme/angelo). Escrevi
antes um texto sobre o Lucas, que aproveito para incluir nesta homenagem.
LUCAS
MACHADO
Mineiríssimo
hierarca da medicina brasileira
João Amílcar Salgado
O
primeiro representante dos Machado que conheci, quando cheguei a Belo
Horizonte, foi Aníbal Machado. Ainda vestibulando, assisti uma conferencia dele
sobre o conto como estilo literário. Foi na Faculdade de Direito, no primeiro e
adorável prédio da praça Afonso Arinos, criminosamente demolido. Fiquei
fascinado pela palestra dita em tom coloquial, com riqueza de dados e muito
humor. Após o vestibular, um terceiranista com dificuldade de dicção e de
aparência caricata foi escalado para meu monitor de histologia. O impacto
daquela figura e daquela voz me fez seu admirador imediato, o que sou até hoje,
além de amigo e garupeiro contumaz de sua motoca. Tratava-se do Ângelo Machado
que não demorou muito para revelar-me ser sobrinho do Aníbal. Certo tempo depois,
o Ângelo me levou para assistir uma palestra de sua tia Lúcia Machado sobre a
cidade de Sabará. Saí dali exclamando: que família...!
O
ginecologista Lucas Machado foi o quarto dos Machado que conheci, numa palestra
proferida por ele na Associação Médica sobre ética em medicina. Ali ele se
abriu a perguntas e eu arrisquei a indagar: Axel Munth, em seu O LIVRO DE SAN
MECHELLE, diz que estava agindo contra grave epidemia e, num convento, foi
assediado por linda freira - e concluiu que situações de calamidade trazem
afloramento erótico. Lucas, em
vez de reação negativa, achou foi graça e acrescentou: realmente isso é enorme desafio à
ética médica, mas não tenho dados para confirmar a afirmação desse notável
médico e escritor.
Mais tarde, Lucas Machado
retirou um nódulo de mama em minha tia Rute.
Fui-lhe apresentado como estudante de medicina e ele pareceu não ter-se
lembrado de mim. Cavalheirescamente, me introduziu na sala de cirurgia do
Hospital São Lucas. Ali, do pré- ao pós-operatório, recebi dele magnífica aula
sobre mastologia. E seu diagnóstico de nódulo benigno estava certo, pois, hoje,
a tia Rute está viva e forte, vesprando os cem.
Durante nossa conversa,
disse-lhe de minha admiração por seu sobrinho Ângelo. Ele então me disse que
foi um adolescente muito parecido com o Ângelo.
Tinha no quintal da casa paterna uma espécie de laboratório de biologia,
onde “brincava” de ser cientista.
Dali tomou a decisão de montar
grande laboratório, caso conseguisse se tornar professor na faculdade de
medicina. Durante seu curso médico, coincidiu haver grande entusiasmo
cientifico com a endocrinologia nascente e com o lado terapêutico desta, que
era a opoterapia, chegando mesmo a haver transplantes de gônadas.
De fato, Lucas se tornou o
mais admirado e mais brilhante auxiliar de Hugo Werneck. Todos, no ambiente
médico da década de 30, não duvidavam de que ele seria o sucessor de Werneck,
este um dos fundadores da primeira faculdade de Minas e seu primeiro professor
de gineco-obstetrícia. Lucas estava pronto para cumprir seu sonho confidenciado
a mim naquela nossa conversa. Acontece que o concurso para escolha do sucessor
de Hugo sofreu inédita interferência: o embate entre o poderoso arcebispo de
Belo Horizonte, Antônio Cabral, e o não menos poderoso político Artur
Bernardes. Diante da vacância da cátedra, Bernardes, convocou Clóvis Salgado,
seu conterrâneo e parente da zona-da-mata. Seu objetivo era que Clóvis
acumulasse a projeção de catedrático com a liderança do bernardismo em Belo
Horizonte. Já o objetivo do arcebispo era evitar que a especialidade médica
muito importante para a religião caísse nas mãos de alguém que não fosse
católico confiável. Lucas, que, por critérios puramente acadêmicos, seria
imbatível, sucumbiu ao peso do bernardismo. Simbolicamente, ele fundaria mais
tarde a faculdade “católica” de medicina.
E foi assim que o egresso da
Faculdade mais vocacionado, na época, para a carreira universitária fosse
privado desta no melhor momento para começar a brilhar ali como memorável sorbonnard, como diria Pedro Nava, amigo
do peito de Lucas. Essa privação se repetiria anos depois com outro
extraordinário vocacionado: o notável cirurgião Wilson Abrantes. Como
historiador da medicina e na condição de quem dialogou com Lucas e com Clóvis,
assevero que Bernardes e Cabral não tinham o direito de usar os dois eminentes
ginecologistas como meros floretes em sua esgrima. Cada qual dos quatro saiu
irreversivelmente atingido nessa contenda afinal ridícula.
Um terceiro contato tive com
Lucas Machado. Foi na biblioteca da Faculdade, quando o ouvi dizer ao atendente
que desejava levar um volume para consultar em casa. O funcionário verificou
que seu nome não constava do fichário. Lucas respondeu: deve constar porque sou
livre-docente, além de ex-aluno. O rapaz disse que infelizmente não
podia emprestar o livro. Entrei, então, na conversa e mandei registrar o
empréstimo em meu nome. O professor me abraçou agradecido e saiu com o volume e
também com indisfarçável mágoa. Numa
reunião sobre o funcionamento da biblioteca, relatei o fato, e, contra minha
indignação, a arrogante bibliotecária-chefe sentenciou: o funcionário é que devia estar
aqui sendo elogiado e tecnicamente não concordo que livres-docentes devam
constar do fichário.
Já que falei em Nava, foi
emocionado que li no final de seu livro CHÃO DE FERRO a descrição da
residência senhorial do capitalista Virgílio Cristiano Machado, pai do Lucas.
Ficava na rua Tupis, 303, endereço onde depois fui assíduo frequentador do cine
Tupi (depois Jaques). Aí se vê que o
nome Lucas foi dado ao médico em homenagem a Lucas Monteiro de Castro, barão de
Congonhas, que acolheu Virgílio vindo do Paraná. Este acabou marido de Marieta,
neta do barão. Os descendentes então receberam o sobrenome composto Monteiro
Machado. Estes, conforme Nava, trazem ¼ de sangue mineiro, 2/4 paranaense e ¼
pernambucano. Formam, com os Nava, os Sales (de Pedro Sales) e os Chaves de
Mendonça (de Aureliano Chaves) e outros, um grupo de famílias mineiríssimas,
caracterizado por ilustres componentes nordestinos.
Além desta, me ficaram duas
outras passagens de Nava referentes a Lucas Machado. Uma delas foi a agilidade
de Lucas para escapar da polícia num tumulto. A outra foi a interferência dele
junto ao diretor Hugo Werneck para que Nava não fosse expulso da Faculdade.
Pedro Nava ainda estava redigindo BEIRA MAR e no Centro de Memória da
Medicina nos antecipava o conteúdo do livro. Lembrou que o Hugo o expulsara da
Santa Casa e o queria expulsar da Faculdade. Disse que nesse próximo volume
manifestaria sua gratidão a Lucas por ter garantido seu diploma de médico.
Depois da edição, Nava foi informado de que também Carleto Chagas agiu em favor
dele. Lucas, ciente de que Hugo sabia de sua amizade a Nava, pediu a Carleto
para somar seu apelo ao dele, para convencer o severo diretor.
Mais tarde acompanhei a
turma de Lucas Viana Machado, filho do Lucas, tão fino gentleman quanto o pai, em seu final de curso. Isso foi possível
porque fui colega, na república REMANSO DE HIPÓCRATES, de dois colegas
de turma do jovem: Cláudio Almeida de Oliveira e Criso Duque de Resende, ambos
meus sempre estimados vizinhos sulmineiros e, portanto, com inevitável
parentesco entre nossas famílias - sendo o Cláudio meu ex-contemporâneo de
internato marista em Varginha. Com o tempo, o Lucas-filho, nome nacional em
gineco-endocrinologia, passou de dileto amigo a companheiro na luta pela
qualidade do ensino médico. Tal amizade me permite o privilégio de estender a
ele os sólidos laços que me unem a seu primo Ângelo, desde meus primeiros dias
do curso médico.
O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador
em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
Adendo: Prezados João
Vinícius e João Amílcar
Gostei muito do filme. Muito obrigado por compartilhá-lo.
Meu primeiro contato com Ângelo Machado foi por ocasião do vestibular,
na prova prática de Biologia. Entrei na sala e deparei com uma cena surreal: um
examinador sui generis, magérrimo, de voz fanhosa (decorrente
de miopatia mitocondrial), sentado ao modo de Buda sobre uma mesa, com um
esqueleto dependurado ao seu lado, cercado de plantas e bichos, munido de
uma lança que trouxera da Amazônia (com a qual apontou para o microscópio para
que eu identificasse uma figura de mitose). Foi uma experiência inesquecível
para um jovem de 18 anos.
Grande abraço do
Luiz Otávio Savassi