João Amílcar Salgado

sábado, 15 de agosto de 2020

 

CÍCERO FERREIRA E LUCAS MACHADO

Muito oportuna a lembrança do erudito acadêmico Geraldo Magela Cruz de homenagear Cícero e Lucas, pela Academia de Medicina.

Importante homenagem a Cícero Ferreira foi feita no congraçamento intitulado FERREIRADA (1982), publicado com um texto inicial de nada menos que Pedro Nava. Foi recentemente lançada a biografia completa: CICERO FERREIRA – UM APÓSTOLO DA MEDICINA (2018), redigido por Mário Lara, para a qual forneci assessoria. Acabo de redigir o livro O CASO BERENICE DA DOENÇA DE CHAGAS, cujo capítulo final se intitula ASPECTOS BIOGRÁFICOS DE CARLOS CHAGAS, com dados do parentesco entre Cícero e Chagas, inclusive o fato de que a esposa de Cícero, Laura Chagas, é prima de Carlos. Cícero e Carlos são conterrâneos da mesma cidade de Oliveira, pois Bom Sucesso, onde nasceu Cícero, era distrito de Oliveira. Outro fato é que Nava passou a ser clínico da viúva Iris, depois do falecimento de Carlos.

Lucas Machado e sua família recebem também homenagem, que é oportuna adicionalmente diante do falecimento recente de seu brilhantíssimo sobrinho Angelo Machado. A neta do Angelim fez um vídeo sobre o avô que acabo de distribuir amplamente e peço que seus inúmeros admiradores o multipliquem mais ainda (https://ecofalante.org.br/filme/angelo).   Escrevi antes um texto sobre o Lucas, que aproveito para incluir nesta homenagem.

 

LUCAS MACHADO

Mineiríssimo hierarca da medicina brasileira

João Amílcar Salgado

                O primeiro representante dos Machado que conheci, quando cheguei a Belo Horizonte, foi Aníbal Machado. Ainda vestibulando, assisti uma conferencia dele sobre o conto como estilo literário. Foi na Faculdade de Direito, no primeiro e adorável prédio da praça Afonso Arinos, criminosamente demolido. Fiquei fascinado pela palestra dita em tom coloquial, com riqueza de dados e muito humor. Após o vestibular, um terceiranista com dificuldade de dicção e de aparência caricata foi escalado para meu monitor de histologia. O impacto daquela figura e daquela voz me fez seu admirador imediato, o que sou até hoje, além de amigo e garupeiro contumaz de sua motoca. Tratava-se do Ângelo Machado que não demorou muito para revelar-me ser sobrinho do Aníbal. Certo tempo depois, o Ângelo me levou para assistir uma palestra de sua tia Lúcia Machado sobre a cidade de Sabará. Saí dali exclamando: que família...!

                O ginecologista Lucas Machado foi o quarto dos Machado que conheci, numa palestra proferida por ele na Associação Médica sobre ética em medicina. Ali ele se abriu a perguntas e eu arrisquei a indagar: Axel Munth, em seu O LIVRO DE SAN MECHELLE, diz que estava agindo contra grave epidemia e, num convento, foi assediado por linda freira - e concluiu que situações de calamidade trazem afloramento erótico.  Lucas, em vez de reação negativa, achou foi graça e acrescentou: realmente isso é enorme desafio à ética médica, mas não tenho dados para confirmar a afirmação desse notável médico e escritor.

Mais tarde, Lucas Machado retirou um nódulo de mama em minha tia Rute.  Fui-lhe apresentado como estudante de medicina e ele pareceu não ter-se lembrado de mim. Cavalheirescamente, me introduziu na sala de cirurgia do Hospital São Lucas. Ali, do pré- ao pós-operatório, recebi dele magnífica aula sobre mastologia. E seu diagnóstico de nódulo benigno estava certo, pois, hoje, a tia Rute está viva e forte, vesprando  os cem.

Durante nossa conversa, disse-lhe de minha admiração por seu sobrinho Ângelo. Ele então me disse que foi um adolescente muito parecido com o Ângelo.  Tinha no quintal da casa paterna uma espécie de laboratório de biologia, onde “brincava” de ser cientista.  Dali  tomou a decisão de montar grande laboratório, caso conseguisse se tornar professor na faculdade de medicina. Durante seu curso médico, coincidiu haver grande entusiasmo cientifico com a endocrinologia nascente e com o lado terapêutico desta, que era a opoterapia, chegando mesmo a haver transplantes de gônadas.  

De fato, Lucas se tornou o mais admirado e mais brilhante auxiliar de Hugo Werneck. Todos, no ambiente médico da década de 30, não duvidavam de que ele seria o sucessor de Werneck, este um dos fundadores da primeira faculdade de Minas e seu primeiro professor de gineco-obstetrícia. Lucas estava pronto para cumprir seu sonho confidenciado a mim naquela nossa conversa. Acontece que o concurso para escolha do sucessor de Hugo sofreu inédita interferência: o embate entre o poderoso arcebispo de Belo Horizonte, Antônio Cabral, e o não menos poderoso político Artur Bernardes. Diante da vacância da cátedra, Bernardes, convocou Clóvis Salgado, seu conterrâneo e parente da zona-da-mata. Seu objetivo era que Clóvis acumulasse a projeção de catedrático com a liderança do bernardismo em Belo Horizonte. Já o objetivo do arcebispo era evitar que a especialidade médica muito importante para a religião caísse nas mãos de alguém que não fosse católico confiável. Lucas, que, por critérios puramente acadêmicos, seria imbatível, sucumbiu ao peso do bernardismo. Simbolicamente, ele fundaria mais tarde a faculdade “católica” de medicina.

E foi assim que o egresso da Faculdade mais vocacionado, na época, para a carreira universitária fosse privado desta no melhor momento para começar a brilhar ali como memorável sorbonnard, como diria Pedro Nava, amigo do peito de Lucas. Essa privação se repetiria anos depois com outro extraordinário vocacionado: o notável cirurgião Wilson Abrantes. Como historiador da medicina e na condição de quem dialogou com Lucas e com Clóvis, assevero que Bernardes e Cabral não tinham o direito de usar os dois eminentes ginecologistas como meros floretes em sua esgrima. Cada qual dos quatro saiu irreversivelmente atingido nessa contenda afinal ridícula.

Um terceiro contato tive com Lucas Machado. Foi na biblioteca da Faculdade, quando o ouvi dizer ao atendente que desejava levar um volume para consultar em casa. O funcionário verificou que seu nome não constava do fichário. Lucas respondeu: deve constar porque sou livre-docente, além de ex-aluno. O rapaz disse que infelizmente não podia emprestar o livro. Entrei, então, na conversa e mandei registrar o empréstimo em meu nome. O professor me abraçou agradecido e saiu com o volume e também com indisfarçável mágoa.  Numa reunião sobre o funcionamento da biblioteca, relatei o fato, e, contra minha indignação, a arrogante bibliotecária-chefe sentenciou: o funcionário é que devia estar aqui sendo elogiado e tecnicamente não concordo que livres-docentes devam constar do fichário.

Já que falei em Nava, foi emocionado que li no final de seu livro CHÃO DE FERRO a descrição da residência senhorial do capitalista Virgílio Cristiano Machado, pai do Lucas. Ficava na rua Tupis, 303, endereço onde depois fui assíduo frequentador do cine Tupi (depois Jaques). Aí  se vê que o nome Lucas foi dado ao médico em homenagem a Lucas Monteiro de Castro, barão de Congonhas, que acolheu Virgílio vindo do Paraná. Este acabou marido de Marieta, neta do barão. Os descendentes então receberam o sobrenome composto Monteiro Machado. Estes, conforme Nava, trazem ¼ de sangue mineiro, 2/4 paranaense e ¼ pernambucano. Formam, com os Nava, os Sales (de Pedro Sales) e os Chaves de Mendonça (de Aureliano Chaves) e outros, um grupo de famílias mineiríssimas, caracterizado por ilustres componentes nordestinos.

Além desta, me ficaram duas outras passagens de Nava referentes a Lucas Machado. Uma delas foi a agilidade de Lucas para escapar da polícia num tumulto. A outra foi a interferência dele junto ao diretor Hugo Werneck para que Nava não fosse expulso da Faculdade. Pedro Nava ainda estava redigindo BEIRA MAR e no Centro de Memória da Medicina nos antecipava o conteúdo do livro. Lembrou que o Hugo o expulsara da Santa Casa e o queria expulsar da Faculdade. Disse que nesse próximo volume manifestaria sua gratidão a Lucas por ter garantido seu diploma de médico. Depois da edição, Nava foi informado de que também Carleto Chagas agiu em favor dele. Lucas, ciente de que Hugo sabia de sua amizade a Nava, pediu a Carleto para somar seu apelo ao dele, para convencer o severo diretor.

Mais tarde acompanhei a turma de Lucas Viana Machado, filho do Lucas, tão fino gentleman quanto o pai, em seu final de curso. Isso foi possível porque fui colega, na república REMANSO DE HIPÓCRATES, de dois colegas de turma do jovem: Cláudio Almeida de Oliveira e Criso Duque de Resende, ambos meus sempre estimados vizinhos sulmineiros e, portanto, com inevitável parentesco entre nossas famílias - sendo o Cláudio meu ex-contemporâneo de internato marista em Varginha. Com o tempo, o Lucas-filho, nome nacional em gineco-endocrinologia, passou de dileto amigo a companheiro na luta pela qualidade do ensino médico. Tal amizade me permite o privilégio de estender a ele os sólidos laços que me unem a seu primo Ângelo, desde meus primeiros dias do curso médico.

 

O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais

 

 

Adendo:  Prezados João Vinícius e João Amílcar

Gostei muito do filme. Muito obrigado por compartilhá-lo.

Meu primeiro contato com Ângelo Machado foi por ocasião do vestibular, na prova prática de Biologia. Entrei na sala e deparei com uma cena surreal: um examinador sui generis, magérrimo, de voz fanhosa (decorrente de miopatia mitocondrial), sentado ao modo de Buda sobre uma mesa, com um esqueleto dependurado ao seu lado, cercado de plantas e bichos, munido de uma lança que trouxera da Amazônia (com a qual apontou para o microscópio para que eu identificasse uma figura de mitose). Foi uma experiência inesquecível para um jovem de 18 anos.

Grande abraço do

Luiz Otávio Savassi