João Amílcar Salgado

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

 

DOAÇÃO DE PEÇAS DO CENTRO DE MEMÓRIA DA MEDICINA (UFMG) AO CENTRO DE MEMÓRIA DA FARMÁCIA (UFOP), INSPIRADA EM DOIS CLÃS DE FARMACÊUTICOS

 

João Amílcar Salgado

 

        No dia 09/04/1999, em Ouro Preto, tive a honra de entregar peças de significado histórico, doadas pelo Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, ao Centro de Memória da Escola de Farmácia da Universidade Federal de Ouro Preto, na solenidade de inauguração deste, comemorativa dos 160 anos desta que foi a primeira escola de farmácia criada no Brasil.. 

         As peças são as seguintes:

         1. O exemplar original do livro MYRTACEARUM BRASILIENSIUM de Hjalmar Kiaerskou, que fora doado ao Herbário Magalhães Gomes da Escola de Farmácia pelo ilustre Dr Glaziou, em 08/04/1896, e foi adquirido em loja de livros usados pelo membro de nossa equipe, Professor Paulo Pimenta de Figueiredo, docente de pediatria, bibliófilo e estudioso de botânica.  Ao verificar que se tratava de exemplar raro, escrito em latim e editado na Europa, versando sobre  nossa flora, ele sugeriu que o devolvêssemos em seu nome ao lugar de origem, e que o fizéssemos de modo a ressaltar a importância quer da preservação de bens históricos, quer da própria flora indígena.  Disse mais, que fizéssemos a devolução em homenagem a Ouro Preto e seu brilhante passado e à memória de seu bisavô, o farmacêutico João Soares da Silva Costa (pai de outro ilustre médico, Júlio Soares), formado nesta Escola de Farmácia em 1891

         2. O exemplar encadernado de cópias de três textos de Antônio José de Souza Pinto, boticário em Lisboa, editados por Luiz Maria da Silva Pinto, na Typografia De Silva de Ouro Preto, em 1834,  intitulados:

- PHARMACOPÉA  CHIMICA, MEDICA E CIRURGICA

- MATERIA MEDICA

- APPENDIX AO VADEMECUM – BREVE TRATADO DE

CIRURGIA FORENSE OU LEGAL

         3. Foto da AULA DE CAMPO do Curso de Farmácia, ministrada pelo Professor WILLIAM SCHWACKE, provavelmente nos arredores de Ouro Preto, em  1891.      .

         4. Foto da FARMÁCIA POJICHÁ, da cidade de Rio Novo, que ali funcionou, na Av. Benedito Valadares, por mais de cem anos  e pertenceu a José Ribeiro  Pojichá, graduado em Ouro Preto, em 1883.

         5. Poster da CARTA RÉGIA do Príncipe D. João, que documenta o INÍCIO DO ENSINO MÉDICO NO BRASIL, EM VILA RICA, EM 1801..  Cartas régias semelhantes foram expedidas a São Paulo e ao Rio de Janeiro, e talvez a outras cidades, mas a de Vila Rica foi a única que resultou, documentadamente,  em curso com produção regular de profissionais até a criação das Faculdades de Medicina..O curso é citado no livro de Pedro Salles, História da Medicina no Brasil, mas sua documentação histórica completa foi feita pelo historiador e decano dos cartunistas brasileiros, Fernando Pieruccetti, ouropretano, quando de seu estudo ainda inédito da história centenária da atual Escola Estadual Milton Campos (antes chamada Liceu Mineiro, Ginásio Mineiro e Colégio Estadual), onde lecionou Desenho, e que remonta à Vila Rica do século 18.

         6. Cópia do quadro pintado por FERNANDO PIERUCCETTI, mostrando a cena imaginada da chegada do segundo cirurgião-docente para ministrar as aulas acima referidas na SANTA CASA de Vila Rica.  As aulas do primeiro docente foram inicialmente ministradas no REAL HOSPITAL MILITAR, em uma de suas localizações, hoje em ruínas.

         Ao fazer tais doações, afirmei que me sentia em casa, pois sou neto do boticário Joaquim Alves Vilela e filho do farmacêutico João Salgado Filho e que as famílias Alves Vilela e Abreu Salgado são clãs de farmacêuticos.  Entre os primeiros, enumerei os farmacêuticos Pedro Alves Vilela, Demétrio Alves Vilela, Clyde Alves Vilela (estes dois formados na Escola de Ouro Preto), Manoel Clyde Vilela , José Ramilc Vilela, Maria Ilcram Vilela (esposa do farmacêutico Spencer Alvarenga, de outro clã semelhante), Luciana Vilela Alvarenga e Eugênia Lima Menezes (esposa do farmacêutico Antônio Juliano Breyner, de outro clã semelhante, ambos graduados na Escola de Ouro Preto, em 1982).   Entre os segundos, os fitoterapêutas Cadete, Antônio (Nhotó) e João Ferreira de Castro, o farmacêutico Moacir de Abreu Salgado (pioneiro entre os farmacêuticos-bioquímicos do Brasil) e os graduandos, também Vilelas, Marco Antônio Salgado, João Maurício Salgado e João Eustáquio Salgado (os dois últimos da Escola de Ouro Preto).  A observação, além do aspecto sentimental, é de interesse histórico, pois uma das fontes fundamentais para documentar a história das profissões, como medicina e farmácia, são as histórias das famílias, as autobiografias, as biografias e a história da vida privada,  hoje em pleno florescimento.

         No estudo que faço da história de minha cidade  de  Nepomuceno, no sul do Estado,  e no de minha família, é possível verificar a fase inicial de farmacêuticos licenciados, como Pedro Alves Vilela (que emigrou da região e veio a ser um dos fundadores de Ituiutaba, sendo pioneiro no oeste ao levar consigo a rica tradição dos boticários coloniais e imperiais) e de seu irmão Joaquim, muito mais jovem e treinado por ele, que sonharam para os filhos (no caso deste, Demétrio, da turma de 1911, e Clyde, de 1924) o diploma de Ouro Preto.  Outro licenciado, João Barbosa de Oliveira, competidor do Joaquim, quis o mesmo para o filho Antenor Barbosa (de 1908), de tal forma que a pequena cidade, na segunda geração, contava com seis egressos de Ouro Preto: Demétrio, Clyde, Antenor, aos quais se somaram Marcílio Lima (de 1904), Manoel José de Simas (de 1908) e Calipso Mentor de Menezes (de 1909), decidindo-se este por trabalhar na localidade vizinha de Coqueiral.  Minha cidade hoje é honrada por outros egressos desta  mesma Escola: Francisco de Calaes Moreira (de 1973 ), Henrique de Sagres Maia (de 19   ), Rosilene Botega (de 19   ) e  Eliseti Galvão (de 19   ), além dos estudantes mencionados..

         O entusiasmo daquela segunda geração, naturalmente aureolada de ciência, era tal que partiram para a criatividade, produzindo semi-ndustrialmente novos remédios e cosméticos, alguns de nomes saborosos, outros de sucesso para além da região e até premiados na exposição industrial do Centenário da Independência, no Rio de Janeiro, em 1922.. Fenômeno análogo ocorreu na odontologia e o exemplo da Cera do Dr Lustosa de S. J. del Rei é tão interessante que mereceria  espaço  no Centro de Memória de Ouro Preto, pois é formulação farmacêutica, e museu inteiro em S João..  Em minha cidade, ao lado da Cera, era popular para dor de dente o Guaiacol.  Meu pai criou remédio aparentemente mais eficaz que estes, de nome  Odontalgina e que virou unanimidade.  Vendia para os competidores mas não fornecia a fórmula.  Um dia  seu leal auxiliar confessou que recebeu tentadora oferta de suborno a troco do segredo.  Outra criação sua foi a modificação que fez nas clássicas gotas eupépticas, a que deu o nome de Gotas do Padre Vítor (santo milagroso da região, hoje em beatificação)  Seu sucesso foi tal que recebeu proposta de grande laboratório para produção industrial. Por sinal, a água de melissa, um eupéptico clássico, teria sido o pivô do primeiro processo judicial de patente, movido contra boticários por monges carmelitas, no final da Idade Média. Também o marketing comercial moderno teria sido inaugurado com medicamentos no século 17.  Quadrinhas premiadas de meu pai encontram-se nas coleções (a serem preservadas nos Centros de Memória) dos almanaques do Biotônico, do Bromil e do Capivarol (hoje objeto de teses, veja-se a da Profa.        )

         Meu tio Moacir foi pioneiro como farmacêutico-bioquímico, no final da década de 40, da clínica que o cardiologista Adauto Barbosa Lima (discípulo de Baeta Viana e responsável clínico na primeira cirurgia de circulação extra-corpórea no Brasil) esboçou montar em Nepomuceno, logo que regressou dos EUA.  No mundo universitário da medicina, em contato com os maiores especialistas, nunca encontrei um que o superasse em conhecimentos e habilidade no laboratório clínico. Mas, como seu laboratório ficava defronte nossa farmácia, acabou ocorrendo o que meu pai muito temia e que prenunciaria as críticas acumuladas pela nova especialidade entre farmacêuticos.  Um fazendeiro deixou na farmácia receita de pomada para aviar, com muita esperança de afinal se ver livre de doença crônica - e que pusessem  na conta  e no balcão para ele pegar.  Antes disso,  alguém deixou ali uma latinha de fezes para o Sêo Moacir examinar, e o fazendeiro levou esta em vez da pomada.  Foram atrás dele e não o acharam a tempo.  Quando voltou à cidade, meu pai apreensivo se surpreendeu com seu semblante amigável. - E a pomada?  - Ah sêo João, foi um santo remédio, mas como fede!

         Outro aspecto importante da história das farmácias e dos farmacêuticos é seu papel social.  A rede de boticas provavelmente foi o arcabouço do mais democrático  sistema de atenção à saúde vigente no Brasil e em outros países.  Várias teses de pós-graduação têm focalizado este fato, como a da Profa Ceres Pinheiro (De Estudante de Medicina a Médico no Interior, UNICAMP) e a da Profa Betânia Figueiredo ( A Arte de Curar, USP).  Quando convidei o notável médico Hermes de Paula para escrever seu livro sobre a história da medicina no norte de Minas, ele perguntou se não iria escandalizar com o título A MEDICINA DOS MÉDICOS E A OUTRA (UFMG), pois no sertão a outra era muito importante.  Não só aplaudi o título como apelei a que iniciasse a obra por aqueles versos de Pedro Canela que lá estão.  E  o momento mais alto do livro é quando fala da dedicação e da competência dos boticários.

         Ao lado da democracia atencional, a farmácia ocupou papel comunitário, não só como ponto de convivência, mas de referência política, educacional e de lazer. Para quem quisesse saber novidades em geral ou as últimas anedotas, as farmácias eram mais confiáveis que as barbearias (historicamente suas irmãs-gêmeas) e ambas mais que os demais lugares .A farmácia de meu pai foi marcante central humorística, no tempo feliz em que os cidadãos mais respeitáveis se ocupavam em pregar peças uns nos outros, tendo horário reservado a rodas de causos, mais de humor que de fofocas.  Até hoje é comum se ouvir pelos botecos da cidade:: - Quem aqui sabe aqueles causos engraçados do João Sargado? Outra maneira de os farmacêuticos amenizarem os dramas diariamente testemunhados era afixionar-se  a animais, plantas, esporte ou  arte. Meu pai era poeta e contista (contemporâneo de Carlos Drummond em Belo Horizonte), fruticultor e dava nome eruditos a seus animais.  Ele e meu tio Clyde fundaram o Clube de Xadrez 18 de Agosto, hoje o clube social da cidade, além de nossa farmácia ter sido  palco de memoráveis  torneios do jogo de dama..

Além disso, após a ditadura Vargas, houve grande efervescência política, na qual as farmácias entraram de cheio.  Vivi esta experiência em situação singular, pois nossa farmácia era o quartel general da UDN e a farmácia de meu tio Clyde era o do PSD.. Situações às vezes dramáticas, às vezes cômicas ocorreram quando ambos os lados tiveram direito a intensas comemorações coincidentes, por causa da vitória da UDN, com a eleição de Miltom Campos para governador, e a vitória do PSD , com a de Gaspar Dutra para presidente, em 1947.

Se o sonho dos boticários licenciados era ter sucessores diplomados, a maior parte destes queria um filho farmacêutico para herdar a farmácia e outro médico..  Eles próprios, tendo oportunidade, acumulavam os diplomas de farmacêutico e médico.  Um exemplo é Ismael Faria, o zeloso guardião da memória de  Guimarães Rosa e de seus colegas diplomados em medicina, em 1930, na hoje UFMG, que antes fora o farmacêutico de tradicional farmácia perto do Colégio Arnaldo. Houve lei que permitia a farmacêuticos ingresso direto no curso médico, o que resultou em turmas numerosas de estudantes, alguns já encanecidos.  A experiência permite a conclusão de que a atividade de auxiliar de farmácia ou de farmacêutico antes do curso médico é preparo melhor para a clínica do que o atual ciclo pré-clínico  de ciências biológicas.- e isso é coerente com a  tendência mais avançada da pedagogia médica.

 Peculiar é o caso de Aurélio Pires, um dos mais ilustres ex-alunos da Escola de Farmácia de Ouro Preto, que quis ser também médico e, não conseguindo, passou a sonho maior, criar uma escola médica.  Aceito sem dúvidas como o idealizador combativo da primeira Faculdade de Medicina de Minas (UFMG), não tem seu nome entre os médicos fundadores inscritos metalicamente na entrada do prédio.  Bem antes deste bronze, seu nome já fora imortalizado em mais que o bronze, no célebre poema de Pedro Nava, MESTRE AURÉLIO ENTRE AS ROSAS, que, segundo o farmacêutico Carlos Drummond (também ex-aluno de Pires), é um dos marcos iniciais da revolução modernista na literatura brasileira. Ainda menino, li, na biblioteca paterna, dois nomes de autores, que depois saberia admirar: Aurélio Pires e Jovelino Mineiro.

     Esta Faculdade de Medicina tem ligações francamente filiais com a Escola de Farmácia de Ouro Preto. De seus    fundadores, o farmacêutico Aurélio Pires e os médicos Alfredo Balena e Cornélio Vaz de Melo são egressos desta. Demais, o sucessor de Balena e terceiro diretor é o ouropretano, Adelmo Lodi.  Outro fundador ouropretano foi Antônio Aleixo. O rigor didático de Ouro Preto foi levado à nova Faculdade por outro  egresso, depois médico, Francisco de Paula Magalhães Gomes (de 1889), terror dos alunos na freqüência e no cálculo estequiométrico. Outros médicos ali docentes, antes farmacêuticos pela mesma Escola, foram Otaviano Ribeiro de Almeida (de 1906) e Olinto Orsini de Castro (de 1911). Joaquim de Santa Cecília foi colaborador de meu avô, Joaquim Alves Vilela, em Nepomuceno, tornou-se farmacêutico em Ouro Preto, em 1904, formou-se em medicina e veio a ser pioneiro da docência oftalmológica na nova escola médica.

Depois de toda esta história - mais testemunho sentimental que historiográfico - fica evidente que a doação da Faculdade filha à Escola mãe, intermediada por mim, não foi mais que coerente preito de gratidão, próprio para simbolizar e selar o congraçamento entre os dois Centros de Memória, com largo terreno comum a percorrer, a explorar e  a documentar.

 

O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da UFMG

[INCLUIR A FOTO DE MINHA PALESTRA]

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terça-feira, 1 de setembro de 2020



 

JOÃO VINÍCIUS SALGADO - MÚSICA E DESENHO

SOMEWHERE IN YOUR MIND
Ficou pronta mais uma gravação de uma música que compus na juventude. Quero manifestar minha gratidão ao meu grande amigo e parceiro Waldir "George Martin" Cunha por conseguir tornar a composição inicial em uma música afinada, com arranjos incríveis, mas mantendo a essência original! Foi uma música gravada em tempos de pandemia. Eu gravava e mandava para o Waldir, que mandava de volta. Por isso mesmo não há um filme da gravação da música. Em seu lugar coloco uma colagem de fotos dos ensaios e gravações unilaterais.
Esta música foi composta quando ainda estava no início do curso de medicina, mas a letra já anuncia minha "pegada" psiquiátrica de que, à época, nem fazia ideia!

https://www.facebook.com/jviniciuss/videos/3544970038848782/

 

 

DESENHANDO COM O LADO DIREITO DO CÉREBRO
Outro dia, meu filho João Mateus me pediu para desenhar o Pesadelo Monstruoso para o livro sobre dragões que ele estava escrevendo (para quem não tem filhos menores e não conhece o Soluço e o Banguela, favor assistir "Como treinar meu dragão"). Eu fiz o desenho de cima e ele: "Pô pai, você desenha bem mesmo! Como você consegue?". Eu disse: "Eu desenho com o lado direito do cérebro. Quer dizer, tento não simbolizar, mas desenhar exatamente o que vejo. Se eu simbolizar, ou seja, usar o hemisfério esquerdo, o dragão vai ficar desse jeito aqui (fiz o desenho de baixo). É rápido, você vai saber do que se trata, mas não vai ficar bacana, concorda?". Pelos desenhos posteriores dele, acho que ele captou a ideia!

 

 

 

COMENTÁRIO DO AVÔ joão amílcar: DESENHAR VAI SER FÁCIL PARA QUEM TEM UM PAI NEUROCIENTISTA