DOAÇÃO DE PEÇAS DO CENTRO DE MEMÓRIA DA MEDICINA (UFMG) AO
CENTRO DE MEMÓRIA DA FARMÁCIA (UFOP), INSPIRADA EM DOIS CLÃS DE FARMACÊUTICOS
João Amílcar Salgado
No dia 09/04/1999, em Ouro Preto,
tive a honra de entregar peças de significado histórico, doadas pelo Centro de
Memória da Medicina de Minas Gerais, ao Centro de Memória da Escola de Farmácia
da Universidade Federal de Ouro Preto, na solenidade de inauguração deste,
comemorativa dos 160 anos desta que foi a primeira escola de farmácia criada no
Brasil..
As
peças são as seguintes:
1.
O exemplar original do livro MYRTACEARUM
BRASILIENSIUM de Hjalmar Kiaerskou,
que fora doado ao Herbário Magalhães Gomes da Escola de Farmácia pelo
ilustre Dr Glaziou, em 08/04/1896, e foi adquirido em loja de livros
usados pelo membro de nossa equipe, Professor Paulo Pimenta de Figueiredo,
docente de pediatria, bibliófilo e estudioso de botânica. Ao verificar que se tratava de exemplar raro,
escrito em latim e editado na Europa, versando sobre nossa flora, ele sugeriu que o devolvêssemos
em seu nome ao lugar de origem, e que o fizéssemos de modo a ressaltar a
importância quer da preservação de bens históricos, quer da própria flora
indígena. Disse mais, que fizéssemos a
devolução em homenagem a Ouro Preto e seu brilhante passado e à memória de seu
bisavô, o farmacêutico João Soares da
Silva Costa (pai de outro ilustre médico, Júlio Soares), formado nesta
Escola de Farmácia em 1891
2.
O exemplar encadernado de cópias de três textos de Antônio José de Souza Pinto,
boticário em Lisboa, editados por Luiz Maria da Silva Pinto, na Typografia De Silva de Ouro Preto, em 1834,
intitulados:
- PHARMACOPÉA CHIMICA, MEDICA E CIRURGICA
- MATERIA MEDICA
- APPENDIX AO VADEMECUM – BREVE
TRATADO DE
CIRURGIA FORENSE OU LEGAL
3.
Foto da AULA DE CAMPO do Curso de Farmácia, ministrada pelo
Professor WILLIAM SCHWACKE, provavelmente nos arredores
de Ouro Preto, em 1891. .
4.
Foto da FARMÁCIA POJICHÁ, da cidade
de Rio Novo, que ali funcionou, na
Av. Benedito Valadares, por mais de cem anos
e pertenceu a José Ribeiro Pojichá, graduado em Ouro Preto, em 1883.
5.
Poster da CARTA RÉGIA do Príncipe D. João, que documenta o INÍCIO DO ENSINO MÉDICO NO BRASIL, EM VILA
RICA, EM 1801.. Cartas régias
semelhantes foram expedidas a São Paulo e ao Rio de Janeiro, e talvez a outras
cidades, mas a de Vila Rica foi a única que resultou, documentadamente, em curso com produção regular de
profissionais até a criação das Faculdades de Medicina..O curso é citado no
livro de Pedro Salles, História da Medicina no Brasil, mas sua documentação histórica completa foi
feita pelo historiador e decano dos cartunistas brasileiros, Fernando Pieruccetti, ouropretano,
quando de seu estudo ainda inédito da história centenária da atual Escola
Estadual Milton Campos (antes chamada Liceu Mineiro, Ginásio Mineiro e Colégio
Estadual), onde lecionou Desenho, e que remonta à Vila Rica do século 18.
6.
Cópia do quadro pintado por FERNANDO
PIERUCCETTI, mostrando a cena imaginada da chegada do segundo cirurgião-docente para ministrar as
aulas acima referidas na SANTA CASA de
Vila Rica. As aulas do primeiro
docente foram inicialmente ministradas no REAL
HOSPITAL MILITAR, em uma de suas localizações, hoje em ruínas.
Ao
fazer tais doações, afirmei que me sentia em casa, pois sou neto do boticário
Joaquim Alves Vilela e filho do farmacêutico João Salgado Filho e que as
famílias Alves Vilela e Abreu Salgado são clãs de farmacêuticos. Entre os primeiros, enumerei os farmacêuticos
Pedro Alves Vilela, Demétrio Alves Vilela, Clyde Alves Vilela (estes dois
formados na Escola de Ouro Preto), Manoel Clyde Vilela , José Ramilc Vilela,
Maria Ilcram Vilela (esposa do farmacêutico Spencer Alvarenga, de outro clã
semelhante), Luciana Vilela Alvarenga e Eugênia Lima Menezes (esposa do farmacêutico
Antônio Juliano Breyner, de outro clã semelhante, ambos graduados na Escola de
Ouro Preto, em 1982). Entre os
segundos, os fitoterapêutas Cadete, Antônio (Nhotó) e João Ferreira de Castro,
o farmacêutico Moacir de Abreu Salgado (pioneiro entre os
farmacêuticos-bioquímicos do Brasil) e os graduandos, também Vilelas, Marco
Antônio Salgado, João Maurício Salgado e João Eustáquio Salgado (os dois
últimos da Escola de Ouro Preto). A
observação, além do aspecto sentimental, é de interesse histórico, pois uma das
fontes fundamentais para documentar a história das profissões, como medicina e
farmácia, são as histórias das famílias, as autobiografias, as biografias e a
história da vida privada, hoje em pleno
florescimento.
No
estudo que faço da história de minha cidade
de Nepomuceno, no sul do
Estado, e no de minha família, é
possível verificar a fase inicial de farmacêuticos licenciados, como Pedro
Alves Vilela (que emigrou da região e veio a ser um dos fundadores de
Ituiutaba, sendo pioneiro no oeste ao levar consigo a rica tradição dos
boticários coloniais e imperiais) e de seu irmão Joaquim, muito mais jovem e
treinado por ele, que sonharam para os filhos (no caso deste, Demétrio, da
turma de 1911, e Clyde, de 1924) o diploma de Ouro Preto. Outro licenciado, João Barbosa de Oliveira,
competidor do Joaquim, quis o mesmo para o filho Antenor Barbosa (de 1908), de
tal forma que a pequena cidade, na segunda geração, contava com seis egressos
de Ouro Preto: Demétrio, Clyde, Antenor, aos quais se somaram Marcílio Lima (de
1904), Manoel José de Simas (de 1908) e Calipso Mentor de Menezes (de 1909),
decidindo-se este por trabalhar na localidade vizinha de Coqueiral. Minha cidade hoje é honrada por outros
egressos desta mesma Escola: Francisco
de Calaes Moreira (de 1973 ), Henrique de Sagres Maia (de 19 ), Rosilene Botega (de 19 ) e
Eliseti Galvão (de 19 ), além
dos estudantes mencionados..
O
entusiasmo daquela segunda geração, naturalmente aureolada de ciência, era tal
que partiram para a criatividade, produzindo semi-ndustrialmente novos remédios
e cosméticos, alguns de nomes saborosos, outros de sucesso para além da região
e até premiados na exposição industrial do Centenário da Independência, no Rio
de Janeiro, em 1922.. Fenômeno análogo ocorreu na odontologia e o exemplo da
Cera do Dr Lustosa de S. J. del Rei é tão interessante que mereceria espaço
no Centro de Memória de Ouro Preto, pois é formulação farmacêutica, e museu
inteiro em S João.. Em minha cidade, ao
lado da Cera, era popular para dor de dente o Guaiacol. Meu pai criou remédio aparentemente mais
eficaz que estes, de nome Odontalgina e
que virou unanimidade. Vendia para os
competidores mas não fornecia a fórmula.
Um dia seu leal auxiliar
confessou que recebeu tentadora oferta de suborno a troco do segredo. Outra criação sua foi a modificação que fez
nas clássicas gotas eupépticas, a que deu o nome de Gotas do Padre Vítor (santo
milagroso da região, hoje em beatificação)
Seu sucesso foi tal que recebeu proposta de grande laboratório para
produção industrial. Por sinal, a água de melissa, um eupéptico clássico, teria
sido o pivô do primeiro processo judicial de patente, movido contra boticários
por monges carmelitas, no final da Idade Média. Também o marketing comercial moderno teria sido inaugurado com medicamentos
no século 17. Quadrinhas premiadas de
meu pai encontram-se nas coleções (a serem preservadas nos Centros de Memória)
dos almanaques do Biotônico, do Bromil e do Capivarol (hoje objeto de teses,
veja-se a da Profa. )
Meu
tio Moacir foi pioneiro como farmacêutico-bioquímico, no final da década de 40,
da clínica que o cardiologista Adauto Barbosa Lima (discípulo de Baeta Viana e
responsável clínico na primeira cirurgia de circulação extra-corpórea no
Brasil) esboçou montar em Nepomuceno, logo que regressou dos EUA. No mundo universitário da medicina, em
contato com os maiores especialistas, nunca encontrei um que o superasse em
conhecimentos e habilidade no laboratório clínico. Mas, como seu laboratório
ficava defronte nossa farmácia, acabou ocorrendo o que meu pai muito temia e
que prenunciaria as críticas acumuladas pela nova especialidade entre
farmacêuticos. Um fazendeiro deixou na
farmácia receita de pomada para aviar, com muita esperança de afinal se ver
livre de doença crônica - e que pusessem
na conta e no balcão para ele
pegar. Antes disso, alguém deixou ali uma latinha de fezes para o
Sêo Moacir examinar, e o fazendeiro levou esta em vez da pomada. Foram atrás dele e não o acharam a
tempo. Quando voltou à cidade, meu pai
apreensivo se surpreendeu com seu semblante amigável. - E a pomada? - Ah sêo João, foi um santo remédio, mas como
fede!
Outro
aspecto importante da história das farmácias e dos farmacêuticos é seu papel
social. A rede de boticas provavelmente
foi o arcabouço do mais democrático
sistema de atenção à saúde vigente no Brasil e em outros países. Várias teses de pós-graduação têm focalizado
este fato, como a da Profa Ceres Pinheiro (De Estudante de Medicina a Médico no
Interior, UNICAMP) e a da Profa Betânia Figueiredo ( A Arte de Curar,
USP). Quando convidei o notável médico
Hermes de Paula para escrever seu livro sobre a história da medicina no norte
de Minas, ele perguntou se não iria escandalizar com o título A MEDICINA DOS
MÉDICOS E A OUTRA (UFMG), pois no sertão a outra era muito importante. Não só aplaudi o título como apelei a que
iniciasse a obra por aqueles versos de Pedro Canela que lá estão. E o
momento mais alto do livro é quando fala da dedicação e da competência dos boticários.
Ao
lado da democracia atencional, a farmácia ocupou papel comunitário, não só como
ponto de convivência, mas de referência política, educacional e de lazer. Para
quem quisesse saber novidades em geral ou as últimas anedotas, as farmácias
eram mais confiáveis que as barbearias (historicamente suas irmãs-gêmeas) e
ambas mais que os demais lugares .A farmácia de meu pai foi marcante central
humorística, no tempo feliz em que os cidadãos mais respeitáveis se ocupavam em
pregar peças uns nos outros, tendo horário reservado a rodas de causos, mais de
humor que de fofocas. Até hoje é comum
se ouvir pelos botecos da cidade:: - Quem aqui sabe aqueles causos engraçados
do João Sargado? Outra maneira de os
farmacêuticos amenizarem os dramas diariamente testemunhados era
afixionar-se a animais, plantas, esporte
ou arte. Meu
pai era poeta e contista (contemporâneo de Carlos Drummond em Belo Horizonte),
fruticultor e dava nome eruditos a seus animais. Ele e meu tio Clyde fundaram o Clube de
Xadrez 18 de Agosto, hoje o clube social da cidade, além de nossa farmácia ter
sido palco de memoráveis torneios do jogo de dama..
Além disso,
após a ditadura Vargas, houve grande efervescência política, na qual as
farmácias entraram de cheio. Vivi esta
experiência em situação singular, pois nossa farmácia era o quartel general da
UDN e a farmácia de meu tio Clyde era o do PSD.. Situações às vezes dramáticas,
às vezes cômicas ocorreram quando ambos os lados tiveram direito a intensas
comemorações coincidentes, por causa da vitória da UDN, com a eleição de Miltom
Campos para governador, e a vitória do PSD , com a de Gaspar Dutra para
presidente, em 1947.
Se o sonho dos
boticários licenciados era ter sucessores diplomados, a maior parte destes
queria um filho farmacêutico para herdar a farmácia e outro médico.. Eles próprios, tendo oportunidade, acumulavam
os diplomas de farmacêutico e médico. Um
exemplo é Ismael Faria, o zeloso guardião da memória de Guimarães Rosa e de seus colegas diplomados
em medicina, em 1930, na hoje UFMG, que antes fora o farmacêutico de
tradicional farmácia perto do Colégio Arnaldo. Houve lei que permitia a
farmacêuticos ingresso direto no curso médico, o que resultou em turmas
numerosas de estudantes, alguns já encanecidos.
A experiência permite a conclusão de que a atividade de auxiliar de
farmácia ou de farmacêutico antes do curso médico é preparo melhor para a
clínica do que o atual ciclo pré-clínico
de ciências biológicas.- e isso é coerente com a tendência mais avançada da pedagogia médica.
Peculiar é o caso de Aurélio Pires, um dos
mais ilustres ex-alunos da Escola de Farmácia de Ouro Preto, que quis ser
também médico e, não conseguindo, passou a sonho maior, criar uma escola
médica. Aceito sem dúvidas como o
idealizador combativo da primeira Faculdade de Medicina de Minas (UFMG), não
tem seu nome entre os médicos fundadores inscritos metalicamente na entrada do
prédio. Bem antes deste bronze, seu nome
já fora imortalizado em mais que o bronze, no célebre poema de Pedro Nava,
MESTRE AURÉLIO ENTRE AS ROSAS, que, segundo o farmacêutico Carlos Drummond
(também ex-aluno de Pires), é um dos marcos iniciais da revolução modernista na
literatura brasileira. Ainda menino, li, na biblioteca paterna, dois nomes de
autores, que depois saberia admirar: Aurélio Pires e Jovelino Mineiro.
Depois de toda
esta história - mais testemunho sentimental que historiográfico - fica evidente
que a doação da Faculdade filha à Escola mãe, intermediada por mim, não foi
mais que coerente preito de gratidão, próprio para simbolizar e selar o
congraçamento entre os dois Centros de Memória, com largo terreno comum a percorrer,
a explorar e a documentar.
O autor é professor titular de Clínica
Médica e pesquisador em História da Medicina da UFMG
[INCLUIR A FOTO DE MINHA PALESTRA]
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