Ênio Leão – marco internacional Do
ensino pediátrico
João Amílcar Salgado
Em meu livro de
memórias, O RISO DOURADO DA VILA, descrevo como conheci o então
assistente da clínica pediátrica Ênio Leão: Da
pediatria cada um de nós saiu pediatra acabado, pois, graças à clarividência do
professor Berardo Nunan, fazíamos com autonomia um profuso atendimento em
ambulatório (inspirador da expansão da pediatria e do ensino ambulatorial em
geral em 1975), estimulados por cinco craques do treinamento em serviço: Ênio
Leão (formador desde aí da brilhante escola pediátrica mineira e pediatra de
meus filhos), Augusto Severo, Mário Moreira, Celso Lobo e Achiles Tenuta.
Já como colegas
na docência, o Ênio e eu, seu vice, fomos designados para a comissão destinada
a implantar a residência médica no Hospital das Clínicas. Isso significa que os
primeiros passos da residência médica na Universidade Federal de Minas Gerais
estiveram muito próximos dos ideais inaugurais desta modalidade de
treinamento. Essa concepção influiria a
seguir no modelo de internato pré-formatura, inclusive rural, estabelecido em
1975. Infelizmente a residência sofreu
ingerências vindas de cima que a levaram para rumo oposto e em condições
degradantes.
Foram, inicialmente, impostos critérios
para impedir a admissão de candidatos considerados subversivos pela ditadura
vigente. Posteriormente veio uma espécie de administração própria desvinculada
de qualquer diretriz da graduação, obedecendo aí ditames não só oriundos da
burocracia ministerial, mas originários das corporações de especialistas. Para tanto, foi criada uma absurda comissão
nacional de residência médica, com dois absurdos adicionais: devia haver nela
representantes militares e de hospitais lucrativos. Assim, a residência, em vez de acrescentar
treinamento em pesquisa-e-ensino de alto nível às graduações terminais, foi
transformada no monstrengo atual, ou seja, servir de muleta pedagógica a
precaríssimos cursos de graduação, com o fim escuso de usar os pobres mal-acabados
profissionais como mão-de-obra barata. E as clínicas
ou serviços que os recebem como
treinandos, pagando-os tão mal, ainda adquirem o título de instituição de ensino pós-graduado!!!
Da discussão daquela
residência ideal e decente, surgiu a necessidade de uma comissão de
padronização hospitalar, outra novidade, composta de subcomissões para várias
áreas, sendo a mais importante a subcomissão de padronização de
medicamentos. E lá fomos o Ênio Leão e
eu, seu vice, para a padronização. Antes
tínhamos criado mais outra novidade, a farmácia hospitalar, entregue à
competência da farmacêutica Zildete Pereira de Souza, que logo se tornou a
maior autoridade nesta área no país. A seriedade decorrente fez surgir um
primeiro drama.
Uma grande
empresa multinacional estava lançando novo antibiótico. Com base no que antes
acontecia, escolheu nosso hospital como trampolim de marketing. Mas nossa comissão deu parecer negativo, assinado pelo
presidente Ênio Leão, segundo o qual o produto ainda não contava com estudos
isentos sobre sua segurança. O gerente geral veio de São Paulo e ofereceu
viagem ao Caribe para nós dois. Não aceitamos. O diretor da Faculdade nos
chamou a uma reunião e só aceitamos comparecer sem a presença do gerente geral.
O diretor acabou subscrevendo o parecer inicial.
Quase ao mesmo
tempo, se esboçam os primeiros mestrados e doutorados. E nosso Ênio, com toda
sua imensa cultura clínica e sua admirável sintonia com o progresso científico,
se viu desestimulado a não prosseguir na elaboração de sua tese sobre escorbuto
infantil. Correu a notícia de que ou a gente se matriculava num mestrado ou
desistia da carreira universitária. Leão, não tendo condições para regredir às
exigências colegialescas do mestrado, quis jogar ao lixo a tese de
livre-docência que preparava. Nós, seus admiradores, discordamos totalmente de
sua atitude e recolhemos com carinho o original da pesquisa, pois aquele estudo
era único e destinado a grande repercussão.
Tanto fizemos
que ele afinal defendeu a tese como doutorado, por crédito de notório saber. O
aplauso unânime, inclusive de fora de Minas, o estimulou a ancorar com redobrado
entusiasmo quer a referida expansão a seguir ocorrida no Departamento de
Pediatria (antes uma pequena disciplina), quer a própria produção científica dos
membros, veteranos e jovens, da crescente equipe docente. Sim, o nosso hoje tão elogiado
mestrado-doutorado pediátrico adveio dessas peripécias embrionárias, sendo
fruto do esforço e da capacidade do professor Edward Tonelli, outro grande
vitorioso sobre as dificuldades daquela época. Agora, ao contrário, a já madura
pos-graduação pediátrica chega a influir em projetos congêneres de dentro e
fora da saúde e de dentro e fora de Minas.
O crescimento
de nossa pediatria foi relatado, com auxílio de pirâmides demográficas comparativas
entre o 1º e o 3º mundos, a Vic Neufeld. Ele é o líder da inovação educacional
desenvolvida na universidade canadense de McMaster e passou alguns dias conosco. Considerou irmãs nossas inovações, mas
ressaltou sem precedentes algumas que só conheceu aqui, especialmente o
internato rural, o ambulatório periférico e o ensino pediátrico
Outra conquista
garantida pela liderança de Leão foi a publicação de um manual de pediatria
ambulatorial, que compôs o conjunto formado pelos manuais de ambulatório para
adulto e de cirurgia ambulatorial.
Embora o projeto inicial, de 1976, pedisse nova concepção de texto, os
livros afinal editados foram os possíveis nas circunstâncias de então e o
referente à pediatria foi o de maior
impacto, em virtude do ineditismo da nova concepção de medicina geral de
crianças..
Houve depois um
seminário aqui organizado pelo inesquecível professor Antônio Cândido Melo
Carvalho, com a presença de inovadores curriculares dos quatro continentes. Na
exposição que fiz de nosso processo curricular, perguntei se algum dos
participantes sabia de alguma outra experiência semelhante ou com igual ou
maior carga horária
Diante disso, ficou
demonstrado que Ênio Leão está na origem e na liderança de tal primazia, ou
seja, representa incontestável marco
mundial do ensino pediátrico.