João Amílcar Salgado

terça-feira, 11 de setembro de 2012


OS 90 ANOS DE ALZIRA RABELO VILELA DE FIGUEIREDO
De tão espontaneamente bela se esqueceu de envelhecer
João Amílcar Salgado
            O primeiro Figueiredo foi o herói astúrio-cantábrico que, armado de meio tronco de uma figueira, salvou cem donzelas germânicas quase-entregues a lúbrico califa. Custa-me acreditar em reencarnação, mas, por causa da cor dos olhos visigodos de dona Alzira, gostaria de crer ser ela a reencarnação daquela linda moça que o primeiro Figueiredo escolheu para esposa, entre as cem resgatadas.
            Todos os suaves encantos  de sua personalidade sei que herdou da mãe Clara Rabelo, muito bem conhecidos por todos, na autenticidade sulmineira de ambas.  O irmão desta, o farmacêutico Quinca Rabelo, colega universitário de meu pai em Alfenas e eterno apaixonado por minha tia Bebete (ele e ela solteiros por toda a vida), foi o cidadão mais culto de Campos Gerais de seu tempo. Ele dizia descender do primeiro Rabelo de Minas, o letrado de Ouro Preto e Pitangui José Rabelo Perdigão.  Este ex-militar e depois abastado minerador está celebrizado na história mineira, por ter documentado a tragédia da primeira fome epidêmica no país, quando a cobiça do ouro fez, de toda uma população recém-enriquecida, paradoxalmente esquecida do que comer.
            As duas linhagens citadas e mais a Garcia e a Vilela culminaram no ser harmonioso que é a dona Alzira. Seu ramo Vilela é de Serranos e decorre de Maria Garcia Vilela, esposa de José Alvares de Figueiredo, o fundador de Boa Esperança. Assim, ela, pelo pai Manoel Vilela Figueiredo, descende do casal Diogo Garcia – Júlia Maria da Caridade, esta a principal das famosas Três Ilhoas, cuja prole se estabeleceu na região de Lavras e seus distritos (Carrancas, Nepomuceno, Três Pontas, Campos Gerais, Varginha e Carmo da Cachoeira), e para aí atraíram primos derivados das outras duas açoreanas.
            Marcos Chaves Figueiredo, que é ao mesmo tempo excelente médico e notável linhagista, retribuiu a riqueza de dados a ele fornecidos pela dona Alzira, brindando-a com enorme gráfico da árvore genealógica dos Figueiredo. Trabalho exaustivo e rigoroso que vasculha essa gente ao longo dos últimos séculos, no caso chegando até a Ana Luiza, a primeira dos bisnetos da homenageada.
            Percorrendo aquelas intrincadas linhas da parentalha, a dona Alzira se entusiasmou e, perdendo a timidez usual, nos deu prova cabal do quanto ela própria era historiadora, e das melhores. Na época de eleições acirradas, mais  no plano municipal, mas também nas esferas estadual e federal, ela foi testemunha presencial  de reuniões com  figuras marcantes da política, seja em sua casa seja na de seu sogro. Para mim, ela foi a fonte mais fidedigna e equilibrada das circunstancias da rumorosa morte do irmão de sua sogra.  Ou então da rocambolesca migração dos Caiafa até Minas Gerais.
            A educadora e musicista Márcia Vilela Souza me relatou que, quando era elogiada como a moça mais bonita de Boa Esperança, respondia que, se o elogio se estendesse ao âmbito regional, ela o cederia sem inveja para a mais bela da redondeza: Alzira Rabelo de Figueiredo. Disse que todos os rapazes eram apaixonados por esta, mas o médico recém-formado Carlos Caiafa Filho a cercava de ciúmes tão possessivos que ninguém teve chance a não ser ele de se casar com ela, em memorável boda. E os muitos filhos, contados acima da dúzia, não diminuiu em nada a distintiva estampa dessa inimitável noiva.
            Caiafa Filho relatou suas memórias no livro VIDA DE MENINO ANTIGO (1986). Seu curso médico e seu casamento seriam descritos no segundo volume, que não chegou a escrever. Do que conta nesse primeiro é possível inferir o glamour e a alegria da juventude de Campos Gerais, desfrutados pela normalista Alzira naquele ditoso tempo.
            As grandes fazendas dessa esplendorosa região eram célebres, por exemplo a do Paraíso , a Ariadnópolis e a da Serra. Nesta, Alzira passou a infância e depois foi professora, em cavalgadas diárias.. Quando visitamos a magnífica edificação, para que o Carlos Amílcar e o João Vinícius a conhecessem, antes que algum malvado a demolisse, a dona Alzira reviveu ali, com muitos causos, a azáfama do dia-a-dia de antigamente.
            Para melhor encaminhar a filharada, Carlos e Alzira vieram para a Capital e aqui voltou a dar aulas, com visível satisfação e justo orgulho, por ainda aproveitar sua jamais perdida competência pedagógica. E mais mestra do que nunca ela o é no carinho igualitário por netos, bisnetos e trinetos. Teve de enfrentar o falecimento de dois filhos e do esposo e nessa sucessão de golpes atrozes é que todos nos encantamos com a estatura dessa mulher de rija têmpera, desse ser humano raro, dessa  dama mineira sem igual.
Em seus 90 anos, a dona Alzira, rodeada de tantos descendentes e amigos, merece  ser cumulada de todas as galanterias que pudermos formular, de todas as loas que pudermos entoar e de todos os louvores que pudermos tributar a uma heroína ao mesmo tempo da ternura  e da bravura..
            

segunda-feira, 10 de setembro de 2012


Brinde à cidade de Cristais
João Amílcar Salgado
       
       Cristais é onde algumas das tintas mais fortes da história de Minas e do Brasil não conseguem sobrepor-se à paisagem de incomensurável beleza. De fato, nela se demarcam tanto o passado, por acontecimentos de bravura e drama, como o presente, pelo aprazível acolhimento, humano e físico.
       Escassas notícias houve sobre esta região ao longo de dois séculos, desde o desembarque europeu no Brasil. Duas muralhas, a serra do Mar e a da Mantiqueira, serviam de barreira à penetração colonial do futuro chão de Minas. Os bandeirantes, antes de descobridores de ouro, eram caçadores de indígenas, para serem escravizados e vendidos.  Com esse mercado acumularam capital para financiar a busca do ouro. Os índios eram facilmente aprisionados ao norte do rio Paraíba, quando, acossados até o aclive da Mantiqueira, dali não logravam escapar. Até que os mais insubmissos passaram a esgueirar-se por mais de uma garganta da cordilheira. Quando os perseguidores afinal desvendaram suas trilhas, toparam do lado de cá procedimentos de guerrilha. O contingente mais  desafiador se sentia protegido ao norte do rio Grande. Os algozes enfurecidos se reforçaram de gente e de armas e cruzaram o rio mais estreito a leste.  Afinal flanquearam e sitiaram aqueles bravos no ângulo entre uma alta serra e o rio volumoso. Este beco-sem-saída deixou os perseguidos em pânico, ainda mais porque o terreno, na época, era semelhante ao atual pantanal mato-grossense. E foi assim que o magnífico panorama desse local emoldurou o impiedoso massacre da totalidade dos indígenas para aí tangidos. Ficou a lenda de que era possível sempre ouvir, na noite daquelas águas, o gemido das milhares de vítimas.
56 anos depois, se deu outro cerco e se fez outro genocídio, desta vez dos quilombolas. Estes eram ex-escravos negros que  tinham fugido de infames grilhões nas Lavras do Funil. Julgaram que aquele lindo lugar, sendo cheio de cristais mas escasso de ouro, não atrairia eventuais perseguidores. Assim aconteceu, até que houve uma decisão, não de garimpeiros, mas de tropas a serviço do governo provincial, para  exterminá-los. 
Os quilombolas sobreviventes foram banidos para bem distante, no rumo da Farinha Podre, e aquela encantadora paragem passou a ser cobiçada por posseiros, grileiros e aventureiros. Foi finalmente comprada como sesmaria por um opulento senhor, auto-apelidado de Frazão, antes enriquecido nas lavras do rio Paraopeba. Seus descendentes hoje são ilustres cidadãos da cidade, a qual, depois da usina de Furnas, não manifesta qualquer traço desse passado de conflito e dor..
E para coroar tudo isso, em meio ao mesmo antigo cenário, agora  com a sedução multiplicada pelo represamento das águas,  a cidade foi brindada com a família de um casal de médicos, que são a bênção que faltava  para fecho de tão fascinante história. Vieram morar na cidade o cirurgião Gilberto Lino Vieira e a pediatra Penha Furtado Campos Vieira.