CATAÇÃO DE RISCO
João Vinícius Salgado
João Amílcar Salgado
Na cidade sulmineira
de Nepomuceno, logo após a ditadura Vargas, a tensão política ficou alta. Era a
conseqüência natural do entusiasmo pela redemocratização. Assim se reuniram as
condições para que um dentista, Sílvio Veiga, e um farmacêutico, João Salgado
Filho, caracterizassem uma entidade clínica: a CATAÇÃO-DE-RISCO.
O Sílvio Veiga entrou de
cheio na disputa eleitoral, dirigindo o jornal 29 de Outubro. Dirigia
também o serviço de alto-falante onde o locutor era o Nadinho-do-Sô-Bem. O
Nadinho leu: - Soubemos que o delegado Júlio Lima andou dizendo que
nosso serviço de alto-falante é bobagem,
já que a prefeitura de Nepomuceno é um abacaxi. Nosso diretor, dr. Sílvio
Veiga, responde que, se é abacaxi, deve
ser um muito doce, porque o dr. Rubem Ribeiro chupou esse abacaxi durante quinze anos e não largou um minuto.
Depois dessas e outras, o
Sílvio chega à farmácia do Salgado e diz estar alarmado com ele próprio. Não
conseguia andar sem evitar pisar nos riscos do passeio. O farmacêutico deu-lhe
um frasco com drágeas de complexo de vitamina B (remédio em moda), dizendo que,
depois da medicação e das eleições, o aguerrido odontólogo estaria ótimo.
Quinze dias depois, o Sílvio voltou, porque a coisa piorou. Agora era o contrário: só conseguia caminhar se fosse
catando os riscos para pisar neles.
- Salgado, você já leu
em algum livro sobre estes sintomas, que será o que eu tenho? - Já li sim, se você começou catando os
riscos para evitar pisá-los e agora os
está catando, exatamente para pisá-los, o diagnóstico está completo! - E que doença é essa? - Já foi muito
estudada e não é grave, chama-se CATAÇÃO-DE-RISCO, cada um de nós, alguma vez
na vida, já catou risco – continue com a
vitamina...
Tempos depois, o filho do
farmacêutico, então estudante de medicina, acompanhava sua tia em consulta ao professor Lucas Machado. - Que a senhorita sente? - Ah doutor, estou numa catação de risco
danada! - O quê?!..., a senhorita está no quê?!...
E o estudante teve de dar uma aula ao consagrado
mestre sobre a endemia nepomucenense.
Ele ouviu de olhos arregalados, achou tudo interessantíssimo e acabou
recordando que a expressão não lhe era estranha. De fato, tinha várias clientes
nepomucenenses.
O Sílvio Veiga, depois de
ter parado de catar risco, perguntou onde o Salgado lera sobre
catação-de-risco. O farmacêutico, que era um tremendo humorista, disse que nada
ainda havia sido publicado e nem o nome da doença constava de livro ou revista.
Mas, para provar que aquilo não era pura invenção, citou o caso mais
impressionante de catação-de-risco de que tivera notícia. Ocorreu no
consultório do Dr. Matias de Vilhena, que foi o maior clínico de São Paulo e
era campanhense.
Um homem chegou para
consultar porque, dia e noite, parecia ter um passarinho dentro do ouvido. O
minucioso exame revelou que não havia lesão, nem no ouvido, nem no cérebro.
Mesmo assim, o hábil médico disse que ia operá-lo e deu-lhe um remédio para
dormir. Quando o paciente acordou, o doutor estava com um passarinho na mão e
lhe disse: Agora o senhor está livre deste bichinho!
Para surpresa do próprio Dr. Vilhena, o homem ficou
de fato completamente curado. Passados
cinco anos, o clínico encontrou, por acaso, o ex-cliente e, por ser muito
escrupuloso, sentiu necessidade de revelar seu truque. Contou-lhe que aquilo
fora simulado. Resultado: o passarinho voltou a cantar no ouvido do pobre
coitado...
Recentemente o filme MELHOR
IMPOSSÍVEL ganhou o Oscar, exibindo vergonhoso plágio, pois o ator Jack
Nicholson vive ali personagem atormentada por quadro literal de
catação-de-risco. Pelo enredo, ele é um novaiorquino que se vale da catação
para blindar o coração contra a ternura.
Diante disso, o eminente cirurgião e clínico José Maria Veiga Azzi,
sobrinho do Sílvio, e os presentes autores, neto e filho do farmacêutico, estão
estudando como entrar com processo de direito autoral contra os produtores da
fita.
Mais recentemente, também,
o Guga, tenista brasileiro campeão do mundo, apareceu no vídeo evitando pisar
nos riscos da quadra, ao sair de um jogo. Tal catação-de-risco explica a
inconstância de seu desempenho E não é a primeira vez que nossa gente é
remedada, pois no filme O ÜLTIMO TANGO EM PARIS, o ator Marlon Brando
comete outro plágio, desta vez contra o Passata, pretenso tanguista
nepomucenense, que muitos anos antes de Brando, viveu, no cabaré Montanhês, a
cena final da fita. Nossa querida cidade
não pode continuar tolerando isso.
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O primeiro autor é mestre pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) e doutor pela Universidade de São Paulo, em
neurociências, e o segundo
é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da
Medicina da UFMG.