João Amílcar Salgado

sexta-feira, 8 de abril de 2016

AGRIPA VASCONCELOS
Mineiro, médico, poeta, historiador e ficcionista - a ser entronizado ao lado de Nava e Rosa

João Amílcar Salgado
            Agripa Vasconcelos foi homenageado em 8/4/16 na Academia Mineira de Letras por seus 120 anos. Ele e Arnaldo Antônio Elian, também médico, são nascidos em Matozinhos, Minas. Com ambos, Matozinhos sobressai no mais seleto cenário da medicina brasileira.  Os Vasconcelos são vasta família no Brasil, principalmente em Minas.  O primeiro historiador de Minas é Vasconcelos e o segundo é seu filho. Ambos são Diogo. Daí que para um terceiro seria fácil ser o inconfundível autor de obras-primas, na categoria  da  ficção histórica.
            No Centro de Memória da Medicina estudamos seis aspectos de Agripa pouco conhecidos: 1) o médico, 2) o orador de sua turma, 3) o historiador atrás do ficcionista 4) o poeta, documentado por sua filha Mara Mancini,  5) sua amizade com o erudito médico lavrense Ataúlpho Costa Ribeiro, desassombrado nietzschiano,  a quem presenteou com o soneto ADOLESCENTE, inédito, 6) sua atividade clínica em Patos de Minas, pesquisada pelo médico e historiador Giovanni Caixeta Ribeiro. Na faculdade do Rio, foi colega do notável médico Agostinho Paolucci, de Barbacena. No livro AGOSTINHO PAOLUCCI O APÓSTOLO DA MEDICINA (2010), que o filho Ruy Carlos, outro notável médico (e também artista plástico e humanista) publicou, é possível ter ideia do curso médico de Agripa e, decorrentemente, de sua competência clínica. De minha parte, além de apreciá-lo como historiador de Minas e historiador da medicina, o incluí no estudo comparativo de oradores de turma: além dele, Carlos Drummond, Odilon Behrens (contraposto a Pedro Nava) e Guimarães Rosa (contraposto ao paraninfo Samuel Lib|ânio).
            A filha Mara, na aula que deu sobre o pai no Curso de História da Medicina, emocionou a todos e foi ovacionada pelos estudantes quando, com imensa doçura e perfeita perfórmance, declamou CHUVA DO MAR.

CHUVA DO MAR
                             
(No  baixo e no médio rio Doce, chamam as chuvas temporárias, chuvas do mar -  talvez por  serem trazidas pelos ventos do Atlântico.)

Quando Raquel casou, naquela tarde mansa,
Vi desfeito de vez meu sonho de criança...
Um desespero atroz meu ser avassalou !
Mas alguém que conhece os mistérios do mundo
Num sussurro me disse um conselho profundo:
- Isso é chuva do mar. Vai passar.
                                                                     E passou.

Quando, ainda mocinho, eu senti, doido de ira,
Que, parecendo certo, era tudo mentira
O amor que me jurara a pérfida Margot.
Quis morrer - mas alguém que conhece esta vida
Me falou, sem calor, mas em frase sentida:
- Isso é chuva do mar. Vai passar.
                                                                     E passou.

Quando Ofélia seguiu seu destino sombrio,
Senti, como ainda sinto, o coração vazio!...
Faz tanto tempo já que nem sei mais quem sou !
Mas quem viu em meu pranto uma simples garoa
Quis em vão me dizer uma palavra boa:
- Isso é chuva do mar. Vai passar.
                                                                     Não passou
.
[Apud blogue Agripa]
            Já o soneto guardado como troféu por mestre Ataúlpho, transcrevemos aqui:
ADOLESCENTE:  No citoplasma do ovo, ao gene, obscura, / Na química fatal do cromosoma, / Foste gerada com a dourada coma / Ao calor da genética mais pura! // Produto de um calor que ainda perdura, / Num salto mendeliano, agora assoma / Teu vulto esbelto que é o resumo, a soma / De protoplasmas que o calor mistura. // Na tua biologia recessiva, /Não teu pai – tua mãe é que está viva, / O gene dela é que prevaleceu // Tu que vens de uma antese clara e bela, / Já te cobri de beijos dados nela/ E beijo em ti aquela que morreu.
            Para Agripa, vale mais a devoção da neta Mara, que, nesta data,  realiza em homenagem ao avô o que todos os grandes de nossa historia e de nossa literatura sonhariam para si.


O autor é professor titular de Clínica Médica e criador do Centro de Memória da Medicina de MG na UFMG
JOSÉ RENAN DA CUNHA MELO
Energicamente realizou sozinho o sonho de quantos?

            em Belo Horizonte o que faz quando está num dos países adiantados em trânsito, nos quais já morou ou visita freqüentemente. Sendo alucinantemente versátil em tudo, domina também a medicina preventiva e daí que cedo abandonará o ciclismo de risco, para alívio de todos nós. Em alguns endereços estrangeiros de alta medicina, encontrei o rastro do Zé Renan, com elogios tais que em cada qual não me contive em afirmar que ele foi um dos meus iniciandos à pesquisa, dos quais  muito me orgulho - dele em especial.
Toda manhã, quando desço de carro a avenida Bernardo Monteiro, costumo ultrapassar um ciclista, que quase sempre é o Zé Renan.  Como pode um preciosíssimo recurso-humano estar assim  sob risco tão óbvio? Ele está tentando fazer
            Graduou-se em medicina pela UFMG em 1968 e logo juntou-se ao grupo de jovens que Celso Afonso de Oliveira e eu iniciávamos na pesquisa, referente à doença de Chagas, esquistossomose e estrongiloidose.  O primeiro trabalho de que participou intitulou-se TRATAMENTO DE CASOS AGUDOS DA ESQUISTOSSOMOSE MANSONI COM HYCANTHONE (Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, 1971), sendo co-autores, além dele, os iniciandos José Murilo Zeitune e Dalton Chamone, ambos hoje estrelas da clínica e da pesquisa médica em Campinas e em São Paulo. A publicação seguinte com os mesmos três iniciandos foi o estudo intitulado POSSIBILIDADES EVOLUTIVAS CLÍNICAS NA ESQUISTOSSOMOSE  MANSONI, COM APRESENTAÇÃO DE UM CASO DE EVOLUÇÃO ADAPTATIVA COMPLETA (mesma revista, 1972). Neste último caso, a comissão editorial da revista quis simplificar o texto e reduzir a referenciação bibliográfica, do que discordamos. O Dalton Chamone jê era estagiário no instituto paulista e sua argumentação impressionou tanto seus interlocutores que foi um dos fatores para que o retivessem ali.
Vale lembrar outros iniciandos da época: Armando Carneiro, Edward Tonelli, Antonio Dílson Fernandes, José Américo Campos, Sérgio Drummond, Amélio Maia, Lúcia Foscarini, José Maria Veiga Azzi,  J Diamantino,  H Chaves, Luiz Geraldo Matos, Maria Suzana Lemos, João Paulo Mendes de Oliveira, João Galizzi Filho, Antonio Candido Melo Carvalho, Orcanda Rocha, Cid Sérgio Ferreira, Elisabete Lauar, Dirceu Greco, Anielo Greco, Ciro Buldrini, Sebastião Soares Leal, Davidson Pires de Lima, Leonardo Diniz, José Maurício Carvalho Lemos, Luiz Otávio Savassi Rocha, Cláudio Azevedo Sales, Carlos Luiz Guedes, Carlos Faria Amaral, José Carlos Silveira, José Agostinho Lopes,  Júlio Anselmo de Souza, César de Barros Vieira, Francisco Luiz Costa, José Nelson Mendes Vieira, Francisco Caldeira Reis  e José Carlos Gallinari . Pela projeção que quase todos vieram a ter, pode avaliar-se a importância do modelo de iniciação cientifica, de cujo desenvolvimento tive a satisfação de participar, ao lado de  Celso Afonso de Oliveira, Luiz de Paula Castro, Tarcício Ribeiro Campos, Cid Veloso e Arnaldo Elian, com o apoio essencial de João Galizzi. Fez parte dessa inovação a integração com outras cadeiras clínicas, com pesquisadores na área da pedagogia médica e com disciplinas pré-clínicas, havendo importante envolvimento dos professores José Pellegrino, Zigman Brenner, Pedro Raso, Washington Tafuri, José de Souza Andrade Fiho,  Wilson Beraldo, Eurico Alvarenga Figueiredo, Giovanni Gazzineli, Carlos Ribeiro Diniz, Lineu Freire Maia, Jairo Bernardes, Célio Garcia e Domingos da Silva Gandra, os quais contavam com iniciandos nas respectivas áreas.
A segunda das publicações citadas ilustra a tendência de pesquisa clínica que foi então esboçada, a partir de publicação anterior, intitulada REVISÃO CRÍTICA DOS DADOS QUE FUNDAMENTAM O PROGNÓSTICO E A TERAPÊUTICA DA FORMA CRÔNICA DA DOENÇA DE CHAGAS (Arquivos Brasileiros de Cardiologia, 1964).  Trata-se da aplicação, em proveito da investigação clínica, de conhecida peculiaridade da medicina mineira, cujo modelo completo é Carlos Chagas, que consiste em querer sempre conjugar rara e incansável curiosidade bibliográfica com igualmente rara e desassombrada versatilidade interdisciplinar. Assim fica possível aventurar por temas evitados por sua complexidade e que estão usualmente situados na província da fisiopatologia. Pois bem, cinco de nossos iniciandos, Dalton Chamone, Antônio Cândido Melo Carvalho, Sebastião Soares Leal, Antônio Dílson Fernandes e José Renan da Cunha Melo se mostraram radicais na adoção dessa empreitada, sendo que os dois últimos chegaram ao extremo de levar sua versatilidade a qualquer fronteira cirúrgica ou experimental.
No caso de José Renan da Cunha Melo, são  necessários os parágrafos precedentes para que melhor se  entenda sua surpreendente sucessão de graduações: em medicina (1968), veterinárioa (1983) e direito (2003), além de mestrado em fisiologia-farmacologia (1975) e doutorado em cirurgia (1985) (todos esses diplomas pela UFMG) e ainda pós-doutorado  pelo National Heart Lung and Blood Institute, Bethesda, EUA (1985-8). Como bacharel em direito, é estudioso dos marcos legais da clonagem humana e da biotecnologia.  Sendo cirurgião geral, hoje integra a equipe cirúrgica do Instituto de Gastroenterologia da UFMG, entidade  surgida exatamente do citado esforço de iniciação científica.  
Todos o professores da velha guarda se entusiasmaram com seus talentos e procuraram retê-lo em seus laboratórios: Wilson Beraldo, Luigi Bogliolo e João Resende Alves. Ele, por sua vez, respondeu tamanho aplauso, fazendo seu mestrado e seu doutorado com pesquisa experimental da tradição desta Universidade, ou seja, com a toxina de nosso escorpião amarelo, descrito por sinal por um iniciando da pesquisa, de perfil análogo ao seu, o ex-estudante de engenharia Osvaldo de Melo Campos - depois grande luminar da clínica. Pesquisaram o mesmo animal Campos, Otavio de Magalhães, Amílcar Viana Martins e Lineu Freire Maia. Também me honra que seu doutorado, além da toxina escorpiônica, tenha tido por tema possíveis manifestações digestivas da forma experimental da doença de Chagas, tal como minha tese de mestrado, oito anos antes.
Quando estive na Universidade de Londres em 1976, Richard Erlam, tratadista de cirurgia e fisiologia  do esôfago, teceu entusiásticos elogios a José Renan e se mostrou muito grato a este por ter-lhe chamado a atenção para a doença de Chagas. Ressaltou que mesmo na ciência britânica era raro um pesquisador da polivalência desse brasileiro. Quis conhecer nossa universidade e aqui se emocionou quando lhe mostramos a cine-radiografia do esôfago da célebre paciente Berenice. Os cirurgiões Richard Erlam e John Major, num churrasco no sítio do primeiro nos arredores londrinos, quiseram saber de Luiz de Paula Castro se o sistema educacional brasileiro era capaz de produzir  muitos Josés Renans. Luiz respondeu que raramente surge um, apesar do sistema educacional.  Meu comentário foi observar que o mérito não cabia ao sistema, mas aos pais do Renan, que ao lhe darem o nome Renan, estavam profetizando seu inquieto e fulgurante brilho.