João Amílcar Salgado

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O ONTEM, O HOJE E O AMANHÃ DA MEDICINA
João Amílcar Salgado
Na memorável convenção no hotel Ouro-Minas, com apresentações intensivas ao longo do dia 3/12/16, foi debatido o ENCONTRO DO ONTEM, DO HOJE E DO AMANHÃ NA PRÁTICA MÉDICA. Estiveram presentes um público altamente interessado e figuras de prestígio na medicina mineira, que por largo tempo não eram vistas juntas. Foi promovida pela Caixa de Assistência à Saúde, ligada à UFMG, por iniciativa de Cid Veloso e Dirceu Wagner Souza. O Cid faleceu inesperadamente e a programação foi mantida, inclusive em homenagem a ele, por seus múltiplos méritos.
            Estavam ali três aureolados scholars: Nassim Silveira Calixto, Wilson Luiz Abrantes, Ennio Leão e José de Oliveira Campos, e também o brilhantíssimo LOR (Luiz Oswaldo Rodrigues), ao lado de representantes ilustres da segunda e terceira geração daqueles mestres. Fui convidado para fazer uma avaliação crítica do debate havido. Usei, como referência, minhas posições registradas ao longo do tempo, contrapostas aos posicionamentos ali ouvidos.  A partir disso, comentei o impacto  de mudanças emergentes, principalmente os registros eletrônicos e a expansão desmedida  da informação, ora tornada disponível pela internete.  Tais transformações, que parecem incontroláveis, culminam com novidades como uber-saúde e whatsapp-saúde - e vão prosseguir sem limites. Procurei distinguir aquilo que é apenas aparentemente novo e aquilo que pode ser de fato benéfico ou ameaçador para a pratica médica desejável. Assim, a melhor maneira de buscar o encontro do ontem, do hoje e do amanhã é apontar o desencontro respectivo.
            Minha participação talvez se justifique porque fui de certo modo profético em minha tese de doutorado em 1981, há 35 anos, quando denunciei os contornos iniciais da avassaladora força da medicina consumista. Esta monografia, intitulada ESTUDO DA RELAÇÃO ENTRE REALIDADE DE SAÚDE E ENSINO MÉDICO, além da corajosa banca examinadora composta por Carlos Ribeiro Diniz, Domingos Gandra, José Geraldo Dângelo, Oder José dos Santos e Luiz de Paula Castro, contou com auditório lotado, acrescido de informantes da ditadura, intimidadoramente ostensivos na última fileira. Trata-se da primeira e única tese de doutorado propositalmente destituída de referências bibliográficas, por propor conter apenas dados de pensamento original.
            Minha apreciação começou por desmitificar o ontem. A tendência entre os veteranos é alardear que “em nosso tempo  tudo estava bem”. Usei o conceito de MEDICINAS CANÔNICAS como as medicinas oficiais de cada civilização ou de cada período civilizatório. Essas medicinas se caracterizam por estabelecer o CÂNONE a partir de um médico icônico, deificado por atributos situados bem além de suas biografias terrenas.  O primeiro deles é Imotepe, por coincidência o mais antigo e o mais bem documentado, com estátua, datação de vida, cargos exercidos e obra. Foi tão marcante, que acabou copiado pelos gregos como Asclépio e pelo romanos como Esculápio. Na Grécia, o oráculo de Delfos correspondia ao Conselho Federal de Medicina, no Brasil, e os asclepíadas dirigentes seriam os conselheiros federais. As civilizações suméria, hindu, chinesa, centro-americana, andina e outras tiveram sua peculiar medicina canônica.
            Imotepe deve ser estudado em relação à descoberta da escrita, pois em sua estátua mais conhecida é mostrado escrevendo. Se a escrita foi desenvolvida em milênios antes dele é plausível que já houvesse uma farmacopeia escrita também antes dele. Mas com a canonização de Imotepe a farmacopeia e demais escritos médicos supostamente escritos por ele passaram a canônicos. A partir daí,  fontes médicas não referidas a ele passaram a proibidas e perseguidas, desde 2600 antes da era cristã. Por tão bem servir ao establishment canônico, a invenção da escrita foi o mais importante acontecimento a interferir na relação médico-paciente, desde o aparecimento do homo sapiens há 200 mil anos. 
            Antes da espécie homo sapiens apareceu o genero homo e todas as espécies animais e vegetais, exercendo sua biologia regular há milhões de anos. Sabemos que há um sistema de saúde que funciona nas colmeias, vespeiros, formigueiros e cupinzeiros e cada vez mais sabemos como os vegetais, os artrópodes, os mamíferos em geral e os primatas não-humanos cuidam de sua saúde. Cabe-nos descer de nosso pedestal de preconceitos  para  levantar os símiles da relação médico-paciente em cada caso.
            Hipócrates foi o médico icônico mais citado nos debates ora apreciados e isso era de se esperar. Argumentei que, no âmbito da complexidade do tema Hipócrates, devemos distinguir a qual dos Hipócrates nos referimos, pois foi canonizado várias vezes,  desde sua morte no ano 370 antes da era cristã. Em cada canonização ele foi amoldado desde  a conveniências estéticas a interesses escusos, inclusive o racismo. O Hipócrates histórico não era grego mas apenas um colono do império heleno. Era  provavelmente iletrado e se opunha aos asclepíadas canônicos, principalmente aos médicos letrados.  Mesmo sendo assim um simples ilhéu, deve ter sido perseguido por sua popularidade. Esta foi-se agigantando até o ponto em que os asclepíadas decidiram reunir-se no oráculo de Delfos e o declararam canônico. Alegaram que fizeram uma pesquisa genealógica e descobriram ser ele descendente de Asclépio.
            Sua oposição aos médicos letrados se apoiava no argumento de que estes preferiam escrever do que falar com os pacientes, que ofereciam consultas a prepostos de pacientes ausentes – e, o mais grave de tudo, usavam sua condição de letrados para escrever doutrinas inventadas a  partir de filosofia e não extraídas  da observação clínica. Isso ocorria no 5º  século  aC e continua a ocorrer hoje. Há incrível semelhança entre a distorção asclepiada da clinica,  condenada por Hipocrates, com as distorções que a informática e a internete podem causar na relação medico-paciente.
Com Hipócrates já morto, seus discípulos alexandrinos não titubearam em se fazerem também letrados e não vacilaram em  adotar a doutrina dos quatro humores, elaborada por médicos-filósofos (Alcmeon e Empédocles). Como no caso de Imotepe, devem ter justificado recorrer à escrita como instrumento indispensável  para o estabelecimento e fixação do CÂNONE HIPOCRÁTICO. Acontece que o cânone, sob a forma de CORPUS HIPPOCRATICUM (aqui em latim, mas no início era em grego), foi fixado obviamente já com distorções. De lá pra ca, de época em época, algum seguidor talentoso, consciente dos desvios, tentou retomar o Hipócrates original. Dentre os mais importantes aponto os holandêses Hermann Boerhaave (1668-1738) e seu discípulo Gerard van Swieten (1700-72). E entre os mais recentes, o canadense William Osler (1849-1919), o estadunidense Russel Cecil (1881-1965), o espanhol Carlos Jiménez Diaz (1898-1967) e os brasileiros Francisco de Castro (1857-1901), Miguel Couto (1865-1934), Matias Vilhena Valadão (1860-1920) e Antonio Silva Melo (1886-1973), sendo mineiros os dois últimos.
Logo após a segunda guerra mundial, a eficácia de alguns produtos como antimicrobianos, hormônios, diuréticos e inseticidas, fez supor que a linha hipocrática dos clínicos acima citados, unida ao rigor científico que veio sendo estabelecido desde o século 16, seriam os pilares de  um vigoroso cânone científico para a medicina ocidental moderna. De fato tal cânone   passou a ser e ainda é defendido pelos periódicos Science, New England Journal of Medicine e Annals of Internal Medicine, nos EUA, e Nature, Lancet e British Medical Journal, na Gra-Bretanha, ao lado de tratados literalmente considerados bíblias da medicina, como “Goodman & Gilman” de farmacologia e “Cecil” de clínica. Este cânone é chamado também da medicina científica e admitida como derivada diretamente do Hipócrates original. Assim a bendita confluência entre descobertas, rigor científico e rigor clínico, fortemente amarrados no reverenciado cânone hipocrático verdadeiro, seria o apogeu de antigo sonho agora realizado. De fato, por um momento, no meio do século 20, nos chamados anos dourados, acreditou-se numa culminância feliz, capaz de desencadear maravilhas na saúde e na educação.
Acontece que aqueles produtos médicos do pós-guerra foram encarados de outra maneira pelos industriais da química, que viram neles um potencial miliardário de lucros. Em consequência, verificou-se que aquela culminância entusiástica, aquela jubilosa conquista, era ledo engano, pois de imediato passou a ser desafiada pela medicina de consumo, resultante da insaciável avidez  de rendimentos de crescente complexo indústrial. E este não se contentou em ser só de medicamentos, mas abrangeu  também a indústria alimentícia, de equipamentos e organizacional. E foi muito além: de tão fortalecido, o complexo sustenta  fartamente a indústria-meio da publicidade. Assim, a propaganda, o merchandising e o marketing são  alçados a meios indispensáveis e  estratégicos, de tal modo que consegue multiplicar a demanda de medicamentos, equipamentos e alimentos, estendida para muito além das necessidades de saúde. Com isso, a medicina de consumo, esboçada entre as guerras mundiais, ganha corpo até a década de 70 do século 20, e culmina transformada em plena medicina consumista, na virada do milênio.
Na tese de doutorado citada, apresento a realidade de saúde em quatro quadrantes, nos quais são distinguidas com clareza quatro medicinas: a medicina oficial (canônica vigente), a medicina marginal, a medicina de consumo e a medicina ideal. De 1981, data da tese, até o presente, evoluíram para medicina oficiosa, medicina alternativa, medicina consumista e medicina ideal.
            A transição de uma para outra agravou as interferências, já existentes e já denunciadas, impeditivas da relação médico-paciente ideal. O mais notável é que a primeira denunciada há dois mil e quinhentos anos, que é a interferência da escrita, se vê fortalecida pela tecnologia eletrônica atual em vez de ser eliminada como era de se esperar. Assim dispositivos tecnológicos e organizacionais se interpõem enre medico e paciente. E não só configuram interposições mas estas são adrede  combinadas a cruel seleção de médicos para com os pacientes ou  de pacientes para com os médicos. A burocracia tem aqui papel análogo ao apontado pela publicidade, em mil perversas maldades com os pacientes.
            Tal tendência aponta para  a progressiva distorção da  figura  e do papel do médico como profissional. E culminará talvez com sua abolição total. Em 1981 já estava registrado por mim os dados essenciais do impacto causado pelo agigantamento da medicina consumista, fazendo da medicina oficial, outrora tão arrogante, mera medicina oficiosa. A relação medico-paciente, antes nascida da confiança do paciente na competência pessoal do médico, sofre desmoralizante mudança. A competência do médico é substituída pela competência do equipamento que ele manipula e seu papel passa a mero acionador do mesmo. O médico se vê rebaixado de seu pedestal asclepiada a insignificante profissional equipamento-dependente. Mais grave ainda é que o termo equipamento aí deve ser entendido em sentido amplo: pode ser um medicamento portador de exclusividades tecnológicas, pode ser um equipamento propriamente dito, mas sofisticadíssimo, e pode ser um equipamento organizacional. Por exemplo, o paciente pede para ser atendido e perguntam: por qual médico? Ele responde: por qualquer um, desde que seja do Hospital Albert Einstein ou do Sírio-Libanês.
            Com o advento, em 2050, de medicamentos dotados de alta especificidade e isentos de perigo iatrogênico, a automedicação será admissível e o médicos será descartável. Ou melhor, será extinto. Ou talvez sobreviva, desde que radicalmente repaginado. Temos forte esperança de que a medicina, nessa altura, será a ideal: em que as necessidades de saúde serão atendidas por recursos técnicos hoje impensáveis, oferecida em sistema de saúde universal e gratuito. E os recursos técnicos serão produzidos por inovações revolucionariamente abrangentes, ou seja, em vez de fruto das pesquisas atuais selecionadas pela promessa de lucros, resultarão de investigações dirigidas a  necessidades claramente definidas.
            Enquanto isso o que escandaliza é o deprimente espetáculo em que  a corporação médica se rebaixa a serviçal dos mega-interesses consumistas. Aí se observa que é comandada por personagens que oscilam entre o  grotesco e o ridículo, completamente alheios ao apontado acima e fingindo que tudo vai bem, obrigado. Ou então se apresentam como arautos de  modismos (medicina baseada na família, medicina baseada em problema, medicina baseada em evidência, medicina baseada na humanização do médico),  tão inócuos quanto fugazes. Em 1986, na Universidade Estadual da Pensilvania, foi-nos apresentada com grande entusiasmo uma inovação educacional: um programa de introdução no currriculo médico de disciplinas humanizadoras. Serviriam para eliminar de uma vez por todas os graves males verificados no sistema de saúde dos EUA. A seguir pediram-me que, como especialista em ensino médico, analisasse o tal programa. O quadro a seguir resume o episódio.
            Com enorme constrangimento verifico que importante universidade pública de São Paulo venha anunciando hoje como novidade  recém-chegada dos EUA, a mesma “humanização” de 30 anos atrás. Esta é uma melancólica amostra de nosso caos na saúde e na educação.
            Lutar pessoalmente contra tantos interesses e tanta gente poderosa é inútil. Na qualidade de contribuinte do conselho de medicina, dirigi-me a seu colegiado, pedindo providencias contra a expressão “Se persistirem os sintomas, um médico deve ser consultado”. Argumentei que esta insuportável propaganda da automedicação é tremenda bofetada na dignidade profissional do médico, pois o induz a cúmplice de vergonhoso ato consumista - sendo, sem dúvida, o maior achincalhe jamais perpetrado contra a relação médico-paciente. Sabem o que o dirigente da corporação respondeu? Que este professor está desatualizado e não foi informado de que houve um ajustamento de conduta entre o conselho federal e os fabricantes de medicamentos chamados “não éticos” - e daí que não há nada de errado na expressão denunciada. Acrescentou que não era necessário levar a interpelação ao colegiado. Um seu auxiliar leu-me uma resposta, sem a entregar por escrito, pela qual a orientação do conselho superior era para evitar polêmica que ofenda o mercado.
Alguns podem duvidar disso tudo e para eles reservei mostrar a capa de um livro (anexa) que dificilmente será traduzido aqui.  Nele e em poucas publicações semelhantes  é denunciado um dos extremos da medicina consumista, que é a mentira em saúde apresentada como progresso, principalmente o alerta aos consumidores sobre  faixas modernizadas de normalidade em exames laboratoriais, ou então o alerta sobre doenças inexistentes, apresentadas com nomes convincentes. Esse crime começou com a manipulação de limites de pressão sanguínea para ampliar o lucro de empresas de seguro de vida.  Trata-se de absurdo que tende a ficar impune porque os médicos lucram também  com o mesmo golpe, corrompidos pela consequente demanda adicional de consultas privadas.
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quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

FIDEL E NOSSO ROMANTISMO DOS ANOS DOURADOS
João Amílcar Salgado
No livro O RISO DOURADO DA VILA (2003) eu digo que “A urologia e a pediatria ainda ficavam no antigo hospital São Vicente, do qual relembro os corredores arejados, ainda cheirando a iodofórmio, em pela era da penicilina. Ali o Aparício Silva de Assis, que tinha acabado de almoçar com o general Vernon Walters, nos garantia que os norte-americanos estavam apoiando os guerrilheiros de Sierra Maestra. Foi então que meu colega João Cândido disse: a propósito o Fidel Castro foi ouvido no México, dizendo na Rádio Rebelde que a primeira coisa que fará após derrubar o ditador vai ser cortar os bigodes do cantor Bienvenido Granda...”
Noutra parte do livro relato que, ao lado da república Remanso-de-Hipócrates, morava o escritor Benito Barreto. Certo dia, em 1962, ouvimos muita gente chegando a seu apartamento, todos em volta do escritor Jorge Amado, que viera prestigiar o lançamento do primeiro livro do Benito, PLATAFORMA VAZIA. Fiquei ao lado do Jorge o tempo todo, o qual então perguntou ao Benito  se estava recebendo os jornais de Cuba. Este respondeu que ultimamente parou de recebê-los e queixou: acho que o DOPS está interceptando minha correspondência. Fiquei ali ouvindo tudo isso fingindo cara de pateta, porque eu era o interceptador. De fato, nós lá na república líamos tudo, acompanhando os primeiros passos daquela inacreditável vitória, inclusive a notícia de que Bievenido conseguira fugir, preservando seus bigodes. Só confessei  o acontecido ao Benito muitos anos depois e ele riu muito.
Éramos mais fãs do argentino Guevara do que do cubano Fidel. Esperávamos que defendessem um socialismo democrático, mas não tiveram outra alternativa a não ser cair nos braços da União Soviética. Quem os induziu a isto não foram os soviéticos mas Robert McNamara, ministro de Kennedy.  Este homem, além deste, cometeu outro crime: a invasão da Bahia dos Porcos, contrariando o irmão do presidente, Robert Kennedy. Mais tarde ele cometeria mais um: o mergulho na loucura da guerra do Vietnã. Naquela invasão e nesta Guerra os EUA sacrificaram sobretudo seus jovens e foram fragorosamente derrotados – além de causarem imensurável dor e morticínio sem fim de inocentes.
De nossa parte ficamos decepcionados com nossos heróis da Sierra Maestra, especialmente pelo paredón, e com nosso herói John Kennedy. Este ainda tentou amenizar as desigualdades sociais da América Latina, por meio de gigantesco projeto de 20 bilhões de dólares da época, denominado ALIANÇA PARA O PROGRESSO, cujo fim era evitar que os Andes se transformassem em imensa Sierra Maestra. Kennedy e Guevara estavam em Punta del Este, em 5/8/61, mas Chê se recusou a assinar o documento final da Aliança.
Robert, o irmão de John Kennedy, nos parecia de nosso lado, contra McNamara. Mas, na medida em que crescia essa discordância, ambos os Kennedy foram assassinados. Assim, nós que sonhávamos com um mundo melhor sofremos rudes golpes, inclusive a morte dos papas avançados João 23 e João Paulo 1º.
Esses ideais juvenis (expressos em meu discurso de orador da turma, em 1960) alimentaram a minha curiosidade sobre o que ocorreria em Cuba ao longo dos anos. Luiz Felipe Cisalpino Carneiro, meu inesquecível amigo, e que foi um dos vanguardeiros da humanização da psiquiatria mineira e brasileira, ao contrário de nós, nunca deixou de ser  fanático por Fidel.  Chegou a pedir minha ajuda para visitar Cuba em plena ditadura no Brasil. E não é que consegui? Solicitei em troca que nos trouxesse dados sobre a saúde e a educação de lá. Ministrou magnifica aula sobre o hospital psiquiátrico de Havana em 3-5-1982.
Eu próprio, também em plena ditadura, fui muito prestigiado em Puebla, México, em 1979, por causa da repercussão internacional da inovação no ensino da medicina, conseguida na UFMG em 1974. Fui ali procurado por dirigentes educacionais de vários países, inclusive para opinar sobre o ensino médico cubano. Neste caso, aleguei que poderia ajudar em termos exclusivamente pedagógicos e sugeri que buscassem a assessoria neutra da ONU/OPAS. Mas insistissem para que o assessor fosse Juan Cesar Garcia. Assim, a inovação cubana ocorreu com vários aspectos semelhantes ao novo ensino da UFMG. Nessa oportunidade, as autoridades ministeriais mexicanas me levaram a um almoço onde tive longa conversa com uma bela endocrinologista que chegou a ter um romance com Fidel. Ela adorou vários de meus causos nepomucenenses.
Demais, o admirável Luiz Carneiro me presenteou com um texto de Gabriel García Márquez, no qual ele entrevista Fidel sobre o BOGOTAZO, ocorrido em 7/2/1948. Apresentei no congresso de Historia da Medicina, de 2002, em Ribeirão Preto, SP, um confronto entre esse texto e o discurso de João Guimarães Rosa, proferido em sua posse na Academia de Letras. O resumo de tal estudo é o seguinte.
 A Organização dos Estados Americanos (OEA) foi criada em Bogotá em 1948. Por razões diferentes estavam ali Rosa, Marques e Castro: o médico mineiro, como diplomata, Marques, como jornalista, e Castro, como agitador estudantil. Afora os motivos que os levaram a convergir para este lugar, nesta data, há algo em comum no modo de se expressarem. Marques usava a palavra para a comunicação jornalística, Fidel, para a oratória política, e Rosa para a ficção. Marques evoluiu do jornalismo para a ficção e Castro igualmente, pois o sonho igualitário prossegue sendo a mais sedutora e pertinaz ficção humana. Outro ponto em comum é a área da saúde, embora, dos três, Rosa seja o único médico. Marques tematizou a saúde em seu livro O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA (1985) e Castro comandou a construção de um dos melhores sistemas de saúde do mundo.
              Quando estavam ali, ocorreu o bogotazo, grande agitação popular, precursor de nossos panelaços. Na entrevista a Marques, Castro garantiu que o fenômeno foi espontâneo e ele apenas tentou direcionar o movimento. Houve até sua célebre exortação quando, do meio dos manifestantes, se dirigiu ao guarda do palácio, de arma em riste contra todos – tentando convencê-lo a mudar de lado. No lado da OEA, os delegados estrangeiros ficaram protegidos num bairro de luxo de Bogotá. Em seu discurso de posse na Academia de Letras, Rosa descreve o medo de que a revolta chegasse até eles.  Garantiu que a coisa foi amenizada pela prosa paregórica de João Neves da Fontoura.
Finalmente, chego ao tema que mais aprecio: a genealogia dos Castros. No referido livro O RISO DOURADO DA VILA (2003), relato que em Londres, em 1976, ocorreu um diálogo meu com historiadores da Universidade de Oxford, sobre isso. Um historiador perguntou ao Luiz de Paula Castro (um dos maiores gastroenterologistas do Brasil) qual era seu parentesco com Fidel Castro. O Luiz ficou indignado e disse que não havia nenhum parentesco. Eu comecei a rir e me perguntaram a causa do riso. Expliquei que havia parentesco sim, pois quase todos os Castro do mundo provêm de pequena região galega. E, para provocar os ingleses, disse que inclusive os Castro da história britânica tinham tal procedência. Aí foi a vez dele se indignar: cite-me um Castro histórico daqui!. Respondi com uma pergunta: como é o nome da rua aqui defronte? Ele respondeu: Lancaster Gate.  Acrescentei: Lancaster quer dizer Além-Castro, ou seja, Castro de Além Mar. Os Castro galegos atravessaram o mar e conseguiram dar um golpe palaciano e assumem o poder em 1399, reinando até 1471. De início, os York sabiam dessa coisa e isso gerou a guerra civil chamada GUERRA DAS DUAS ROSAS (1455-85). Todos os Tudor e os descendentes do casal Isabel de York e Henrique Tudor são Castro.  Ou seja, Henrique 8º é Castro.  Meu ouvinte ironizou: convido-o a dar uma aula de história em Oxford sobre algo que os historiadores de Oxford ignoram. Estou esperando a confirmação do convite até hoje.
Já em 1992, os galegos aproveitaram que Fidel estava na Espanha e o convidaram para visitar a cidade de Láncara, com o fim de participar de uma homenagem a seu pai galego, Ângel Maria Castro Argiz (1875-1956), nascido ali. Ângel fora enviado como soldado espanhol para lutar contra a independência de Cuba, país onde faleceu na cidade de Holguin. Sua humilde  moradia galega ainda existe. Quando Fidel se transformou em herói mundial, os galegos de todos os matizes ideológicos, inclusive alguns dos homens mais ricos dos  EUA, se orgulharam de sua façanha. A própria CIA teria temido reação galega interna, quando organizou os muitos atentados frustrados para assassinar Fidel. Os galegos não só são disseminados pela Espanha, Américas, Reino Britâncio e pelo mundo, mas controlam boa parte do PIB internacional.
Após as invasões nórdicas, os Castro tiveram origem na estratégia israelita de aloirar os sefardinos, por meio do matrimônio com descendentes celta-alanos. As famílias galegas dominantes têm a mesma origem, como os Andrade, Salgado, Machado, Garcia, Pires, Lara, Lemos e Ponce de Leon. De início os Castros já se tornaram uma das mais poderosas e há quem inclua  El Cid na linhagem Castro. Outros Castro que estudo são os médicos Josué de Castro, Jorge Campos Rey de Castro e Ernesto Lhopart de Castro.
              O primeiro Castro de Portugal parece ter sido Pedro Fernandes de Castro, cerca 1320, sendo ligados aos Nunes, Calvo e Laim. No Brasil assinala-se, no Rio de Janeiro, desde 1639, Antônio de Castro, casado na família de Estácio de Sá. A Minas (Sumidouro) chegou da Bahia o lisboeta Antônio Alves de Castro (certamente parente do poeta Castro Alves), casado, em 1735, com a baiana Joana Batista de Negreiros, e aí faleceu cerca de 1757. Mais tarde, Antonio Caetano de Castro nasceu em Nepomuceno em 1843 e parte de sua família migrou com ele para Casa Branca, SP. Parece que era irmão gêmeo de José Caetano de Castro, ambos tenentes-coronéis e ligados à família nepomucenense dos Caetano de Lima, com vínculos em Itaverava. Em 1868, Alípio Ferreira de Castro casou-se com Mariana Cândida de  Oliveira Lima, neta de José Antônio de Lima (o Casaquinha), sendo filha de Antônio José de Lima, falecido precocemente. 
Na região de Lavras, os Castro são relacionados aos das cidades de Pedro Leopoldo (Sumidouro), Barbacena, Prados e Oliveira, representados por importantes ramos:  Carrilho de Castro,  Castro Dias,  Ferreira de Castro,  Vinhas de Castro, Ribeiro de Castro, Nogueira de Castro,  Brasileiro de Castro e Castro Assunção, certamente inter-relacionados. Dois Castro de importância histórica em Minas são Carlos Chagas, descobridor da doença que traz seu nome, nascido em Oliveira, e o também médico Célio de Castro, prefeito da Capital, nascido em Carmópolis de Minas. O sobredito Casaquinha é meu tetravô materno em Nepomuceno e João Ferreira de Castro é meu bisavô paterno em Três Pontas.
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Na foto Fidel oferece ao Papa Francisco o livro do mineiro Frei Beto e confessa saudade de quando foi coroinha.



terça-feira, 13 de setembro de 2016

CID VELOSO EM TRÊS CENÁRIOS
João Amílcar Salgado
MÓDULO ECGRÁFICO
Em 1962, os poucos clínicos que sabiam interpretar o eletrocardiograma e a radiografia cardíaca causavam inveja e, ao mesmo tempo, sonegavam os respectivos segredos aos aprendizes. Liderados pelo Razuk, providenciamos a vinda do Tranchesi e do Fujioka para nos assenhorearmos destes dois mistérios. Descobrimos que tudo o que o Tranchesi e o Fujioka sabiam o Elian e o Javert já sabiam, e a grande virtude desses paulistas eram os massetes interpretativos  que divulgavam.  O Tranchesi, da escola do Cabrera, enfatizava o lado vetorial do eletro, o que complicava a coisa. Aí é que entrou a criatividade do Cid Veloso. Ele criou um módulo de treinamento da maior simplicidade e rapidez - tornando obsoleto o excelente livro do Tranchesi. Qualquer um que manuseasse sua coleção didática - democraticamente aberta a todos - em seis meses já era um razoável intérprete. E coincidiu que foi lançada a primeira linha de aparelhos portáteis. Vários foram encomendados.  Um mandão da cardiologia recebeu a visita do revendedor, entusiasmado com o boom de venda. Quis saber onde era o ninho dos que ameaçavam sua reserva de mercado. Chegou à sala do Cid acompanhado do Galizzi e do Elian que o viram espinafrar o imperturbável recém-formado. Gritou ao Cid: você é um fedelho e dependendo de mim nem título de cardiologista terá. O Elian e o Galizzi  retiraram o vociferante dali e lhe explicaram que aquele lugar era uma universidade e nela nenhuma censura teria cabimento.

LESÃO DA PONTA
Em 1963, houve entusiasmo com a descoberta do padrão eletrocardiográfico da chamada lesão de ponta, própria do coração chagásico.  Todos a elogiavam, mas Cid Veloso fez reparo ao método da pesquisa, pois o autor se limitara a examinar unilateralmente os registros dos pacientes falecidos com a lesão. Dois cardiologistas ex-professores do Cid, o recriminaram fortemente. Galizzi pediu ao jovem que respondesse àquelas duras palavras, e este, com a serenidade que lhe é peculiar, surpreendeu a todos. Disse que a resposta não poderia ser expressa ali, mas estava guardada nos arquivos do Bogliolo. E foi então que o Cid Veloso, apoiado pelo Arnaldo Elian e por mim, fez a investigação recíproca: procurar o tal padrão na coleção de registros e separar aqueles de pacientes falecidos. Daí partiu para o arquivo anatômico e não encontrou a completa correspondência entre o padrão e a lesão. A pesquisa saiu nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia (1964, 17, 505-18). Em reunião geral de todas as cadeiras de Clínica Médica, o temido e avaro professor Osvaldo de Melo Campos, que nunca fora ouvido elogiar alguém e nunca dera nota máxima em qualquer concurso, apareceu com a separata desta investigação nas mãos  e, antes de qualquer coisa, a exibiu dizendo: esta é a tese de doutorado para a qual eu daria nota dez. E foi assim que Melo Campos concedeu pessoalmente ao jovem Cid o título de cientista.

BISPO TUTU

              Em 21-5-1987, o bispo Tutu recebeu o título de professor honoris causa  da UFMG. Em reunião na reitoria, discutimos a programação da visita dele à Universidade e quando levantamos a possibilidade de, na oportunidade, dar-lhe o título honoris causa, houve nítida reação de desagrado de boa parte dos presentes, que inclusive deram a desculpa de que havia uma burocracia a ser cumprida e que não daria tempo. Alguém disse: será que esse preto merece tão alto título? Pois bem, foi uma das coisas mais emotivas que aconteceu nesta instituição. No gabinete da reitoria, saboreávamos o coquetel de recepção, quando todos fomos para as janelas, pois iniciava-se vibrante batuque, executado uníssono, ali no pátio em frente, por quase todos os grupos de congado de Minas. A seguir descemos para diante de um palanque. Nele o bispo Tutu, acompanhado de padres negros e mulatos, e também de oficiantes  de várias religiões, concelebrou arrepiante Missa Conga. Só mesmo Cid Veloso, o primeiro reitor federal eleito pelo voto direto, poderia ter-nos brindado com tão inesquecível cena.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016






Em anexo acima texto sobre os Vilelas e os Alves Vilelas.
Por: João Amílcar Salgado

terça-feira, 9 de agosto de 2016

IVO PITANGUY
A mais requintada expressão da cirurgia mineira

João Amílcar Salgado
         Era julho de 1946, eu estava no 3º ano de primeiras letras e acompanhava a animação em minha casa por causa da formatura naquele final de ano de meu tio, Aprígio de Abreu Salgado (saneador da malária sulmineira, sem o que não haveria Furnas), que morava conosco. Na casa em frente residia a dona Sinhaninha, prima de minha mãe, e ali estavam dois outros formandos: o filho dela, Adauto Barbosa Lima (cardiologista de nossa primeira circulação extracorpórea), e o primo deste, Oscar Resende Lima (proeminente docente de psiquiatria da USP). E na cidade havia um quarto formando, filho de grande amigo de meu pai: Alberto Sarquis (admirável médico integral). Aquela cidadezinha, Nepomuceno, que raramente formava um médico, naquele ano formava nada menos do que quatro e numa das mais brilhantes turmas da Universidade. Lembro-me bem que o Adauto e o Oscarzinho orientavam o Aprígio e o Alberto  sobre a casimira que deviam vestir na festa.
          Em meus verdes nove anos, mal sabia que conviveria longamente com outros formandos daquele ano, em minha carreira docente na mesma Faculdade que os graduou. E mal sabia eu que estaria aqui hoje a saudar o astro insigne dessa turma de estrelas, o scollar Ivo Helcius Jardim de Campos Pitanguy.   Por este nome, que é um verso alexandrino, percebe-se que seus pais, o cirurgião Antônio Campos Pitanguy e a beletrista Maria Stael Jardim, eram poetas, e com poesia profetizaram a especialidade do filho, eis que a cirurgia plástica nada mais é que o ramo da medicina mais próximo da expressão estética.
          A medicina mineira tem bela história a dizer ao mundo. Esta afirmação eu a fiz nos 90 anos de nossa Faculdade Máter e a repeti em seu centenário, no ano passado. Não cabem aqui as páginas que listem as impressionantes primazias mineiras. Basta dizer que são mineiras as maiores contribuições brasileiras à ciência: a descoberta da doença de Chagas por Carlos Chagas e a da bradicinina por Wilson Beraldo, além de serem egressos desta mesmíssima Faculdade o maior presidente brasileiro: Juscelino Kubitschek, o maior memorialista lusófono: Pedro Nava,  e o mais original prosador do idioma: Guimarães Rosa. 
Cabe, contudo, acrescentar que Baeta Viana, paraninfo dessa formidável turma de 1946, se coloca ao lado desses cinco gigantes, não por alguma descoberta científica, mas por ter descoberto um conjunto harmonioso de cientistas pré-clínicos, um deles Beraldo, e outro conjunto, não menos esmerado e influente, de clínicos cientistas e cirurgiões cientistas, um destes, Ivo Pitanguy.
        E o apostolado científico desse paraninfo fez dele um engajado político, pois em 1946 ele era apontado como uma das alavancas que fendilharam a sólida ditadura Vargas. Então essa turma está na história do Brasil como aquela que celebrando a ciência em Viana, celebrou nele a democracia, que ele pregou irmã daquela. E mais, é a turma que, na memória deste país, realizou algo inédito: teve a audácia de, homenageando o herói Eduardo Gomes, projetá-lo como candidato à presidência da República.
Minas está bem presente na personalidade do maior cirurgião plástico do mundo. Sim, Ivo Pitanguy deve ser considerado uma das personalidades simbólicas do fenômeno antropológico muitas vezes chamado de “jeito mineiro de ser”.  Se seu jeito é este, impõe-se perguntar: que menino e que adolescente foi ele?
       De acordo com a tradição, infelizmente abandonada, na turma de 1946, cada formando foi retratado em soneto jocoso, assinado por autor incógnito (certamente João Vale Maurício), sendo Ivo Pitanguy assim descrito: “Esse rapaz tem vocação “cortante” / Seu destino é pegar... no bisturi / Tem esse nome lírico e cantante: / Hélcio Jardim de Campos Pitanguy // O seu “campo” de estudo é a Anatomia / O seu esporte: tênis, natação / E encerra a vida nessa trilogia: / Uma raquete, um bisturi, um calção. // ... ... ... // “
      Em verdade, no humor do texto está resumida a admiração que causava. Trazendo, nos sobrenomes Jardim e Campos, heráldicas raízes coloniais mineiras, o estudante Ivo, filho de estimada família da Capital, fez parte da juventude dourada dos anos dourados belorizontinos. Este ambiente hoje é bem conhecido graças ao sucesso do livro O ENCONTRO MARCADO, de Fernando Sabino, de 1956, sendo que Hélio Pellegrino, um dos protagonistas, foi contemporâneo (turma de 1947) de Ivo na Faculdade. 
     Desse já tão alto promontório despontou a vocação irresistível de Ivo Pitanguy para conciliar o tradicional e o moderno. De imediato, impressionou seus colegas universitários, afeitos ao francês do Testut, com o acréscimo do inglês e assim alargou o alcance de sua formação humanística, trazida de berço.  Igualmente, aos hábitos ancestrais das famílias mineiras ajuntou o culto ao esporte, abrangendo da natação ao tênis e à luta marcial. Acrescente-se depois sua desenvoltura internacional, em estágios nos melhores centros médicos dos EUA, da Inglaterra e da França e decorrentemente como conferencista em congressos e como formador de centenas de especialistas oriundos de dezenas de países.   Tudo isso alicerçou o estilo original e perfeccionista que imprimiu à especialidade que escolheu, tornando-se figura singular e inigualável no panteão mundial da cirurgia plástica. 
     No Rio, onde cursou o sexto ano de sua graduação, foi-lhe oportuno fazer profuso atendimento a pequenos e grandes traumas em pronto-socorro. Isso lhe deu a inspiração para organizar inéditos e modelares serviços, na 38ª  Enfermaria da Santa Casa e em atendimento privado. De tais realizações, sua liderança e seu carisma extraíram novo pioneirismo, desta vez em pedagogia: criou, em 1960, a primeira pós-graduação cirúrgica formal no Brasil, pela Pontifícia Universidade Católica carioca. 
       Além de cirurgião plástico, com numerosos discípulos, clientes e admiradores, multiplicados pelo Brasil e pelo mundo, entre os quais várias celebridades, foi inevitável que se tornasse autor de livros científicos e literários, alguns em co-autoria. Escreveu MAMAPLASTIAS (1976), CIRURGIA ESTÉTICA DA CABEÇA E CORPO (1981, em inglês, prêmio de melhor obra científica do ano, na Feira Internacional do Livro de Frankfurt), OPERAÇÕES PLÁSTICAS DA ORELHA (1982, bilíngüe), DIREITO À BELEZA (1984, trilíngue), ANGRA DOS REIS – BAÍA DOS REIS MAGOS (1986), UM JEITO DE VER O RIO (1991), PARATII-PARATY (1992), APRENDENDO COM A VIDA (1993), ATLAS DE CIRURGIA PALPEBRAL (1994), APRENDIZ DO TEMPO (2007), CARTAS A UM JOVEM CIRURGIÃO (2008). Em 2011 o escritor e jornalista John Holzer lançou nos EUA um livro consagrador sobre Pitanguy, prefaciado por nada menos que Denton Cooley, o extraordinário implantador e transplantador de corações.
       Com a experiência e a erudição que Ivo Pitanguy acumulou, verifica-se, por seus textos, que afinal desenvolveu uma espécie de filosofia estética, na qual se percebe também inovador ingrediente ecológico. Aristóteles, Vitrúvio e Michelangelo lhe invejariam as oportunidades de ter lidado não só com os mais belos, mas com os mais defeituosos e variados corpos humanos imagináveis, em impressionante amostragem internacional, tendo como ponto de partida a esplêndida composição racial nativa. 
     Do rococó diamantinense ao multifacetado Rio de Janeiro, do trópico brasileiro ao sofisticado burburinho internacional, Ivo Pitanguy não nega e nem procura esconder sua venusta radicalidade mineira. Ao contrário, é dela a fronte e a insígnia, em entalhe e lavor ao pé da letra.

O autor é professor titular de Clínica Médica da UFMG e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais. Texto de 2012, quando saudou Pitanguy a convite de LOR


domingo, 17 de julho de 2016

BERNIE SANDERS, A SAÚDE E A EDUCAÇÃO


João Amílcar Salgado
Com Bernie Sanders aconteceu agora o que antes não aconteceu com outros candidatos, que tentaram sem êxito inovar o debate sucessório nos EUA. Para mim ele foi grata surpresa, que se somou a grata mensagem que recebi. Um amigo de lá, que se tornou admirador de minhas ideias sobre saúde e educação, brincou comigo, logo que Sanders começou a aparecer no noticiário. Ele me interpelou: jure que não foi você que escreveu a plataforma de Sanders para saúde e educação!?... Depois de rirmos, ele acrescentou:- falando sério, quando li a plataforma dele pensei: já ouvi isso de alguém, em algum lugar e com a mesma oratória ... e tinha sido de você !!!...
            De fato, em 1986, houve um diálogo meu com um chefão da medicina ianque. Ele era o editor do livro do Harrison de medicina interna. Em minha exposição sobre ensino da medicina nas Américas, eu criticara os líderes da medicina dali, que eram excelentes em diagnóstico clínico e pareciam incapazes de diagnosticar o plano inclinado em que resvalava a assistência médica oferecida à maioria de seus conterrâneos. Ele retrucou que o horizonte assistencial dele não ultrapassava os limites dos melhores hospitais universitários do mundo e que, enquanto estes não decaíssem, tudo estaria bem.  Pois bem, Sanders repetiu agora o tal diagnóstico, documentando que nada está bem. Diagnóstico este referente não só à saúde como à educação - e a esta  também eu me referira. E a Hillary já concordava com isso e só não o externou por medo da poderosíssima indústria de saúde, de quem ela vem sendo vítima contumaz.

            Do que eu disse não houve mérito nenhum de minha parte, pois todos os estudiosos sérios fora dos EUA diriam o mesmo. A grande novidade e a grande esperança é Sanders dizê-lo nas circunstaâncias em que o fez.

terça-feira, 28 de junho de 2016

HELENA GRECO

HONRA A LUMINOSA GALERIA DAS MULHERES DE MINAS

João Amílcar Salgado
           O primeiro dos Grecos que conheci foi o Armando Greco, da turma de médicos de 1944, da hoje Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Eu era estudante de medicina e o ouvi na Associação Médica, em debate sobre o abuso de antibióticos. A medicina estava em lua de mel com os antibióticos e os hormônios, resultantes da segunda guerra mundial. Pela primeira vez alguém me dizia dos perigos do abuso de medicamentos cada vez mais eficazes e principalmente do abuso induzido por propaganda. Ele passou a ser meu herói pela coragem em desafiar poderosos interesses. Mas fiquei amigo próximo foi de seu irmão José Bartolomeu Greco, da turma de 1937, que não gostava do nome Bartolomeu e exigia ser tratado de J. B. Greco. Alergologista pioneiro em Minas, era casado com sua prima Helena, diplomada em farmácia no mesmo ano de 1937, e, quando o filho Dirceu, da turma de 1969,  foi meu residente em clínica médica, os Grecos passaram a ser como gente de minha família.
            O prazer, com que JB percorria as estantes de sua biblioteca apontando livros, citando frases e me pedindo opinião a cada passo, me é inesquecível e me diz que ele reciprocamente me considerava um filho. Ou melhor, eu não lhe figurava um filho mas um irmão na admiração filial a Carlos Jiménez Diaz, o insuperável clínico madrileno. A foto deste, que encimava suas estantes, foi-me legada com imensa ternura. JB foi também meu parceiro em historiar o pombo-correio como elemento inaugural da telemedicina em Minas.  Já Dirceu veio a ser um dos frutos vitoriosos da iniciação científica ligada à inovação pedagógica, de repercussão internacional, vivida na medicina da UFMG, nos anos 70 e 80 do século 20. Culminou como astro internacional do aplaudido programa brasileiro contra a AIDS.
            Poucos sabem que Helena Greco participou dessa inovação. Quando Agostinho Patrus foi empossado presidente da Associação Médica mineira, teve a audaz iniciativa de revolucionar a Revista da agremiação. Dirceu Greco e Antonio Dilson Fernandes, com minha participação, em 1974, passaram a inserir ali artigos anticonsumistas do The Medical Letter  On Drugs And Therapeutics, editado nos EUA. Dirceu indicou para tradutora, sem ônus, sua mãe Helena, que, além de poliglota, era considerada imbatível, no país, no jogo de palavras-cruzadas em qualquer idioma.  Essa colaboração inestimável era coerente com a tradição dos Greco na trincheira anticonsumista  e também da ética na ciência, que inclui Armando, JB e Dirceu Greco. O sucesso das traduções de Helena Greco permitiu a Adelmar Cadar  expandir o alcance da iniciativa, quando utilizou a moderna gráfica do então INAMPS para levar a cada médico e a cada estudante de medicina o Boletim de Medicamentos & Terapêutica (até 1987), neste caso com tradutor remunerado.
Enquanto isso, Helena Greco se fez ativista contra a tortura ocorrida desde o golpe de 1964 e em favor dos desaparecidos políticos, bem como contra a opressão de qualquer natureza: dos menores, mulheres, negros, indígenas, estudantes, homoafetivos, sofredores mentais, encarcerados, moradores de rua, pessoas sem teto e sem terra e o povo palestino. Apoiou também a radiofonia e a tevê comunitárias. Foi fundadora do Partido dos Trabalhadores, em sua proposta inicial, ao lado de Sergio Buarque, Antônio Cândido, Paulo Freire, Leonardo Boff, Betinho (Herbert Sousa), Apolo Heringer, Carmem Lúcia Antunes e Ayres Britto.  Daí se tornou vereadora de 1982 a 92.  Por causa dessa militância, sofreu atentado a bomba, outras ameaças físicas e de prisão, grampeamento telefônico, agressões morais e processo judicial.
Acompanhei de perto, mas sob equânime neutralidade política, toda essa magnífica trajetória. De tal testemunho concluo que a estatura histórica desta incrível mulher ainda não foi devidamente percebida e, portanto, avaliada. Conservo entre minhas mais sensíveis lembranças a cena quando em sua casa me apresentou a visitantes ilustres, ali chegados de dentro e de fora do país. Abraçando-me entre ela e o esposo, recomendou-lhes ouvir meus “causos mineiros” e acrescentou que  ela e JB sempre disputavam  qual repertório gostariam de apreciar, se sobre politica mineira ou se sobre história da medicina. Aproveitei para dizer àqueles convivas que minha mais recente pesquisa histórica consistia em verificar o possível parentesco de Helena Greco, por sua ascendência materna, com nada menos que Anita Garibaldi. E, apontando o casal, declarei: as brasileiras Helena e Anita entregaram seus corações a dois “italianos”.


O autor é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais