quinta-feira, 1 de dezembro de 2016
FIDEL E NOSSO ROMANTISMO DOS ANOS
DOURADOS
João Amílcar Salgado
No
livro O RISO DOURADO DA VILA (2003) eu digo que “A urologia e a
pediatria ainda ficavam no antigo hospital São Vicente, do qual relembro os
corredores arejados, ainda cheirando a iodofórmio, em pela era da penicilina.
Ali o Aparício Silva de Assis, que tinha acabado de almoçar com o general
Vernon Walters, nos garantia que os norte-americanos estavam apoiando os
guerrilheiros de Sierra Maestra. Foi então que meu colega João Cândido disse: a propósito o Fidel Castro foi ouvido no
México, dizendo na Rádio Rebelde que a primeira coisa que fará após derrubar o
ditador vai ser cortar os bigodes do cantor Bienvenido Granda...”
Noutra
parte do livro relato que, ao lado da república Remanso-de-Hipócrates, morava o
escritor Benito Barreto. Certo dia, em 1962, ouvimos muita gente chegando a seu
apartamento, todos em volta do escritor Jorge Amado, que viera prestigiar o
lançamento do primeiro livro do Benito, PLATAFORMA VAZIA. Fiquei ao lado
do Jorge o tempo todo, o qual então perguntou ao Benito se estava recebendo os jornais de Cuba. Este
respondeu que ultimamente parou de recebê-los e queixou: acho que o DOPS está interceptando minha correspondência. Fiquei
ali ouvindo tudo isso fingindo cara de pateta, porque eu era o interceptador. De
fato, nós lá na república líamos tudo, acompanhando os primeiros passos daquela
inacreditável vitória, inclusive a notícia de que Bievenido conseguira fugir,
preservando seus bigodes. Só confessei o
acontecido ao Benito muitos anos depois e ele riu muito.
Éramos
mais fãs do argentino Guevara do que do cubano Fidel. Esperávamos que
defendessem um socialismo democrático, mas não tiveram outra alternativa a não
ser cair nos braços da União Soviética. Quem os induziu a isto não foram os
soviéticos mas Robert McNamara, ministro de Kennedy. Este homem, além deste, cometeu outro crime:
a invasão da Bahia dos Porcos, contrariando o irmão do presidente, Robert
Kennedy. Mais tarde ele cometeria mais um: o mergulho na loucura da guerra do
Vietnã. Naquela invasão e nesta Guerra os EUA sacrificaram sobretudo seus
jovens e foram fragorosamente derrotados – além de causarem imensurável dor e
morticínio sem fim de inocentes.
De
nossa parte ficamos decepcionados com nossos heróis da Sierra Maestra,
especialmente pelo paredón, e com
nosso herói John Kennedy. Este ainda tentou amenizar as desigualdades sociais
da América Latina, por meio de gigantesco projeto de 20 bilhões de dólares da
época, denominado ALIANÇA PARA O PROGRESSO, cujo fim era evitar que os Andes se
transformassem em imensa Sierra Maestra. Kennedy e Guevara estavam em Punta del
Este, em 5/8/61, mas Chê se recusou a assinar o documento final da Aliança.
Robert,
o irmão de John Kennedy, nos parecia de nosso lado, contra McNamara. Mas, na
medida em que crescia essa discordância, ambos os Kennedy foram assassinados.
Assim, nós que sonhávamos com um mundo melhor sofremos rudes golpes, inclusive
a morte dos papas avançados João 23 e João Paulo 1º.
Esses
ideais juvenis (expressos em meu discurso de orador da turma, em 1960)
alimentaram a minha curiosidade sobre o que ocorreria em Cuba ao longo dos
anos. Luiz Felipe Cisalpino Carneiro, meu inesquecível amigo, e que foi um dos
vanguardeiros da humanização da psiquiatria mineira e brasileira, ao contrário
de nós, nunca deixou de ser fanático por
Fidel. Chegou a pedir minha ajuda para
visitar Cuba em plena ditadura no Brasil. E não é que consegui? Solicitei em
troca que nos trouxesse dados sobre a saúde e a educação de lá. Ministrou
magnifica aula sobre o hospital psiquiátrico de Havana em 3-5-1982.
Eu
próprio, também em plena ditadura, fui muito prestigiado em Puebla, México, em
1979, por causa da repercussão internacional da inovação no ensino da medicina,
conseguida na UFMG em 1974. Fui ali procurado por dirigentes educacionais de
vários países, inclusive para opinar sobre o ensino médico cubano. Neste caso,
aleguei que poderia ajudar em termos exclusivamente pedagógicos e sugeri que
buscassem a assessoria neutra da ONU/OPAS. Mas insistissem para que o assessor
fosse Juan Cesar Garcia. Assim, a inovação cubana ocorreu com vários aspectos
semelhantes ao novo ensino da UFMG. Nessa oportunidade, as autoridades
ministeriais mexicanas me levaram a um almoço onde tive longa conversa com uma
bela endocrinologista que chegou a ter um romance com Fidel. Ela adorou vários
de meus causos nepomucenenses.
Demais,
o admirável Luiz Carneiro me presenteou com um texto de Gabriel García Márquez,
no qual ele entrevista Fidel sobre o BOGOTAZO, ocorrido em 7/2/1948. Apresentei
no congresso de Historia da Medicina, de 2002, em Ribeirão Preto, SP, um
confronto entre esse texto e o discurso de João Guimarães Rosa, proferido em
sua posse na Academia de Letras. O resumo de tal estudo é o seguinte.
A Organização dos Estados
Americanos (OEA) foi criada em Bogotá em 1948. Por razões diferentes estavam
ali Rosa, Marques e Castro: o médico mineiro, como diplomata, Marques, como
jornalista, e Castro, como agitador estudantil. Afora os motivos que os levaram
a convergir para este lugar, nesta data, há algo em comum no modo de se
expressarem. Marques usava a palavra para a comunicação jornalística, Fidel,
para a oratória política, e Rosa para a ficção. Marques evoluiu do jornalismo
para a ficção e Castro igualmente, pois o sonho igualitário prossegue sendo a
mais sedutora e pertinaz ficção humana. Outro ponto em comum é a área da saúde,
embora, dos três, Rosa seja o único médico. Marques tematizou a saúde em seu
livro O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA (1985) e Castro comandou a construção
de um dos melhores sistemas de saúde do mundo.
Quando estavam ali, ocorreu o bogotazo, grande agitação popular,
precursor de nossos panelaços. Na
entrevista a Marques, Castro garantiu que o fenômeno foi espontâneo e ele
apenas tentou direcionar o movimento. Houve até sua célebre exortação quando,
do meio dos manifestantes, se dirigiu ao guarda do palácio, de arma em riste
contra todos – tentando convencê-lo a mudar de lado. No lado da OEA, os
delegados estrangeiros ficaram protegidos num bairro de luxo de Bogotá. Em seu
discurso de posse na Academia de Letras, Rosa descreve o medo de que a revolta
chegasse até eles. Garantiu que a coisa
foi amenizada pela prosa paregórica de
João Neves da Fontoura.
Finalmente,
chego ao tema que mais aprecio: a genealogia dos Castros. No referido livro O
RISO DOURADO DA VILA (2003), relato que em Londres, em 1976, ocorreu um
diálogo meu com historiadores da Universidade de Oxford, sobre isso. Um
historiador perguntou ao Luiz de Paula Castro (um dos maiores gastroenterologistas
do Brasil) qual era seu parentesco com Fidel Castro. O Luiz ficou indignado e
disse que não havia nenhum parentesco. Eu comecei a rir e me perguntaram a
causa do riso. Expliquei que havia parentesco sim, pois quase todos os Castro
do mundo provêm de pequena região galega. E, para provocar os ingleses, disse
que inclusive os Castro da história britânica tinham tal procedência. Aí foi a
vez dele se indignar: cite-me um Castro
histórico daqui!. Respondi com uma pergunta: como é o nome da rua aqui defronte? Ele respondeu: Lancaster Gate. Acrescentei: Lancaster quer dizer
Além-Castro, ou seja, Castro de Além Mar. Os Castro galegos atravessaram o mar
e conseguiram dar um golpe palaciano e assumem o poder em 1399, reinando até
1471. De início, os York sabiam dessa coisa e isso gerou a guerra civil chamada
GUERRA DAS DUAS ROSAS (1455-85). Todos os Tudor e os descendentes do casal
Isabel de York e Henrique Tudor são Castro.
Ou seja, Henrique 8º é Castro. Meu ouvinte ironizou: convido-o a dar uma aula de história em Oxford sobre algo que os
historiadores de Oxford ignoram. Estou esperando a confirmação do convite
até hoje.
Já
em 1992, os galegos aproveitaram que Fidel estava na Espanha e o convidaram
para visitar a cidade de Láncara, com o fim de participar de uma homenagem a
seu pai galego, Ângel Maria Castro Argiz (1875-1956), nascido ali. Ângel fora
enviado como soldado espanhol para lutar contra a independência de Cuba, país
onde faleceu na cidade de Holguin. Sua humilde
moradia galega ainda existe. Quando Fidel se transformou em herói
mundial, os galegos de todos os matizes ideológicos, inclusive alguns dos
homens mais ricos dos EUA, se orgulharam
de sua façanha. A própria CIA teria temido reação galega interna, quando
organizou os muitos atentados frustrados para assassinar Fidel. Os galegos não
só são disseminados pela Espanha, Américas, Reino Britâncio e pelo mundo, mas
controlam boa parte do PIB internacional.
Após
as invasões nórdicas, os Castro tiveram origem na estratégia israelita de
aloirar os sefardinos, por meio do matrimônio com descendentes celta-alanos. As
famílias galegas dominantes têm a mesma origem, como os Andrade, Salgado,
Machado, Garcia, Pires, Lara, Lemos e Ponce de Leon. De início os Castros já se
tornaram uma das mais poderosas e há quem inclua El Cid na linhagem Castro. Outros Castro que
estudo são os médicos Josué de Castro, Jorge Campos Rey de Castro e Ernesto Lhopart
de Castro.
O primeiro Castro de Portugal parece ter sido Pedro Fernandes de Castro,
cerca 1320, sendo ligados aos Nunes, Calvo e Laim. No Brasil assinala-se, no Rio
de Janeiro, desde 1639, Antônio de Castro, casado na família de Estácio de Sá.
A Minas (Sumidouro) chegou da Bahia o lisboeta Antônio Alves de Castro
(certamente parente do poeta Castro Alves), casado, em 1735, com a baiana Joana
Batista de Negreiros, e aí faleceu cerca de 1757. Mais tarde, Antonio Caetano
de Castro nasceu em Nepomuceno em 1843 e parte de sua família migrou com ele
para Casa Branca, SP. Parece que era irmão gêmeo de José Caetano de Castro,
ambos tenentes-coronéis e ligados à família nepomucenense dos Caetano de Lima,
com vínculos em Itaverava. Em 1868, Alípio Ferreira de Castro casou-se com
Mariana Cândida de Oliveira Lima, neta
de José Antônio de Lima (o Casaquinha), sendo filha de Antônio José de Lima,
falecido precocemente.
Na região de Lavras, os Castro são relacionados aos das cidades de
Pedro Leopoldo (Sumidouro), Barbacena, Prados e Oliveira, representados por
importantes ramos: Carrilho de
Castro, Castro Dias, Ferreira de Castro, Vinhas de Castro, Ribeiro de Castro, Nogueira
de Castro, Brasileiro de Castro e Castro
Assunção, certamente inter-relacionados.
Dois
Castro de importância histórica em Minas são Carlos Chagas, descobridor da
doença que traz seu nome, nascido em Oliveira, e o também médico Célio de
Castro, prefeito da Capital, nascido em Carmópolis de Minas. O sobredito Casaquinha
é meu tetravô materno em Nepomuceno e João Ferreira de Castro é meu bisavô
paterno em Três Pontas.
***
Na foto Fidel oferece ao Papa Francisco o livro do mineiro Frei Beto e confessa saudade de quando foi coroinha.
terça-feira, 13 de setembro de 2016
CID
VELOSO EM TRÊS CENÁRIOS
João Amílcar Salgado
MÓDULO ECGRÁFICO
Em 1962, os
poucos clínicos que sabiam interpretar o eletrocardiograma e a radiografia
cardíaca causavam inveja e, ao mesmo tempo, sonegavam os respectivos segredos
aos aprendizes. Liderados pelo Razuk, providenciamos a vinda do Tranchesi e do
Fujioka para nos assenhorearmos destes dois mistérios. Descobrimos que tudo o
que o Tranchesi e o Fujioka sabiam o Elian e o Javert já sabiam, e a grande
virtude desses paulistas eram os massetes interpretativos que divulgavam. O Tranchesi, da escola do Cabrera, enfatizava
o lado vetorial do eletro, o que complicava a coisa. Aí é que entrou a
criatividade do Cid Veloso. Ele criou um módulo de treinamento da maior
simplicidade e rapidez - tornando obsoleto o excelente livro do Tranchesi.
Qualquer um que manuseasse sua coleção didática - democraticamente aberta a todos
- em seis meses já era um razoável intérprete. E coincidiu que foi lançada a
primeira linha de aparelhos portáteis. Vários foram encomendados. Um mandão da cardiologia recebeu a visita do
revendedor, entusiasmado com o boom de venda. Quis saber onde era o ninho dos
que ameaçavam sua reserva de mercado. Chegou à sala do Cid acompanhado do
Galizzi e do Elian que o viram espinafrar o imperturbável recém-formado. Gritou
ao Cid: você é um fedelho e dependendo de mim nem título de cardiologista terá.
O Elian e o Galizzi retiraram o
vociferante dali e lhe explicaram que aquele lugar era uma universidade e nela
nenhuma censura teria cabimento.
LESÃO DA PONTA
Em 1963, houve
entusiasmo com a descoberta do padrão eletrocardiográfico da chamada lesão de ponta, própria do coração
chagásico. Todos a elogiavam, mas Cid
Veloso fez reparo ao método da pesquisa, pois o autor se limitara a examinar
unilateralmente os registros dos pacientes falecidos com a lesão. Dois
cardiologistas ex-professores do Cid, o recriminaram fortemente. Galizzi pediu
ao jovem que respondesse àquelas duras palavras, e este, com a serenidade que
lhe é peculiar, surpreendeu a todos. Disse que a resposta não poderia ser
expressa ali, mas estava guardada nos arquivos do Bogliolo. E foi então que o
Cid Veloso, apoiado pelo Arnaldo Elian e por mim, fez a investigação recíproca:
procurar o tal padrão na coleção de registros e separar aqueles de pacientes
falecidos. Daí partiu para o arquivo anatômico e não encontrou a completa
correspondência entre o padrão e a lesão. A pesquisa saiu nos Arquivos
Brasileiros de Cardiologia (1964, 17, 505-18). Em reunião geral de todas as
cadeiras de Clínica Médica, o temido e avaro professor Osvaldo de Melo Campos,
que nunca fora ouvido elogiar alguém e nunca dera nota máxima em qualquer
concurso, apareceu com a separata desta investigação nas mãos e, antes de qualquer coisa, a exibiu dizendo:
esta
é a tese de doutorado para a qual eu daria nota dez. E foi assim que Melo
Campos concedeu pessoalmente ao jovem Cid o título de cientista.
BISPO TUTU
Em
21-5-1987, o bispo Tutu recebeu o título de professor honoris causa da UFMG. Em
reunião na reitoria, discutimos a programação da visita dele à Universidade e
quando levantamos a possibilidade de, na oportunidade, dar-lhe o título honoris
causa, houve nítida reação de desagrado de boa parte dos presentes, que
inclusive deram a desculpa de que havia uma burocracia a ser cumprida e que não
daria tempo. Alguém disse: será que esse preto merece tão alto título? Pois
bem, foi uma das coisas mais emotivas que aconteceu nesta instituição. No
gabinete da reitoria, saboreávamos o coquetel de recepção, quando todos fomos
para as janelas, pois iniciava-se vibrante batuque, executado uníssono, ali no
pátio em frente, por quase todos os grupos de congado de Minas. A seguir
descemos para diante de um palanque. Nele o bispo Tutu, acompanhado de padres
negros e mulatos, e também de oficiantes
de várias religiões, concelebrou arrepiante Missa Conga. Só mesmo Cid
Veloso, o primeiro reitor federal eleito pelo voto direto, poderia ter-nos
brindado com tão inesquecível cena.
quinta-feira, 1 de setembro de 2016
terça-feira, 9 de agosto de 2016
IVO PITANGUY
A mais requintada expressão da cirurgia mineira
João
Amílcar Salgado
Era
julho de 1946, eu estava no 3º ano de primeiras letras e acompanhava a animação
em minha casa por causa da formatura naquele final de ano de meu tio, Aprígio
de Abreu Salgado (saneador da malária sulmineira, sem o que não haveria
Furnas), que morava conosco. Na casa em frente residia a dona Sinhaninha, prima
de minha mãe, e ali estavam dois outros formandos: o filho dela, Adauto Barbosa
Lima (cardiologista de nossa primeira circulação extracorpórea), e o primo
deste, Oscar Resende Lima (proeminente docente de psiquiatria da USP). E na
cidade havia um quarto formando, filho de grande amigo de meu pai: Alberto
Sarquis (admirável médico integral). Aquela cidadezinha, Nepomuceno, que
raramente formava um médico, naquele ano formava nada menos do que quatro e
numa das mais brilhantes turmas da Universidade. Lembro-me bem que o Adauto e o
Oscarzinho orientavam o Aprígio e o Alberto sobre a casimira que deviam
vestir na festa.
Em
meus verdes nove anos, mal sabia que conviveria longamente com outros formandos
daquele ano, em minha carreira docente na mesma Faculdade que os graduou. E mal
sabia eu que estaria aqui hoje a saudar o astro insigne dessa turma de
estrelas, o scollar Ivo Helcius Jardim de Campos Pitanguy. Por este
nome, que é um verso alexandrino, percebe-se que seus pais, o cirurgião Antônio
Campos Pitanguy e a beletrista Maria Stael Jardim, eram poetas, e com poesia
profetizaram a especialidade do filho, eis que a cirurgia plástica nada mais é
que o ramo da medicina mais próximo da expressão estética.
A
medicina mineira tem bela história a dizer ao mundo. Esta afirmação eu a fiz
nos 90 anos de nossa Faculdade Máter e a repeti em seu centenário, no ano
passado. Não cabem aqui as páginas que listem as impressionantes primazias
mineiras. Basta dizer que são mineiras as maiores contribuições brasileiras à
ciência: a descoberta da doença de Chagas por Carlos Chagas e a da bradicinina
por Wilson Beraldo, além de serem egressos desta mesmíssima Faculdade o maior
presidente brasileiro: Juscelino Kubitschek, o maior memorialista lusófono:
Pedro Nava, e o mais original prosador do idioma: Guimarães Rosa.
Cabe, contudo,
acrescentar que Baeta Viana, paraninfo dessa formidável turma de 1946, se
coloca ao lado desses cinco gigantes, não por alguma descoberta científica, mas
por ter descoberto um conjunto harmonioso de cientistas pré-clínicos, um deles
Beraldo, e outro conjunto, não menos esmerado e influente, de clínicos
cientistas e cirurgiões cientistas, um destes, Ivo Pitanguy.
E o
apostolado científico desse paraninfo fez dele um engajado político, pois em
1946 ele era apontado como uma das alavancas que fendilharam a sólida ditadura
Vargas. Então essa turma está na história do Brasil como aquela que celebrando
a ciência em Viana, celebrou nele a democracia, que ele pregou irmã daquela. E
mais, é a turma que, na memória deste país, realizou algo inédito: teve a
audácia de, homenageando o herói Eduardo Gomes, projetá-lo como candidato à
presidência da República.
Minas está bem presente
na personalidade do maior cirurgião plástico do mundo. Sim, Ivo Pitanguy deve
ser considerado uma das personalidades simbólicas do fenômeno antropológico
muitas vezes chamado de “jeito mineiro de ser”. Se seu jeito é este,
impõe-se perguntar: que menino e que adolescente foi ele?
De acordo
com a tradição, infelizmente abandonada, na turma de 1946, cada formando foi
retratado em soneto jocoso, assinado por autor incógnito (certamente João Vale
Maurício), sendo Ivo Pitanguy assim descrito: “Esse rapaz tem vocação
“cortante” / Seu destino é pegar... no bisturi / Tem esse nome lírico e
cantante: / Hélcio Jardim de Campos Pitanguy // O seu “campo” de estudo é a
Anatomia / O seu esporte: tênis, natação / E encerra a vida nessa trilogia: /
Uma raquete, um bisturi, um calção. // ... ... ... // “
Em verdade, no
humor do texto está resumida a admiração que causava. Trazendo, nos sobrenomes
Jardim e Campos, heráldicas raízes coloniais mineiras, o estudante Ivo, filho
de estimada família da Capital, fez parte da juventude dourada dos anos
dourados belorizontinos. Este ambiente hoje é bem conhecido graças ao sucesso
do livro O ENCONTRO MARCADO, de Fernando Sabino, de 1956, sendo que
Hélio Pellegrino, um dos protagonistas, foi contemporâneo (turma de 1947) de
Ivo na Faculdade.
Desse já tão alto
promontório despontou a vocação irresistível de Ivo Pitanguy para conciliar o
tradicional e o moderno. De imediato, impressionou seus colegas universitários,
afeitos ao francês do Testut, com o acréscimo do inglês e assim alargou o
alcance de sua formação humanística, trazida de berço. Igualmente, aos
hábitos ancestrais das famílias mineiras ajuntou o culto ao esporte, abrangendo
da natação ao tênis e à luta marcial. Acrescente-se depois sua desenvoltura
internacional, em estágios nos melhores centros médicos dos EUA, da Inglaterra
e da França e decorrentemente como conferencista em congressos e como formador
de centenas de especialistas oriundos de dezenas de países. Tudo isso
alicerçou o estilo original e perfeccionista que imprimiu à especialidade que
escolheu, tornando-se figura singular e inigualável no panteão mundial da
cirurgia plástica.
No Rio, onde
cursou o sexto ano de sua graduação, foi-lhe oportuno fazer profuso atendimento
a pequenos e grandes traumas em pronto-socorro. Isso lhe deu a inspiração para
organizar inéditos e modelares serviços, na 38ª Enfermaria da Santa Casa
e em atendimento privado. De tais realizações, sua liderança e seu carisma
extraíram novo pioneirismo, desta vez em pedagogia: criou, em 1960, a primeira
pós-graduação cirúrgica formal no Brasil, pela Pontifícia Universidade Católica
carioca.
Além de
cirurgião plástico, com numerosos discípulos, clientes e admiradores,
multiplicados pelo Brasil e pelo mundo, entre os quais várias celebridades, foi
inevitável que se tornasse autor de livros científicos e literários, alguns em
co-autoria. Escreveu MAMAPLASTIAS (1976), CIRURGIA ESTÉTICA DA CABEÇA E CORPO
(1981, em inglês, prêmio de melhor obra científica do ano, na Feira
Internacional do Livro de Frankfurt), OPERAÇÕES PLÁSTICAS DA ORELHA (1982,
bilíngüe), DIREITO À BELEZA (1984, trilíngue), ANGRA DOS REIS – BAÍA DOS REIS
MAGOS (1986), UM JEITO DE VER O RIO (1991), PARATII-PARATY (1992), APRENDENDO
COM A VIDA (1993), ATLAS DE CIRURGIA PALPEBRAL (1994), APRENDIZ DO TEMPO
(2007), CARTAS A UM JOVEM CIRURGIÃO (2008). Em 2011 o escritor e jornalista
John Holzer lançou nos EUA um livro consagrador sobre Pitanguy, prefaciado por
nada menos que Denton Cooley, o extraordinário implantador e transplantador de
corações.
Com a
experiência e a erudição que Ivo Pitanguy acumulou, verifica-se, por seus
textos, que afinal desenvolveu uma espécie de filosofia estética, na qual se
percebe também inovador ingrediente ecológico. Aristóteles, Vitrúvio e
Michelangelo lhe invejariam as oportunidades de ter lidado não só com os mais
belos, mas com os mais defeituosos e variados corpos humanos imagináveis, em
impressionante amostragem internacional, tendo como ponto de partida a
esplêndida composição racial nativa.
Do rococó
diamantinense ao multifacetado Rio de Janeiro, do trópico brasileiro ao
sofisticado burburinho internacional, Ivo Pitanguy não nega e nem procura
esconder sua venusta radicalidade mineira. Ao contrário, é dela a fronte e a
insígnia, em entalhe e lavor ao pé da letra.
O autor é
professor titular de Clínica Médica da UFMG e criador do Centro de Memória da
Medicina de Minas Gerais. Texto de 2012, quando saudou Pitanguy a convite de LOR
domingo, 17 de julho de 2016
BERNIE SANDERS, A SAÚDE E A EDUCAÇÃO
João Amílcar Salgado
Com
Bernie Sanders aconteceu agora o que antes não aconteceu com outros candidatos,
que tentaram sem êxito inovar o debate sucessório nos EUA. Para mim ele foi
grata surpresa, que se somou a grata mensagem que recebi. Um amigo de lá, que
se tornou admirador de minhas ideias sobre saúde e educação, brincou comigo,
logo que Sanders começou a aparecer no noticiário. Ele me interpelou: jure
que não foi você que escreveu a plataforma de Sanders para saúde e
educação!?... Depois de rirmos, ele acrescentou:- falando sério, quando li a
plataforma dele pensei: já ouvi isso de alguém, em algum lugar e com a mesma
oratória ... e tinha sido de você !!!...
De fato, em 1986, houve um diálogo meu com um chefão da
medicina ianque. Ele era o editor do livro do Harrison de medicina interna. Em
minha exposição sobre ensino da medicina nas Américas, eu criticara os líderes
da medicina dali, que eram excelentes em diagnóstico clínico e pareciam incapazes
de diagnosticar o plano inclinado em que resvalava a assistência médica
oferecida à maioria de seus conterrâneos. Ele retrucou que o horizonte
assistencial dele não ultrapassava os limites dos melhores hospitais
universitários do mundo e que, enquanto estes não decaíssem, tudo estaria bem. Pois bem, Sanders repetiu agora o tal
diagnóstico, documentando que nada está bem. Diagnóstico este referente não só
à saúde como à educação - e a esta
também eu me referira. E a Hillary já concordava com isso e só não o externou
por medo da poderosíssima indústria de saúde, de quem ela vem sendo vítima
contumaz.
Do que eu disse não houve mérito nenhum de minha parte,
pois todos os estudiosos sérios fora dos EUA diriam o mesmo. A grande novidade
e a grande esperança é Sanders dizê-lo nas circunstaâncias em que o fez.
terça-feira, 28 de junho de 2016
HELENA GRECO
HONRA A LUMINOSA GALERIA DAS MULHERES DE MINAS
João Amílcar Salgado
O primeiro dos Grecos que conheci foi o Armando Greco, da
turma de médicos de 1944, da hoje Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Eu era estudante de medicina e o ouvi na Associação Médica, em debate sobre o
abuso de antibióticos. A medicina estava em lua de mel com os antibióticos e os
hormônios, resultantes da segunda guerra mundial. Pela primeira vez alguém me
dizia dos perigos do abuso de medicamentos cada vez mais eficazes e
principalmente do abuso induzido por propaganda. Ele passou a ser meu herói
pela coragem em desafiar poderosos interesses. Mas fiquei amigo próximo foi de
seu irmão José Bartolomeu Greco, da turma de 1937, que não gostava do nome
Bartolomeu e exigia ser tratado de J. B. Greco. Alergologista pioneiro em
Minas, era casado com sua prima Helena, diplomada em farmácia no mesmo ano de
1937, e, quando o filho Dirceu, da turma de 1969, foi meu residente em clínica médica, os Grecos
passaram a ser como gente de minha família.
O prazer,
com que JB percorria as estantes de sua biblioteca apontando livros, citando
frases e me pedindo opinião a cada passo, me é inesquecível e me diz que ele
reciprocamente me considerava um filho. Ou melhor, eu não lhe figurava um filho
mas um irmão na admiração filial a Carlos Jiménez Diaz, o insuperável clínico
madrileno. A foto deste, que encimava suas estantes, foi-me legada com imensa
ternura. JB foi também meu parceiro em historiar o pombo-correio como elemento
inaugural da telemedicina em Minas. Já
Dirceu veio a ser um dos frutos vitoriosos da iniciação científica ligada à
inovação pedagógica, de repercussão internacional, vivida na medicina da UFMG,
nos anos 70 e 80 do século 20. Culminou como astro internacional do aplaudido
programa brasileiro contra a AIDS.
Poucos
sabem que Helena Greco participou dessa inovação. Quando Agostinho Patrus foi
empossado presidente da Associação Médica mineira, teve a audaz iniciativa de
revolucionar a Revista da agremiação. Dirceu Greco e Antonio Dilson Fernandes,
com minha participação, em 1974, passaram a inserir ali artigos anticonsumistas
do
The Medical Letter On Drugs And
Therapeutics, editado nos EUA. Dirceu indicou para tradutora, sem ônus, sua
mãe Helena, que, além de poliglota, era considerada imbatível, no país, no jogo
de palavras-cruzadas em qualquer idioma.
Essa colaboração inestimável era coerente com a tradição dos Greco na
trincheira anticonsumista e também da
ética na ciência, que inclui Armando, JB e Dirceu Greco. O sucesso das
traduções de Helena Greco permitiu a Adelmar Cadar expandir o alcance da iniciativa, quando
utilizou a moderna gráfica do então INAMPS para levar a cada médico e a cada
estudante de medicina o Boletim de Medicamentos & Terapêutica (até
1987), neste caso com tradutor remunerado.
Enquanto
isso, Helena Greco se fez ativista contra a tortura ocorrida desde o golpe de
1964 e em favor dos desaparecidos políticos, bem como contra a opressão de
qualquer natureza: dos menores, mulheres, negros, indígenas, estudantes,
homoafetivos, sofredores mentais, encarcerados, moradores de rua, pessoas sem
teto e sem terra e o povo palestino. Apoiou também a radiofonia e a tevê comunitárias.
Foi fundadora do Partido dos Trabalhadores, em sua proposta inicial, ao lado de
Sergio Buarque, Antônio Cândido, Paulo Freire, Leonardo Boff, Betinho (Herbert
Sousa), Apolo Heringer, Carmem Lúcia Antunes e Ayres Britto. Daí se tornou vereadora de 1982 a 92. Por causa dessa militância, sofreu atentado a
bomba, outras ameaças físicas e de prisão, grampeamento telefônico, agressões
morais e processo judicial.
Acompanhei de perto, mas sob equânime neutralidade política, toda essa
magnífica trajetória. De tal testemunho concluo que a estatura histórica desta
incrível mulher ainda não foi devidamente percebida e, portanto, avaliada.
Conservo entre minhas mais sensíveis lembranças a cena quando em sua casa me
apresentou a visitantes ilustres, ali chegados de dentro e de fora do país.
Abraçando-me entre ela e o esposo, recomendou-lhes ouvir meus “causos mineiros”
e acrescentou que ela e JB sempre disputavam qual repertório gostariam de apreciar, se sobre
politica mineira ou se sobre história da medicina. Aproveitei para dizer
àqueles convivas que minha mais recente pesquisa histórica consistia em
verificar o possível parentesco de Helena Greco, por sua ascendência materna,
com nada menos que Anita Garibaldi. E, apontando o casal, declarei: as
brasileiras Helena e Anita entregaram seus corações a dois “italianos”.
O autor é professor titular de Clínica
Médica da Universidade Federal de Minas Gerais e criador do Centro de Memória
da Medicina de Minas Gerais
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