ARNALDO ELIAN – INSIGNE PROPEDEUTA
joão amílcar salgado
Em
1961, Arnaldo Elian integrava a equipe do professor João Galizzi, catedrático
de Clínica Propedêutica Médica da então Universidade de Minas Gerais (hoje
UFMG). Sendo eu recém-chegado
médico-bolsista (hoje R1), ele me convidou para ajudá-lo a converter uma
fibrilação atrial recém-instalada. Nessa
época a conversão se fazia trabalhosamente, pois a monitorização era feita por
registro gráfico num grande eletrocardiógrafo a válvula. Percebendo minha admiração por sua tranquila
destreza, explicou que, nos EUA, ele era o preferido do chefe para aquela
tarefa. Naquele país o Arnaldo recebeu treinamento nas universidades de
Georgetown e de West Virginia.
Data
daí nossa amizade e minha condição de seu eterno discípulo. Demais, como estudioso da história da
medicina, me entusiasmava estar tão próximo de quem carregava consigo as
medicinas árabe e armênia. Nestorianos,
armênios, sírio-libaneses e, principalmente, abássidas cometeram a proeza de
intermediar o nexo entre a tradição egipcio-sumério-helênica e a medicina
renascentista.
Sim, desde essa época me fiz
genealogista dos vínculos entre gerações
de cientistas. Tanto assim que depois estimulei Luiz Savassi Rocha a documentar
a aristocrática ascendência daqueles de nós que fomos aprendizes junto a
Bogliolo, a qual nos faz remontar a Morgagni e a Galileu. Fenômeno similar se encontra nos dados de
Ênio Cardillo referentes a ancestrais científicos, como Lavoisier, Gay-Lussac e
Liebig, aos quais nos remete Baeta Viana.
No caso de Elian, há outra
vertente genealógica, esta norteamericana, muito honrosa para nós seus pupilos.
Sendo ele discípulo e amigo de Procter Harvey, isso nos transforma em bisnetos
científicos de Samuel Levine, trinetos de Paul White e tetranetos de William
Osler. A pós-graduação ianque de Arnaldo Elian foi feita ao lado de outro
brilhante mineiro, Adauto Barbosa Lima, que veio a ser o cardiologista da
primeira cirurgia brasileira realizada com dispositivo circulatório
extracorpóreo. Mais tarde, em 1980, nos
EUA, muito me emocionou estar diante do manequim revolucionário projetado pelo
próprio Harvey, que simulava qualquer
quadro cardiológico, do qual, salvo engano, foram confeccionados apenas dois
modelos experimentais. Ali, então, fomos convidados a testá-lo, o Antônio
Dilson Fernandes e eu.
Coincidentemente, Dilson era raro
talento polivalente que Elian muito admirava, pois era fisiologista, clínico,
cirurgião, músico e humorista, mas que cedo nos deixou.
Ainda em 1961 foi internada
na Propedêutica a histórica paciente Berenice, que ficou a
meus cuidados, com a participação do Celso Afonso de Oliveira e do estudante
Adailton de Campos Belo, sob a estreita supervisão do professor João Galizzi.
Arnaldo Elian foi então solicitado a examinar e reexaminar os
eletrocardiogramas dela, os quais exibiam enigmático PR curto, do qual ele
sabiamente descartou origem chagásica.
Em 1962 o Arnaldo internou,
em leito aos meus cuidados, paciente que também se tornaria histórico, pois
logo seria objeto de reportagens na revista O Cruzeiro e em todos os
jornais, como o primeiro paciente
brasileiro a receber, com sucesso, um marcapasso cardíaco. Charles Hufnagel
(primeiro no mundo em prótese de válvula aórtica), João Rezende Alves, Jesus
Zerbini, Sebastião Rabelo e Arnaldo Elian estrelaram o acontecimento,
acolitados por três colegas da mesma turma de 1960: Sérgio Almeida (que fez o
pós-operatório), Gilberto Lino e eu.
Isto se deu no 18o
Congresso Brasileiro de Cardiologia, que incluiu mais outro acontecimento
histórico, desta vez político. O país vinha agitado pela renúncia, um ano
antes, do presidente Jânio Quadros. Os
estudantes, liderados por Henrique Santillo (mais tarde governador de Goiás e
ministro da saúde) aproveitaram o palco daquele encontro, sob holofotes nacionais
e com convidados internacionais, e ocuparam o saguão da Faculdade, de modo a
impedir a solene abertura na manhã seguinte. Arnaldo e Afonso Moreira (este em
lágrimas) ouviram dos estudantes que, apesar de serem mestres muito queridos,
não seriam atendidos. Restou a nosso Elian,
presidente do conclave, procurar a contragosto o governador Magalhães
Pinto para que fizesse desocupar o local, mas o mandatário de Minas alegou que
estava proibido, pelo presidente da republica João Goulart, de qualquer ação
contra operários ou estudantes. Pinto sugeriu, entretanto, que apelasse ao
comandante das tropas federais, insinuando que este desobedeceria a Goulart.
Foi o que aconteceu. Isso significa que,
se a resposta desobediente a Jango, dada pelo comandante ao apelo desesperado
de nosso Elian, tivesse sido interpretada corretamente pelos desatentos
janguistas, talvez os vinte anos de ditadura tivessem sido evitados.
Desde então, bem conhecido
grupo de asseclas do Elian veio sendo formado a partir de Antônio Moretzsohn,
Celmo Porto, Edson Razuk e minha pessoa.
Depois vieram Cid Veloso, Carlos Alberto Barros Santos, Álvaro
Piancastelli, Dilson Fernandes, Cláudio Sales, Antônio Cândido e outros
tantos discípulos-de-discípulos. Além de aprendermos com ele
medicina interna e cardiologia da melhor qualidade, a pouco fomos
descobrindo seus segredos fora da medicina. Tremendo conhecedor de comida e
bebida finas, freqüentador dos mais refinados restaurantes do primeiro mundo e
do Brasil, poderia escrever livros sobre qualquer desses temas. Foi, aliás, num restaurante refinado do Rio
que sua semelhança crescente com o também árabe Jorge Amado (Ahmed de origem)
teve momento célebre: a metade dos fãs tomou o verdadeiro Jorge por sósia e
veio pedir autógrafos a nosso Arnaldo.
Outra faceta desse gentleman cumulado de mineirice foi
revelada quando comandou o Colegiado de Curso Médico, em momento mais que
turbulento da inovação curricular transcorrida na UFMG, entre 1975 e 85,
infelizmente hoje abortada. Era então presidente do diretório estudantil o
insurreto e destemido Jésus Fernandes. Nessa memorável cruzada, descobrimos
então que o notável cardiologista escondia um coordenador hábil, um negociador
inesgotável, enfim um Saladino redivivo em plena ditadura militar. Graças a
ele, todos os ferozes adversários de então são hoje amigos sem mágoa. Nisso ele não fazia mais que espelhar dois
outros médicos-políticos de qualidades análogas, de que era fraternal amigo e
conselheiro: o udenista Dario Faria Tavares e o pessedista Eduardo Levindo
Coelho.
A antiga Clínica
Propedêutica Médica, amenamente chefiada por João Galizzi, tornou-se legendária
pelo equilíbrio entre habilidades, conhecimentos e, principalmente, atitudes -
absorvidos pelos alunos no curto prazo de um ano, mas levados permanentes pela
vida em fora. Galizzi ,
o reverenciado herdeiro da mais legítima tradição greco-latina, teve por
grão-vizir Arnaldo Elian, esse insigne depositário da mais brilhante herança
levantina, sem a qual não existiria a medicina ocidental moderna.