João Amílcar Salgado

segunda-feira, 14 de maio de 2018


ARNALDO ELIAN – INSIGNE PROPEDEUTA
joão amílcar salgado

            Em 1961, Arnaldo Elian integrava a equipe do professor João Galizzi, catedrático de Clínica Propedêutica Médica da então Universidade de Minas Gerais (hoje UFMG).  Sendo eu recém-chegado médico-bolsista (hoje R1), ele me convidou para ajudá-lo a converter uma fibrilação atrial recém-instalada.  Nessa época a conversão se fazia trabalhosamente, pois a monitorização era feita por registro gráfico num grande eletrocardiógrafo a válvula.  Percebendo minha admiração por sua tranquila destreza, explicou que, nos EUA, ele era o preferido do chefe para aquela tarefa. Naquele país o Arnaldo recebeu treinamento nas universidades de Georgetown e de West Virginia.
            Data daí nossa amizade e minha condição de seu eterno discípulo.  Demais, como estudioso da história da medicina, me entusiasmava estar tão próximo de quem carregava consigo as medicinas árabe e armênia.  Nestorianos, armênios, sírio-libaneses e, principalmente, abássidas cometeram a proeza de intermediar o nexo entre a tradição egipcio-sumério-helênica e a medicina renascentista. 
Sim, desde essa época me fiz genealogista  dos vínculos entre gerações de cientistas. Tanto assim que depois estimulei Luiz Savassi Rocha a documentar a aristocrática ascendência daqueles de nós que fomos aprendizes junto a Bogliolo, a qual nos faz remontar a Morgagni e a Galileu.  Fenômeno similar se encontra nos dados de Ênio Cardillo referentes a ancestrais científicos, como Lavoisier, Gay-Lussac e Liebig, aos quais nos remete Baeta Viana.                 
No caso de Elian, há outra vertente genealógica, esta norteamericana, muito honrosa para nós seus pupilos. Sendo ele discípulo e amigo de Procter Harvey, isso nos transforma em bisnetos científicos de Samuel Levine, trinetos de Paul White e tetranetos de William Osler. A pós-graduação ianque de Arnaldo Elian foi feita ao lado de outro brilhante mineiro, Adauto Barbosa Lima, que veio a ser o cardiologista da primeira cirurgia brasileira realizada com dispositivo circulatório extracorpóreo.  Mais tarde, em 1980, nos EUA, muito me emocionou estar diante do manequim revolucionário projetado pelo próprio Harvey, que simulava  qualquer quadro cardiológico, do qual, salvo engano, foram confeccionados apenas dois modelos experimentais. Ali, então, fomos convidados a testá-lo, o Antônio Dilson Fernandes e eu.  Coincidentemente,  Dilson era raro talento polivalente que Elian muito admirava, pois era fisiologista, clínico, cirurgião, músico e humorista, mas que cedo nos deixou.
Ainda em 1961 foi internada na Propedêutica  a histórica paciente Berenice, que ficou a meus cuidados, com a participação do Celso Afonso de Oliveira e do estudante Adailton de Campos Belo, sob a estreita supervisão do professor João Galizzi. Arnaldo Elian foi então solicitado a examinar e reexaminar os eletrocardiogramas dela, os quais exibiam enigmático PR curto, do qual ele sabiamente descartou origem chagásica. 
Em 1962 o Arnaldo internou, em leito aos meus cuidados, paciente que também se tornaria histórico, pois logo seria objeto de reportagens na revista O Cruzeiro e em todos os jornais,  como o primeiro paciente brasileiro a receber, com sucesso, um marcapasso cardíaco. Charles Hufnagel (primeiro no mundo em prótese de válvula aórtica), João Rezende Alves, Jesus Zerbini, Sebastião Rabelo e Arnaldo Elian estrelaram o acontecimento, acolitados por três colegas da mesma turma de 1960: Sérgio Almeida (que fez o pós-operatório), Gilberto Lino e eu.
Isto se deu no 18o Congresso Brasileiro de Cardiologia, que incluiu mais outro acontecimento histórico, desta vez político. O país vinha agitado pela renúncia, um ano antes, do presidente Jânio Quadros.  Os estudantes, liderados por Henrique Santillo (mais tarde governador de Goiás e ministro da saúde) aproveitaram o palco daquele encontro, sob holofotes nacionais e com convidados internacionais, e ocuparam o saguão da Faculdade, de modo a impedir a solene abertura na manhã seguinte. Arnaldo e Afonso Moreira (este em lágrimas) ouviram dos estudantes que, apesar de serem mestres muito queridos, não seriam atendidos. Restou a nosso Elian,  presidente do conclave, procurar a contragosto o governador Magalhães Pinto para que fizesse desocupar o local, mas o mandatário de Minas alegou que estava proibido, pelo presidente da republica João Goulart, de qualquer ação contra operários ou estudantes. Pinto sugeriu, entretanto, que apelasse ao comandante das tropas federais, insinuando que este desobedeceria a Goulart. Foi o que aconteceu.  Isso significa que, se a resposta desobediente a Jango, dada pelo comandante ao apelo desesperado de nosso Elian, tivesse sido interpretada corretamente pelos desatentos janguistas, talvez os vinte anos de ditadura tivessem sido evitados.
Desde então, bem conhecido grupo de asseclas do Elian veio sendo formado a partir de Antônio Moretzsohn, Celmo Porto, Edson Razuk e minha pessoa.  Depois vieram  Cid Veloso,  Carlos Alberto Barros Santos, Álvaro Piancastelli, Dilson Fernandes, Cláudio Sales, Antônio Cândido e outros tantos  discípulos-de-discípulos.  Além de aprendermos com  ele  medicina interna e cardiologia da melhor qualidade, a pouco fomos descobrindo seus segredos fora da medicina. Tremendo conhecedor de comida e bebida finas, freqüentador dos mais refinados restaurantes do primeiro mundo e do Brasil, poderia escrever livros sobre qualquer desses temas.  Foi, aliás, num restaurante refinado do Rio que sua semelhança crescente com o também árabe Jorge Amado (Ahmed de origem) teve momento célebre: a metade dos fãs tomou o verdadeiro Jorge por sósia e veio pedir autógrafos a nosso Arnaldo.
Outra faceta desse gentleman cumulado de mineirice foi revelada quando comandou o Colegiado de Curso Médico, em momento mais que turbulento da inovação curricular transcorrida na UFMG, entre 1975 e 85, infelizmente hoje abortada. Era então presidente do diretório estudantil o insurreto e destemido Jésus Fernandes. Nessa memorável cruzada, descobrimos então que o notável cardiologista escondia um coordenador hábil, um negociador inesgotável, enfim um Saladino redivivo em plena ditadura militar. Graças a ele, todos os ferozes adversários de então são hoje amigos sem mágoa.  Nisso ele não fazia mais que espelhar dois outros médicos-políticos de qualidades análogas, de que era fraternal amigo e conselheiro: o udenista Dario Faria Tavares e o pessedista Eduardo Levindo Coelho.
A antiga Clínica Propedêutica Médica, amenamente chefiada por João Galizzi, tornou-se legendária pelo equilíbrio entre habilidades, conhecimentos e, principalmente, atitudes - absorvidos pelos alunos no curto prazo de um ano, mas levados permanentes pela vida em fora. Galizzi, o reverenciado herdeiro da mais legítima tradição greco-latina, teve por grão-vizir Arnaldo Elian, esse insigne depositário da mais brilhante herança levantina, sem a qual não existiria a medicina ocidental moderna.


AJAX PINTO FERREIRA
Admirável perfil de médico completo
        Ajax Pinto Ferreira graduou-se em medicina pela atual Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1971.  Como estudante, foi ativista antiditadura e na formatura conseguiu, ao lado de outros líderes, impor o nome de Amílcar Viana Martins para paraninfo. Esse gosto pela política permanece até hoje, seja atuando nas relações de mando em sua cidade de Lagoa Santa (uma tradição de família), seja por seu prestígio na administração universitária, ou ainda por sua inapagável admiração ao médico-político Ernesto Guevara.  Outro atributo de sua cativante personalidade é a cultura humanística, absorvida do ambiente escolar e social de Ouro Preto e alimentada por seu costume de freqüentar os jornais diários com diatribes deliciosas, sob a forma de cartas-à-redação ou artigos ocasionais.
            No final da graduação e logo depois recebeu excelente treinamento, feito de propósito para que tivesse condições de enfrentar sozinho o interior.  Foi para Abaeté e lá se saiu muito bem, voltando para a Faculdade com o saldo de muitas e belas amizades e de invejável experiência em clínica geral de adulto e criança, cirurgia geral, obstetrícia e ortopedia.  Continua ligado a esta cidade e a Lagoa Santa, pois muita gente de seu convívio não tem nenhuma dúvida de que o Dr. Ajax é o melhor médico do mundo, além de infalível apoio em horas difíceis e preciosa referência a qualquer encaminhamento. Tudo isso coroado com saboroso modo de conversar sertanejo, que deixa logo à vontade o mais ressabiado dos interlocutores.  Assim, ele adquiriu o hábito de colecionar tipos humanos e causos de todo gênero, o que realimenta sua magia nas relações humanas.
            Seria, portanto, inevitável que tanto cabedal o lançasse nos braços acolhedores do Centro de Memória da Medicina, do qual logo se tornou um dos docentes e depois eficaz coordenador. Seu sucesso foi imediato quando, no curso de História da Medicina, relatou em aula – não como historiador, mas como protagonista e vítima - a invasão da Faculdade pelas forças da ditadura, no mesmo dia da invasão da Sorbonne, em 5 de maio de 1968. Disse que os invasores exigiram um pedido do diretor para a invasão e este o fez, mas transformou-se, ele mesmo, em vítima do próprio veneno, pois entrou em insuficiência respiratória pelo gás lacrimogêneo, que lhe chegou sob a porta da diretoria Foi levado ao 8º andar em busca de ar puro e ali ficou refém dos estudantes que ameaçaram jogá-lo pela janela. Enfim, foi resgatado por uma escada magirus e um poster do fato esteve por vários anos como troféu na entrada da Polícia Política (DOPS). Quando o Centro de Memória solicitou que viesse para seu acervo, a imagem foi irreversivelmente danificada.
            Ajax Pinto Ferreira ministrou outra aula memorável: Guevara e a medicina.  Todos ficamos admirados da profusão de dados apresentados, especialmente rara documentação sobre o assassinato do herói na Bolívia e algo totalmente desconhecido, que é sua fase de pesquisador científico no México. O Centro de Memória convidou o desenhista Alfred Kristus para figurar Ajax e Che, como velhos companheiros, e este encontro imaginário hoje é atração em nosso acervo.
            Em 1991, a professora Ceres Pinheiro defendeu tese na Universidade de Campiras intitulada DE ESTUDANTE DE MEDICINA A MÉDICO DO INTERIOR, em que são estudados 22 médicos que foram clinicar isoladamente em cidades do interior, sem a ajuda local de colegas e sem ter feito residência médica. Essa tese alcançou enorme repercussão, fazendo do ensino médico da UFMG, de 1975 a 1985, referência definitiva em pedagogia do ensino superior. A tese foi reprografada centenas de vezes, mas infelizmente não foi transformada em livro.
            Estamos preparando um estudo em que tais dados são aproveitados junto a estudos anteriores sobre a equipe mínima de três médicos, concebida, em 1968,  para alta resolubilidade em cidades que comportem mais de um médico. Também será incluída a experiência de médicos versáteis que clinicaram ao lado de colegas, mas sem atuarem em equipe, como é o caso de Ajax Pinto Ferreira. E também a experiência de médicos mais antigos que heroicamente enfrentaram o interior em variadas condições, mais que adversas. Alguns deles deixaram livros de memória, a exemplo de Pedro Nava, Manuel Campanário, Nelson Senise, Pedro Pesutti e Adami Vilela. O professor Ajax, que já provou que é bom escritor, não deixará de escrever o seu.
            A presença de um médico com o perfil de Ajax Pinto Ferreira no corpo docente de uma universidade da importância e da projeção da UFMG é estratégica para que se processe adequação do médico de vocação versátil à rápida evolução da tecnologia diagnóstica e  terapêutica.  Em discordância do que alguns apressadamente pensam,  o professor Ajax advoga o uso seletivo de novidades tecnológicas não para reforçar a especialização e a subespecialização. E sim para, inteligentemente, instrumentalizar, dar maior agilidade e abrir horizontes aos médicos que, como profissionais gerais e completos, insistem na integralidade da pessoa humana e na humanização do atendimento a suas necessidades de saúde.

O autor é professor titular de Clínica Médica  e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais