João Amílcar Salgado

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018


NOS 70 ANOS DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS,  COMO ESTÁ O DIREITO À SAÚDE?

João Amílcar Salgado


Tenho aqui comigo um livro preciosíssimo. É o TESOURO DOS POBRES, escrito em cerca de 1270 por Pedro Juliano Rabelo, cognominado Pedro Hispano e que chegou a papa como João 21. Era português, médico, alquimista e filósofo. Foi o único médico mencionado por Dante na Divina Comédia. Este sábio extraordinário julgava que a medicina de seu tempo já dispunha de recursos consideráveis, mas que eram disponíveis apenas para os ricos. Ele então escreve o Tesouro para que fossem acessíveis aos pobres. 500 anos depois, vários pensadores notáveis, chamados Iluministas, verificaram que a medicina tinha conquistado grande avanço com a anatomia, a fisiologia e a patologia e concluíram que qualquer ser humano tinha o direito de usufruir de tal progresso. Enquanto o Iluminismo francês era contrário aos médicos, o Iluminismo escocês foi construído pelos médicos. Essa diferença iria repercutir no século 20, quando os escandinavos, os britânicos e os canadenses construíram modelares sistemas estatais de saúde.
            A efetivação de mudanças iluministas na saúde encontrou duplo obstáculo religioso e militar. O atendimento de saúde estava limitado quer pela prática da caridade, quer pelo interesse militar, sendo que este se fez hegemônico com os militarismos napoleônico, prussiano e britânico do século 19. Em 1848 restaura-se a proposta iluminista simbolizada na frase do polonês Rudolf Virchow: A MEDICINA É UMA CIÊNCIA SOCIAL E A POLÍTICA NÃO É OUTRA COISA DO QUE MEDICINA EM LARGA ESCALA. A autoridade de Virchow advém do fato de que ele é o imortal cientista iniciador de nova era da ciência médica, a patologia celular.
            No final do século 19, os EUA elaboram modelos pragmáticos capazes de proporcionar o progresso médico acima e à frente das divergências europeias - a partir da Faculdade de Medicina de Johns Hopkins, sob a liderança de um clínico canadense William Osler e um cirurgião novaiorquino William Halsted.  Colocaram a América na vanguarda mundial, quando substituíram os antigos hospitais adaptados ao ensino pelo hospital universitário, estritamente projetado para o ensino, além de formular novo ensino médico. Infelizmente cometeram o erro de separar o ensino médico do ensino do que chamaram equivocadamente de Saúde Pública. Para isso criaram a Escola de Saúde Publica Johns Hopkins, separada da Faculdade médica.
Esta separação foi exportada pela Fundação Rockefeller ao Brasil e outros países. Aqui, como resultado, os sanitaristas brasileiros, por serem formados de acordo com tal modelo, só poderiam fracassar, ao tentar implantar um sistema único de saúde (SUS), que fosse coerente com os modelos escandinavo, britânico e canadense.  Curiosamente o Canadá tão próximo dos EUA adaptou o modelo britânico a suas peculiaridades, enquanto o Brasil, tão distante em vários aspectos, pretendeu copiar não as várias virtudes da medicina ianque, mas precisamente seus piores defeitos.
            Foi necessário que se elegesse o primeiro presidente negro dos EUA, Barak Obama, para que se aprovasse tímida reforma da saúde naquele país, em crise crescente desde 1970 - sendo o objetivo de seu partido, a médio prazo, adaptar o sistema canadense à complexa realidade estadunidense. Os parâmetros de Obama foram exatamente a Declaração dos Direitos Humanos aplicados à saúde. Esta Declaração foi estabelecida em 1948 pela ONU, de acordo com as referidas propostas de João 21, do século 13, e dos Iluministas, do século 18. Como sucessor de Obama, surge a figura sinistra do Trump, que defende exatamente o oposto, ou seja, a medicina tem de servir ao lucro e não à saúde.       

O autor é professor titular de Clínica Médica da UFMG e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais

terça-feira, 4 de dezembro de 2018


O PECADO DE MANIPULAR O GENOMA HUMANO – QUE NEPOMUCENO TEM A VER COM ISSO?
João Amílcar Salgado

Em 28-11-18 foi comunicado fato (a ser comprovado) destinado a ser passo revolucionário na História da Medicina. O pesquisador chinês He Jiankui anunciou duas bebês (Lulu e Nana), cujo genoma foi modificado por ele. A façanha foi vista como verdadeira ruptura na criação do homem e como impensável possibilidade de controlar a evolução das espécies. A tecnologia consiste na precisa manipulação do DNA da célula germinativa, por meio de nucleases programáveis (sistema CRISPR/Cas), capaz de corrigir ou introduzir mutações, trazendo a esperança de curas de doenças ou então o temor de inimagináveis maldades. O filho da nepomucenense Mariana Veiga, João Batista Veiga Sales, brilha na história dessa tecnologia. Nos EUA, ele colaborou com o asturiano Severo Ochoa, que, com Arthur Kornberg, recebeu o prêmio Nobel em Medicina de 1959, pela descoberta da síntese do DNA.
Em dezembro de 1969, o professor Aparício Silva de Assis realizou o primeiro transplante de órgãos, no caso o rim, em Minas, sendo o segundo do Brasil. Depois, o cirurgião me pediu para ser o co-orientador da tese, também pioneira, de meu fraternal amigo e ex-colega de república Francisco Ozeias de Carvalho, sobre a avaliação dos transplantes até então realizados. Os elogios que o mestrando recebeu foram tantos que o Aparício propôs um livro sobre ética dos transplantes e me pediu uma introdução histórica, a partir da ética da transfusão de sangue.
O Aparício vinha conversando comigo sobre isso, principalmente a propósito da publicação do Simpósio Ciba intitulado ETHICS IN MEDICAL PROGRESS: WITH SPECIAL REFERENCE TO TRANSPLANTATION, de 1966.  Ele convidou co-autores e a alguns deles assustou a abrangência corajosa do livro, com tópicos melindrosos: por exemplo, a possibilidade do comércio de órgãos, a interface com a religião ou o conflito entre especialistas. Daí que a obra ficou emperrada, mas, se fosse publicada, teria sido pioneira, mesmo fora do país. Minas Gerais, aliás, sempre teve responsabilidade histórica no trato da ética, desde a tese  ENSAIO SOBRE O ESTUDO DA VIDA,  defendida com brilho na Faculdade de Medicina de Paris, em 1837, pelo médico mulato mineiro Camilo Maria Ferreira Armond, mais conhecido como Conde de Prados. Foi um texto elaborado em momento crucial de guinada doutrinária da medicina e hoje pode ser lido em português, na tradução feita por meu distinto ex-aluno e abnegado historiador da medicina barbacenense, Paulo Maia Lopes. 
O abortamento daquele livro nos poupou de sermos transformados em bioeticistas, uma especialização que denunciei depois como espúria. Minha denúncia ocorreu depois de minha participação no Comitê de Ética da Pesquisa da UFMG e deriva das seguintes perguntas, que flagram o farisaísmo inerente a tais especialistas. Como explicar que aos hospitais, principalmente aos universitários, seja exigido rigoroso controle ético da pesquisa em sujeitos humanos, sem que igual exigência seja feita para os aspectos éticos do ensino e da atenção à saúde?  E por que o conselho nacional que trata da atenção à saúde deixa de cuidar da ética desta atenção para cuidar da ética da pesquisa? Por que o conselho nacional que trata da pesquisa não cuida da ética da pesquisa? Por que o conselho nacional que trata da educação não cuida da ética da educação? Por que as convenções sobre bioética são financiadas por corporações privadas, envolvidas no gigantesco lucro potencial da terapia genética?
O tumulto internacional causado por He Jiankui tem muito a ver com tais perguntas.