AUTONOMIA DO MÉDICO
João Amílcar Salgado
EM
1975 publiquei um artigo, na Revista da Associação Médica de Minas, sobre O
CORPO MÉDICO DO HOSPITAL. Este texto foi o primeiro ou dos primeiros sobre
o tema no país e foi amplamente divulgado, com a citação da autoria ou sem ela.
A importância dele estava no clareamento das dúvidas sobre a autonomia
administrativa do corpo clínico, capaz de se governar por si mesmo, mas o
principal interesse era ligado, nesta época, ao crescente assalariamento do
médico. Em 1976 fui um dos autores do regulamento do Hospital das Clínicas da
UFMG, no qual ficou delineado o corpo clínico do hospital universitário, até
então mero somatório dos corpos-docentes das antigas cátedras. Em 1986
compareci ao CREMESP para expor sobre a ética da pesquisa nos hospitais. No
debate que se seguiu, respondi ao posicionamento de outro expositor, o
professor Mário Rigatto. Ele discordou de minha afirmação de que os médicos,
principalmente aqueles considerados pesquisadores científicos, mantêm com a
indústria farmacêutica uma relação secular de promiscuidade. Acentuei que esta
relação é quase sempre recheada de infrações éticas, principalmente a propina.
Ele disse que minhas palavras foram muito fortes e que as infrações referidas
por mim “não passavam de pecados veniais, além do mais já incorporados à
tradição da classe”.
Antes,
em 1982, eu, como estudioso dos sistemas públicos de saúde, principalmente britânico,
escandinavo e canadense, fui convidado a participar de histórica reunião na
OPAS, em Brasília. Nela foi feito o esboço de nosso futuro sistema público
universal de saúde. Nas linhas gerais que traçamos, não constava nenhum sistema
complementar ou suplementar de saúde. Este foi lamentavelmente introduzido na Constituição,
após negociações com constituintes representantes de interesses privados. Mais
recentemente, declarei, numa palestra, que o uso da expressão BBB, para
representar as bancadas parlamentares do boi, da bíblia
e da bala, carecia de ser complementada com mais duas letras, e
e s, ou seja, as bancadas da educação
e da saúde, ambas privadas, sendo que saúde inclui os interesses
comerciais de serviços, equipamentos, medicamentos, venenos agrícolas e
alimentos. Enquanto a educação prossegue semi-camuflada, a saúde sofreu um strip-tease
acarretado pela pandemia. Entre as revelações mais escandalosas ora
escancaradas está a alegação distorcida da autonomia do médico, para acobertar
atrocidades e mortes, - e tudo isso com o vergonhoso respaldo do Conselho Federal
de Medicina.