João Amílcar Salgado

terça-feira, 10 de setembro de 2024

 

PEDIATRAS INSEGUROS E ESCASSOS

João Amílcar Salgado

Um colega e grande amigo comentou meu texto sobre as eleições no CFM, dizendo que, embora enriquecedor, é, contudo, um reducionismo temerário dividir a categoria médica entre “negacionistas dominantes” e “uma minoria fiel à ciência “. Pode ser que outros tenham chegado ao mesmo veredicto. Uma pediatra brilhante e incansável, minha ex-aluna, por sua vez, confirmou meu depoimento, pormenorizando exemplos dramáticos da crise de diplomados inseguros e escassez pediátrica. Diante destas e outras manifestações, reitero aqui meus principais textos sobre o tema.

 

DESPEDIATRIZAÇÃO E REPEDIATRIZAÇÃO

Homem com óculos de grau

Descrição gerada automaticamenteLEÃO

               Ênnio Leão e eu somos considerados autores da inovação pediátrica do ensino da medicina no Brasil, ocorrida em 1975, na UFMG, que se refletiu internacionalmente. Os três maiores pedagogos médicos de então, Juan Cesar Garcia, da OPAS, Vic Neufeld, da Universidade de McMaster, e Henry Walton, da Universidade de Edimburgo, reconheceram, com entusiasmo, sua originalidade e sua importância. Os estudos que levaram a isso, de 1971 a 1974, foram possíveis graças ao estímulo corajoso do reitor, médico e cientista Marcelo Vasconcelos Coelho, em plena ditadura vigente no país. A alta carga horária pediátrica e as demais inovações resultaram da análise de nossa pirâmide demográfica e de outros elementos da realidade de saúde.  Trinta anos depois de tal experiencia, houve quem alegasse que a pirâmide demográfica estava sofrendo mudança e que chegaria ao ponto de ser necessária a redução do relevo da pediatria. Respondemos com dois argumentos: 1) a modificação da pirâmide não seria definitiva porque haveria, cedo ou tarde, necessidade econômica de volta à adequada natalidade; 2) o lado pedagógico da “pediatrização” proposta traduz aspectos mais profundos da questão.

 De fato, quatro aforismos formulados durante nossos estudos resumem a pedagogia do ensino pediátrico:

1)    Na realidade de saúde, o médico capaz de bom atendimento pediátrico atende bem e até melhor o adulto; enquanto o médico capaz de bom atendimento a adultos é inseguro no atendimento pediátrico - e tende a evitá-lo.

2)    O ensino ampliado da clínica pediátrica, na graduação, não forma o pediatra, mas prepara melhor este especialista e prepara melhor o clínico de adultos, inclusive dando a este a segurança para oferecer atenção completa a todas as faixas populacionais.

3)    Na história do ensino médico, houve a distorção de se ensinar semiologia exclusivamente por meio do exame de adultos e o êxito em sua correção, efetivada na UFMG, evidencia claramente o erro do passado.

4)    O aforismo “a doença não tira férias” levou à adoção do calendário contínuo curricular e atencional, de evidente benefício às crianças.

Diante do atual colapso da atenção pediátrica no Brasil, nos parece oportuno sugerir medidas que atenuem ou eliminem tão lamentável consequência do criminoso descaso para com a saúde e com outras áreas de nossa realidade social.

Propomos que os participantes da citada experiencia e demais docentes sejam reconvocados para uma mobilização nacional que alcance todos os cursos de medicina e todas as equipes de atenção primária e secundária. Os MINISTÉRIOS DA SAÚDE E DA EDUCAÇÃO ofereceriam bolsas e demais recursos para o treinamento da atenção pediátrica. O programa MAIS MÉDICOS seria adaptado para funcionar como INTERNATO RURAL de todas as faculdades próximas e opcionalmente das distantes. As UPAS seriam adaptadas para incluir o treinamento pediátrico ambulatorial, com a respectiva remuneração adicional de treinadores e treinandos.  A descentralização da atenção primária e secundária exige a diminuição da insegurança dos profissionais. A insegurança para clinicar, enfraquece quer o peso da atração salarial, quer o da promessa de carreira.

Outra verificação dos levantamentos prévios foi a predominância do atendimento de adultos em detrimento das crianças nos serviços de urgência-emergência. Na experiencia citada, concomitante à inovação curricular realizada, o já existente posto de reidratação infantil para gastroenterite foi adaptado ao atendimento geral de urgência-emergência pediátrica, que levou à ampliação do debate sobre o atendimento contínuo em fins de semana, feriados e férias escolares. A tradição era (e continua sendo) que os hospitais de ensino entrem em recesso nessas ocasiões. E não é que até mesmo no auge da findante pandemia gripal, os postos de vacinação adotaram folgas semanais e outros recessos? Urge reiterar o atendimento contínuo no SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. Tal é nossa esperança na retomada do projeto constitucional da atenção à saúde, segundo o aforismo por sinal surgido de nossa inovação: a saúde é direito de todos e dever do Estado. 

O PEDIATRA-ANESTESISTA NA EQUIPE MÍNIMA PARA PEQUENAS CIDADES

Em 1967 propus, ao lado de Cid Veloso, a equipe mínima de três médicos, capaz de clinicar em pequenas cidades para resolver mais de 90% dos problemas de saúde - composta de 1) um cirurgião-obstetra-traumatologista, 2) um pediatra anestesista e 3) um clínico geral. A proposta obteve elogiosa acolhida, inclusive logo recebemos a grata notícia de que tal equipe já funcionava espontaneamente em mais de um lugar. Na cidade de Cruzília tal equipe já funcionava ali há dez anos, composta de José Orígenes Penha, José Maria Nunes Maciel e José Manuel Nunes Maciel. Também na cidade de Campanha já funcionava a equipe composta por Zoroastro Oliveira, Sérgio Almeida de Oliveira e Cláudio Almeida de Oliveira e em Nepomuceno a de Décio Lourenção, Rubem Ribeiro e Maurício Sarquis. A partir daí, surgiram a equipe de Divinópolis, composta por Alair Rodrigues de Araújo, Afrânio Ferreira e Antenor Melo, a da cidade de Mineiros, em Goiás, com Luiz Antonio Luciano, João Paniago Vilela e Clodomiro Anaya Rojas, a da cidade de Luz com Eolo Torres, Aristides Teles e Mário Klébis e a de Coronel Fabriciano com José Maria Moraes, Hyde Anacleto e Maurício Anacleto sendo que em Camanducaia foi esboçada, mas não concretizada.

Locais em que também houve tentativa de organizar miniequipes foram  Varginha, Barreiras, Parintins, Porto Nacional e hospitais das hidrelétricas de Três Marias, Paulo Afonso e Itaipu. É de justiça lembrar pelo menos quatro trios precursores da proposta, dois nos EUA e dois no Brasil:: William, James e CharLes Mayo (Rochester), Osler, Halsted.  Em 1971, conjuntamente com a formalização da residência médica, tentamos inaugurar a dupla residência em pediatria e anestesia na UFMG, contra a qual se opôs a corporação dos anestesistas. Para enfrentar os desafios de hoje, é possível retomar tudo isso.

 

 

AS ELEIÇÕES NO CFM E A TRIFURCAÇÃO CORPORATIVA

 


Diagrama

Descrição gerada automaticamente

 

Tabela

Descrição gerada automaticamente

 

Diagrama

Descrição gerada automaticamente

           


             Na década de 50 do século 20 foi efetivada a separação das corporações profissionais brasileiras em associações, conselhos e sindicatos.  A única corporação que continuou atuando de forma unificada foi a Ordem dos Advogados e se atribui a este fato o prestígio político e moral que a OAB ostenta conservar e que as demais perderam. Fiz minuciosa pesquisa sobre as razões pelas quais a corporação médica tão facilmente abriu mão do prestígio assegurado, justamente quando governava o país um médico, JK, e outro médico, Clóvis Salgado, era seu Ministro da Educação. Ambos sofriam feroz oposição da UDN, partido da quase totalidade dos médicos – situação análoga à polarização atual, entre negacionistas dominantes e a relativa minoria de fiéis à ciência. JK chegou a ser expulso da Associação Médica de MG.

A trifurcação corporativa em SINDICATO, que cuida dos direitos, em CONSELHO, que cuida dos deveres, e em ASSOCIAÇÃO, que cuida das demais prerrogativas, decorre diretamente da ganância crescente da medicina de consumo, causa de danos irreparáveis, quer ao interesse dos próprios médicos, quer ao das comunidades a que governo e profissionais devem servir.

Como mostrei em texto anterior, o projeto de Tancredo Neves para a saúde e a educação foi substituído, sob Sarnei, pelo favorecimento privado. Isso causou imediata avalanche de faculdades de fim-de-semana, a cada esquina e ainda em grotões e  países vizinhos - aureamente financiadas por famílias ávidas de filhos-doutores. Os médicos assim produzidos só poderiam ser clinicamente inseguros, receitadores pelo Google. Compreensivelmente optaram por escapar da insegurança pela fresta do rápido enriquecimento financeiro, alcançado através de criativos artifícios. Surgiu então a paradoxal junção entre o baixo-clero clínico, simbolizado na Doutora Cloroquina, e o alto-clero financeiro, exemplificado no quarto homem mais rico do país.

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

 




QUEIMADA TRÁGICA

João Amílcar Salgado

Em setembro de 2024 estamos sofrendo com seca e queimadas trágicas. Isso me faz lembrar meu inesquecível e inteligentíssimo amigo Dedé Lourençoni, esposo de minha prima Maria Salgado Lourençoni. Ele planejou comigo uma viagem ao Rio Grande do Sul para documentarmos seus parentes de lá. Desanimou de me esperar e foi sozinho. Soube que os Lourençoni não se deslocariam de lá para a Vila, se não fosse um incêndio numa plantação. O fogo cercou um grupo de colonos e os matou. O trauma foi tal que parte do grupo veio parar em Nepomuceno.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

 CARLOS AMÍLCAR SALGADO DISCUTE A QUESTÃO DAS FILAS.


EM 29/8/24 CARLOS AMÍLCAR FAZ APRESENTAÇÃO NA COMISSÃO TRIPARTITE PRESIDIDA PELA MINISTRA NÍSIA LIMA.
O OBJETIVO É A SOLUÇÃO DA CRISE DAS FILAS NO ATENDIMENTO DE SAÚDE.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

 


JOSÉ RÓIS

O esporte mata, exceto andar e dançar

          José Róis nasceu patafufo, portador de nascença da síndrome do cérebro inquieto. Formou-se em medicina na hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro.  Sua mente especial o fez diferente da maioria dos humanos, causando de muitos a admiração e de poucos a hostilidade. Ainda estudante de medicina, não teve dúvida de que seria cientista e foi iniciar-se no laboratório de Paulo da Silva Lacaz, enquanto absorvia o modo de pensar de Antônio da Silva Melo. Corretamente, deduziu que só poderia ser bom médico se dominasse cabalmente o conjunto maciço da fisiologia humana. Daí que, na faculdade, incomodou quanto docente topava e depois, na clínica, todo colega com quem trocava idéia. Todos esses negavam àquele peremptório debatedor tamanha cópia de conhecimentos sobre o funcionamento orgânico. E não possuindo conhecimento igual, atribuíam ao José Róis capacidade infinita para mentir. Carregou isso pela vida afora, até que descobriu o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, onde encontrou vários estudiosos que, somados, lhe configuraram um interlocutor à altura, ou seja, não o taxaram de mentiroso e, para sua grande alegria, o levaram a sério.

            De suas várias façanhas, minha preferida é a denuncia que sofreu por entrevista dada ao Diário da Tarde. Ele cuidou de vários pacientes diabéticos que antes tinham sido tratados pelos melhores clínicos. Logo de início modificava-lhes as restrições dietéticas.  Todos os tratamentos de diabete na época seguiam a orientação de Baeta Viana que era fanático por Elliott Proctor Joslin, homem de Harvard e Yale, pioneiro e herói mundial do auto-cuidado da diabete, desde 1898 até 1962. Os críticos posteriores de Joslin espalharam a piada de que, com o Joslin, o paciente não morria de diabete, mas de aterosclerose, que era acelerada pela dieta antidiabética do dogmático diabetólogo. Pois bem, muito antes disso, Joslin já era criticado em Minas pelo Róis. Os baetistas ficaram indignados com aquele “não-aluno” do Baeta, mas a coisa culminou quando um jornalista, filho de uma cliente de Róis, observando a melhora da mãe, julgou a doutrina deste digna de uma reportagem.  Para azar do Róis, o repórter era sensacionalista e não resistiu à tentação de estampar a seguinte manchete: DIABÉTICOS – AÇÚCAR NELES!

            Ora, o presidente do Conselho Regional de Medicina era justamente o professor Oromar Moreira, fanático ao mesmo tempo por Viana e por Joslin. Abriu incontinente o processo contra o Róis. Este recebeu várias correspondências assinadas por Moreira, pedindo que se defendesse por escrito. Róis sempre respondia que preferia defender-se em plenário. Passaram-se meses e o Conselho acabou concordando em ouvi-lo em plenário, tendo o cuidado de convocar dois endocrinologistas ad-hoc,  para que a argüição fosse arrasadora. De seu lado, Róis estava indo para o julgamento apenas com dois livros, o tratado de Best & Taylor de fisiologia e o tratado de Goodman & Gilman de farmacologia. Em meio ao trajeto, aproxima-se de uma banca de jornais, onde ao acaso encontra o último número da revista Seleções. Para seu prazer, lê: DIETA MAIS LIBERAL PARA DIABETE. Quase sorridente, Rois adquire a revista e parte para enfrentar o tribunal.

            O presidente do Conselho mostra-lhe o jornal e pergunta se ele confirma ser autor daquela entrevista. Róis confirma ser o entrevistado, mas diz que o título da mesma foi colocado depois da entrevista, sendo que os dizeres da manchete não correspondem ao conteúdo. Acrescenta que, se o Conselho quiser processar o jornalista ou o jornal pela manchete infeliz, ele apóia a ação. Desconcertados com esta posição e com a tranqüilidade mineiríssima do réu, os conselheiros lançam uma última cartada: pedem que exponha oralmente o conteúdo. Róis diz que ia falar longamente, mas resolvera à última hora apenas ler um resumo.  E passa a ler, como se fosse seu, o texto da revista Seleções. Lê alguns parágrafos e dá por finalizada sua exposição. Um endocrinologista pergunta, exaltado, se ele sabe quantos diabéticos morrerão em função de tal orientação?  Róis responde com outra pergunta: quantos seriam os leitores de minha entrevista?  - Que seja um, haverá crime!, disse, indignado o especialista.

Nosso herói então exibe a capa da revista e diz: diante do que ouvi e diante da multidão de leitores desta revista que está em minhas mãos, só aceito ser processado depois que os senhores abrirem processo contra os tradutores brasileiros e contra os editores da matriz nos EUA, e mais: desde já, delego minha defesa aos advogados do Reader´s Digest.

            Róis foi um pesquisador nato, sempre heterodoxo em relação  aos clichês estabelecidos. Escrevia bem e não tinha acesso às publicações convencionais. Exercitava seu cérebro inquieto com o xadrez e era adepto do esperanto. Admirava persistentemente o oftalmologista Zamenhof, que criou este idioma maravilhosamente simples, para veículo de paz e educação. Por meio dele, José Róis expunha a um público limitadíssimo suas ideias sempre originais, veiculadas em revista  médica esperantista.  Seu forte era o pensamento lógico, mas tudo indica que, se tivesse tido acesso a laboratórios, teria tido sucesso em colocar seus dons e seu conhecimento biológico a serviço de significativa produção científica. Quantas pessoas desse tipo o Brasil desperdiça em seu imenso território?

            Conheci o Róis tardiamente, quando meu amigo Gilberto Vasconcelos me telefonou de Juiz de Fora e perguntou se eu lera um livro sensacional intitulado O ESPORTE MATA e quis saber se eu o receberia junto com o autor do livro. Mais tarde Róis, o autor, confessaria que sua chegada ao Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais foi grata surpresa, pois o recebemos de braços abertos, culminando com o convite para uma aula de mesmo título no curso de história da medicina. Ele supunha hostilidade da medicina acadêmica e nada disso aconteceu. O livro não era novo, mas o Gilberto e eu o recolocamos em discussão pelo tablóide CAROS AMIGOS e pelo canal esportivo de televisão ESPN BRASIL.

Com isso Róis foi entrevistado pelo Jô Soares, quando, no palco, caminhou com o humorista, para que demonstrasse como era mesmo caminhar sem correr.  Coincidiu que exatamente nesta ocasião morreu um jogador de futebol diante de todo o público brasileiro adepto do futebol, em cenas fortes flagradas pela televisão.  Em entrevista àquele canal eu disse que o alerta de Róis contrariava os interesses de milhões de dólares investidos na crescente indústria esportiva, mas, em compensação, a morte real desse jogador e de outros passaria a dar lucros aos fabricantes de desfibriladores e outros equipamentos de socorro. Ver https://www.youtube.com/watch?v=fUZDmtSwcc4                  

            Quase toda manhã, na esquina do Colégio Arnaldo, eu via o Róis, de mãos dadas com sua esposa, atravessar rumo ao Mercado Central. Ele e ela iam e voltavam a pé, sendo que lá, de pé junto ao balcão do Comercial Sabiá, faziam o desjejum, na base do café-com-leite e pão-com-manteiga – hábito dele de infância que cultivava aos 80 anos. À noite, o casal ia para a dança de salão.  Assim ele próprio seguia sua prescrição de que os únicos esportes sem risco são caminhar, sem correr, e dançar, desde que dança de salão.