João Amílcar Salgado

sexta-feira, 12 de abril de 2013


MARGARETE E A AMEAÇA COREANA
João Amílcar Salgado
            A morte de Margaret Thatcher trouxe as homenagens esperadas a um ex-governante britânico. Mas a mídia mundial, por ser tão abrangente, poderia aproveitar a oportunidade para dizer aos jovens de hoje que toda a crise atual, vivida pelo hemisfério norte ocidental, está enraizada em Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Será que isso não é dito em respeito a uma morta?
         Estive na Inglaterra antes do governo Thatcher e ali conversei com um sábio professor de Oxford, Sidney Truelove, sobre as perspectivas do serviço de saúde britânico. Ele era respeitadíssimo especialista e também estudioso das tendências econômicas e políticas ligadas à medicina.  Fiquei impressionado quando me disse que o horizonte econômico da Europa era sombrio. Segundo ele, o mercado comum europeu não ia dar certo. Assim só havia duas saídas. A primeira era voltar ao capitalismo selvagem, com anulação das conquistas do bem-estar social, principalmente na saúde. A segunda era inventar uma guerra.
         Dois anos depois surge a Margarete que escolheu a primeira saída.  E, para ter mais sucesso, fez dobradinha com Ronald Reagan, tão selvagem como ela. Os dois se consideravam os donos do mundo. Sábios, como Gay Talese e outros, não tiveram dúvidas em apontar esses dois como responsáveis iniciais pelo craque imobiliário nos EUA e a estagnação na Europa. Elogios à Margarete, em sua morte, não servem só para homenageá-la, servem muito mais para esconder  seus cúmplices ainda vivos.
         E a Margarete morreu no momento em que toma corpo a segunda saída para a crise agigantada por ela. Uma guerra inventada agora iria dinamizar as economias europeia e americana -  e  todos esqueceriam os crimes de  Thatcher e Reagan.

quinta-feira, 11 de abril de 2013


AFONSO SILVIANO BRANDÃO – VARÃO PLUTÁRQUICO DE MINAS E DA MEDICINA MINEIRA
João Amílcar Salgado
Acaba de ser editado o livro NA VIVÊNCIA  DO MEU TEMPO, escrito por Afonso Silviano Brandão. A primeira edição é de 1977 e foi distribuída  apenas entre familiares e amigos. Tive o privilégio de receber um  exemplar do autor e outro agora do filho, o proeminente patologista Hugo Silviano Brandão. Várias razões me fazem interessado nessa autobiografia, indissociável de várias histórias: a dos Buenos, entre os fundadores  do sul de Minas; a do clube América, vertente esportiva da faculdade federal de medicina; a da faculdade “Católica”, de que sou personagem, e a das entidades médicas, de que sou historiador e crítico.
Estudioso do sul de Minas, sei que os Buenos bandeirantes deixaram descendentes nas Lavras do Funil, região do meu berço, e nas lavras de Ouro Fino, berço dos Bueno Brandão. Pedro Vidigal escreveu que os Bueno vieram também para o Calambau e ai mudaram o nome para Martins da Costa. Eu disse-lhe que seu livro tinha centenas de páginas mas não dizia por que trocaram o nome. “Não disse, porque não sei”, respondeu. E eu: “Eu sei: é porque não era prudente conservar o sobrenome Bueno depois do Capão da Traição. Poucos não o mudaram”.  E o genealogista exclamou: “Então foi assim?, sêo valente!!!...”
Sobre o América, poucos sabem que os antigos campo e quadras próximos à faculdade federal eram área do parque municipal, cedida a esta escola, como campus esportivo, pelo sulmineiro e prefeito Otacílio Negrão de Lima. Virtualmente, o América era o time da faculdade, daí tantos médicos entre seus fundadores, associados e craques, um deles Afonso, cotado a mais ilustre.  Daí nosso protesto inútil quando a área foi depois vendida indevidamente a um supermercado. Nossos argumentos foram ridicularizados (hoje seriam aplaudidos), porque propúnhamos que a área voltasse a ser parte do verde do parque.
Tenho grande carinho pela “Escola Católica” de medicina. Quando fiz exame vestibular ali, vários docentes perambulavam amistosamente pelas salas das provas e participaram, sem qualquer rispidez,  das arguições orais. Tenho vaga lembrança de que Afonso era um deles. As turmas diplomadas em 1960 pela “federal” e pela “católica”, de tão pequenas, somavam uma única turma na Belo Horizonte dos anos dourados.  Mais tarde,  tive atuação decisiva na efetivação do ensino ambulatorial, quando deste fui o mais veemente defensor.  Depois, mais uma vez fui decisivo na deliberação de que o hospital São José viesse a ser seu hospital universitário, tão sonhado. Enfim, participei ativamente na modernização curricular, inclusive a adoção do internato rural.
Quando a antiga Universidade Católica, nos trâmites para ser Pontifícia, abriu mão da faculdade de Ciências Médicas - logo ela que era chamada de “a católica”! - fiz dura crítica aos autores deste ato ignominioso.  E não tive dúvida em rotular o gesto de mesquinho, numa palestra em pleno auditório da instituição ofendida.  Coincide que,  no ano da reedição do livro de Brandão, a PUC  inicia novo curso médico, desta vez não-filantrópico e não-descartável, mas altamente rentável.
Como historiador, examino a origem, os acertos e os erros  de cada entidade integrante da corporação médica mineira, senso lato, e também da corporação brasileira. Estudo, em especial, o papel neste enredo desempenhado por JK e Clóvis Salgado, dois médicos e políticos também presentes na saga da Faculdade de Ciências Médicas. Tais dados são encontrados em outros de meus textos.
Por todo o sobredito é possível avaliar a grata satisfação com que recebi a segunda edição de NA VIVÊNCIA DO MEU TEMPO, título de livro capaz de causar inveja em qualquer escritor. Seus leitores descobrirão que nenhuma personalidade da história brasileira contou com as circunstancias singulares, de nascimento, infância e juventude, que convergem na biografia de Afonso Silviano Brandão.  E a singularidade persiste e cresce quando se completa com  a vertente reta e realizadora do restante de sua existência.
 Eis, enfim, um livro que nos chega como límpida gema de Minas. Sim, nada mais substancial poderia ser ofertado à  história da medicina mineira, exatamente pelo raro conteúdo de nobreza, de honradez e de sul-mineiridade!

quinta-feira, 4 de abril de 2013


ATAULPHO DA COSTA RIBEIRO
Desassombrado nietszchiano
João Amílcar Salgado
         Ataulpho da Costa Ribeiro diplomou-se pela atual Universidade Federal de Minas Gerais, em 1949, e veio a ser um dos mais cultos psiquiatras brasileiros. Conheci-o quando, no Centro de Memória da Medicina, o Ciro Gomide Loures me chegou com um duo cervantino: o cartunista e historiador Fernando Pieruccetti, alto e magro, e o médico e escritor Ataulpho, de estatura menor e bigodudo.  Os três queriam discutir os achados minuciosos de Fernando sobre o primeiro curso médico brasileiro, ministrado em Vila Rica, desde 1801. Nas apresentações, relacionei o sobrenome Costa Ribeiro com a cidade de origem, Lavras, e imediatamente reconheci no portador os traços dos Ribeiros nepomucenenses, quer no físico, quer no comportamento. Diante disso ele me passou sua árvore genealógica, pelo que hoje o chamo de primo.
            Naquele dia, Ataulpho sugeriu que convidássemos Bi Moreira para ministrar aula no curso de História da Medicina, o que aconteceu no semestre seguinte.  Emocionado, Moreira relatou sua luta para organizar o museu que hoje traz seu nome e que, em boa hora, passou a preservar a memória da região de Lavras. Na aula, entre outras preciosidades, revelou-nos que Paulo Meniccuci, patriarca da medicina lavrense, se consagrou como cirurgião, quando, no início do século 20, após examinar um homem esfaqueado, teve a audácia (que, na época, quase nenhum cirurgião teria) de  fazer-lhe uma sutura do músculo cardíaco, salvando aquela vida.
            Daí passei a admirar a boa prosa do erudito Ataulpho Costa Ribeiro, seus deliciosos comentários críticos e seu lado de poeta sensível e de filósofo cético, bem assim suas predileções na música, iguais às minhas. Conheci de sua competência clínica, no exercício da qual joga com habilidade toda sua abrangente cultura. Tudo me fazia pensar dele um recluso, quando avisto uma pessoa muito parecida com ele, a passar por mim, todo desenvolto, ao pedal de uma bicicleta, lá no alto do Miguelão.  Não podia ser, mas era ele mesmo. Sim, ele sim, ciclista ou andarilho, era parte daquela paisagem.
            Descobrimos que ambos éramos fãs de Agripa Vasconcelos.  Revelou-me que conviveu certo tempo com o médico e escritor, ocasião em que recebeu dele, datado de dezembro de 1948, o manuscrito exclusivo do soneto ADOLESCENTE:  No citoplasma do ovo, ao gene, obscura, / Na química fatal do cromosoma, / Foste gerada com a dourada coma / Ao calor da genética mais pura! // Produto de um calor que ainda perdura, / Num salto mendeliano, agora assoma / Teu vulto esbelto que é o resumo, a soma / De protoplasmas que o calor mistura. // Na tua biologia recessiva, /Não teu pai – tua mãe é que está viva, / O gene dela é que prevaleceu // Tu que vens de uma antese clara e bela, / Já te cobri de beijos dados nela / E beijo em ti aquela que morreu.
            Em dezembro de 2005, o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais concedeu pela primeira vez o Prêmio Pedro Salles de História da Medicina. Sendo premiação inaugural, foram premiados in memoriam Agripa Vasconcelos, Otávio Nelson de Sena e Fernando Pieruccetti.  Por sua fraterna ligação a Pieruccetti, Ataulpho foi convidado a recebê-lo em nome de seu grande amigo – e assim também homenageado. Foi quando lembrou ter Aníbal Matos cognominado Pieruccetti de o nosso Aleijadinho do crayon.
            Ataulpho Ribeiro, lendo Nietszche no original, passou a ser respeitado estudioso da vida e da obra do grande filósofo e poeta alemão. Afinal se transformou em autoridade naquilo que lhe cabia como psiquiatra, que é a demência de que Nietszche foi vítima no fim da vida. No centenário de sua morte compareceu ao túmulo e leu em lágrimas um poema que lhe escreveu em alemão. Convidado pelo Centro de Memória da Medicina a ministrar conferência sobre o tema, causou forte emoção nos estudantes do Curso de História da Medicina, quando exibiu o filme em que aparece o originalíssimo pensador em seu dramático internamento hospitalar.
            Estamos preparando a publicação do livro A PSICOSE DE NIETSZCHE, que é o coroamento dos textos escritos por Ribeiro sobre Nietzsche. Seus colegas do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais o aconselham a publicá-lo também no exterior, pois parece que nenhum estudo semelhante foi feito até o momento. Seus ensaios e poemas são densos e  nos induzem a inquietantes reflexões.  Na verdade trata-se de um pensador singular, capaz de arquitetar sedutora ponte entre os iluministas mais radicais e o pensamento nietszchiano mais revolucionário.
            Em Roeckendorf, na Alemanha, no dia 09-10-1993, Ataulpho Ribeiro rezou à beira do túmulo de Friedrich Nietszche a seguinte oração-poema: Tu foste poeta e pensador. Em tua vida introspectiva e solitária, a dor foi prematura e permanente. Aos quatro anos de idade, ao falecer teu pai, a existência já desvelava, aos teus atônitos olhos de criança, o seu verdadeiro rosto, as suas dissonâncias, as crueldades que a desesperam.  Desde então, a tua vida inteira, por poderosa e aguda percepção crítica da realidade, e por tua sempre frágil condição de saúde, foi uma grande odisséia de sofrimentos, resignação e desencantos. Filósofo lírico, pensador da existência , artista da palavra, dotado de excepcional pendor musical, deixaste, para a posteridade, enriquecendo sobremaneira a herança cultural comum, um legado espiritual marcado por original e impetuosa avalanche de idéias, todas elas girando em torno de grandes temas e desconcertando a bi-milenar tradição da filosofia ocidental.  Possuías uma alma nobre e solitária, meditativa, muito acima das contingências cotidianas da vida. A música e a palavra, como bem observava Thomas Mann, foram as tuas únicas vivências.  Falando de ti mesmo, dizias: “Os meus pensamentos tornaram-se os meus acontecimentos; o restante de minha vida nada é senão a crônica diária de uma doença.” Em verdade, a tua existência inteira foi um segundo “nascimento da tragédia”. Tua grandeza, como escultor do idioma, como poeta e pensador, como consciência crítica dos valores, como filósofo do niilismo e da cultura, como educador da liberdade, tuas antevisões proféticas, tuas profundas análises psicológicas, são ininterruptos diálogos interpelativos com a realidade, todos eles colocados em altíssimo nível de contestação cósmica. Foste, em tuas próprias palavras, “poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso”. Hoje, seis dias antes de teu aniversário, e após meio século de paciente expectativa, de atenta leitura de tuas obras, realizando um antigo anseio, venho ao teu túmulo e à tua aldeia natal para reverenciar a tua memória, para tributar ao teu nome a minha mais comovida homenagem.  Ao realizar esse gesto, de contrição e fervor, gostaria que ele o fosse consoante as tuas próprias aspirações e sensibilidade, consoante a transcendência do momento, a epifania desse instante, quando nehuma palavra é capaz de expressar, em toda a sua plenitude, as grandes emoções do espírito: “Oh! minh´alma, ... canta, não fales mais!”    
            Tendo dado o nome de Robespierre a seu filho (também médico e também brilhante), este jacobino transbordante de mineiridade mostra que em Minas se esconde, em nicho esplêndido, simbiontes de poesia e dialética. Quando discernidos sem preconceito e com justiça, terão em Ataulpho da Costa Ribeiro um exemplo digno de estudo sério, de controvérsia sadia e de admiração verdadeira.