João Amílcar Salgado

quarta-feira, 8 de julho de 2015

JOSÉ NIEVAS
João Amílcar Salgado

JOSÉ NIEVAS
Na Casa Rosada, mansão para recepções em Belo Horizonte, estava sendo brindado um casamento de família nepomucenense.  Já ao chegar, fui conquistado pelo som acolhedor do conjunto do Vinício Tiso. Entre os músicos me chamaram a atenção a flautista Taciana, doce filha do Vinício, que tão cedo nos deixou, e o violinista argentino José Nievas.
Nievas, apesar de gordo e idoso, irradiava juvenil entusiasmo nos acordes de um tango. Quando a execução fez pausa, quis conversar com ele, mas o tanguista estava mais interessado nas guloseimas ali distribuídas. Só após vê-lo bem alimentado, pude fazer-lhe a pergunta que atravessava minha garganta: Nievas, você já ouviu falar num tango chamado MILONGUITA?
Surpreendeu-se com o pedido, fez um olhar longínquo e a partir daí ignorou tudo ao redor.  Como que refugiado num nostálgico recanto de seu passado, passou a cantar  MILONGUITA. Fiquei paralisado de emoção pois, por longos anos, desejava ouvir a canção. Comprei todas as coleções de tango existentes no Brasil e na Argentina e nenhum disco ou fita a trazia. Sequer era mencionada nos textos históricos. Quando terminou, perguntei quem a cantava e ele sorrindo disse: la Praguayita e emendou: ela era linda!...
No final da década de 30 uma linda paraguaia apelidada de La Paraguayita fez sucesso na Argentina e percorreu várias cidades brasileiras, inclusive supostamente Lavras. O nepomucenense Eurico César Antunes de Almeida, se apaixonou pela artista e colocou em sua filha o nome de PRAGUAGITA. Nós a chamávamos de GIGITA, pois ela própria detestava o nome original. Veio a se casar com meu queridíssimo primo, Marcli Vilela, ele próprio de nome incomum. Logo em seguida o irmão do Eurico, José, se juntou a meu pai para fabricar a mais célebre cachaça da cidade. Eurico, José e João Salgado não tiveram dúvida em denominar a cachaça de MILONGUITA, associando o sucesso da bela cantora ao da deliciosa bebida. Na cortina que recobria a tela do cinema da Samina, havia uma propaganda redigida por meu pai: MILONGUITA – O APERITIVO QUE VALE UMA CANÇÃO.
Só depois de adulto eu quis ouvir aquele tango e não o conseguia, até encontrar o Nievas. Outro tanguista entranhado era Juscelino Kubitschek e nessa mesma época trouxe para tocar no Cassino da Pampulha a orquestra típica de Francisco Canaro, que chegou com a cantante Libertad Lamarque e o cantante José Nievas.  Segundo Miltonilo, fiel escudeiro de Juscelino, a temporada mesclou enorme sucesso a acontecimentos românticos.  Canaro e Libertad já estavam no saguão do Grande Hotel, na rua da Bahia, prontos para viajar, quando topam com o cantor completamente alheio à partida. Canaro o interpelou e Nievas respondeu que conhecera Maria da Silva uma linda morena e aqui ficaria. Teve com ela filhos mineiros, todos muito bem criados.
Francisco Canaro não teve outra saída a não ser substituir Nievas e conseguiu um substituto, de voz muito parecida. Assim, hoje pela internete é possível ouvir a orquestra com o substituto e ter uma idéia de como era o Nievas cantando sob o comando do notável uruguaio (vejam, por exemplo, www.youtube.com/watch?v=TgI0U3PIfhY).
Coincidentemente a Libertad Lamarque foi varias vezes substituída, em shows e até no cinema, pela Leonor Faria, mexicana de voz incrivelmente parecida com a dela. E a Leonor também passou a morar em Belo Horizonte, casando-se com o Miro (Valdomiro Constant), refinado violonista da radio Inconfidência. Fui médico do Miro a pedido de seu dedicado amigo, o goleiro Cafunga, que morava em frente à Faculdade de Medicina e era juiz do futebol dos universitários
Nievas foi aluno de canto de Eduardo Bonessi, professor também de Carlos Gardel. Em Belo Horizonte atuou junto aos maestros Castilho e Delê. Culminou sua carreira ao integrar o conjunto de cordas de Vinício Tiso, o musicista sulmineiro que democratizou o violino clássico, além de notável cover de Chaplin. Quando faleceu o Nievas, aos 99 anos, o Vinício estava inconsolável, associando a perda do dileto amigo à da filha inesquecível.
Ainda sobre a dita recepção, no final da festa, completei minha saudade, exigindo do Tiso e do Nievas executarem DESDE EL ALMA, sucesso de Canaro, que muito me marcou, pois foi a valsa de formatura de minha irmã Neusa, no Clube de Lavras  (www.youtube.com/watch?v=72aRCJHRt_o).


O autor é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais

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