João Amílcar Salgado

terça-feira, 28 de junho de 2016

HELENA GRECO

HONRA A LUMINOSA GALERIA DAS MULHERES DE MINAS

João Amílcar Salgado
           O primeiro dos Grecos que conheci foi o Armando Greco, da turma de médicos de 1944, da hoje Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Eu era estudante de medicina e o ouvi na Associação Médica, em debate sobre o abuso de antibióticos. A medicina estava em lua de mel com os antibióticos e os hormônios, resultantes da segunda guerra mundial. Pela primeira vez alguém me dizia dos perigos do abuso de medicamentos cada vez mais eficazes e principalmente do abuso induzido por propaganda. Ele passou a ser meu herói pela coragem em desafiar poderosos interesses. Mas fiquei amigo próximo foi de seu irmão José Bartolomeu Greco, da turma de 1937, que não gostava do nome Bartolomeu e exigia ser tratado de J. B. Greco. Alergologista pioneiro em Minas, era casado com sua prima Helena, diplomada em farmácia no mesmo ano de 1937, e, quando o filho Dirceu, da turma de 1969,  foi meu residente em clínica médica, os Grecos passaram a ser como gente de minha família.
            O prazer, com que JB percorria as estantes de sua biblioteca apontando livros, citando frases e me pedindo opinião a cada passo, me é inesquecível e me diz que ele reciprocamente me considerava um filho. Ou melhor, eu não lhe figurava um filho mas um irmão na admiração filial a Carlos Jiménez Diaz, o insuperável clínico madrileno. A foto deste, que encimava suas estantes, foi-me legada com imensa ternura. JB foi também meu parceiro em historiar o pombo-correio como elemento inaugural da telemedicina em Minas.  Já Dirceu veio a ser um dos frutos vitoriosos da iniciação científica ligada à inovação pedagógica, de repercussão internacional, vivida na medicina da UFMG, nos anos 70 e 80 do século 20. Culminou como astro internacional do aplaudido programa brasileiro contra a AIDS.
            Poucos sabem que Helena Greco participou dessa inovação. Quando Agostinho Patrus foi empossado presidente da Associação Médica mineira, teve a audaz iniciativa de revolucionar a Revista da agremiação. Dirceu Greco e Antonio Dilson Fernandes, com minha participação, em 1974, passaram a inserir ali artigos anticonsumistas do The Medical Letter  On Drugs And Therapeutics, editado nos EUA. Dirceu indicou para tradutora, sem ônus, sua mãe Helena, que, além de poliglota, era considerada imbatível, no país, no jogo de palavras-cruzadas em qualquer idioma.  Essa colaboração inestimável era coerente com a tradição dos Greco na trincheira anticonsumista  e também da ética na ciência, que inclui Armando, JB e Dirceu Greco. O sucesso das traduções de Helena Greco permitiu a Adelmar Cadar  expandir o alcance da iniciativa, quando utilizou a moderna gráfica do então INAMPS para levar a cada médico e a cada estudante de medicina o Boletim de Medicamentos & Terapêutica (até 1987), neste caso com tradutor remunerado.
Enquanto isso, Helena Greco se fez ativista contra a tortura ocorrida desde o golpe de 1964 e em favor dos desaparecidos políticos, bem como contra a opressão de qualquer natureza: dos menores, mulheres, negros, indígenas, estudantes, homoafetivos, sofredores mentais, encarcerados, moradores de rua, pessoas sem teto e sem terra e o povo palestino. Apoiou também a radiofonia e a tevê comunitárias. Foi fundadora do Partido dos Trabalhadores, em sua proposta inicial, ao lado de Sergio Buarque, Antônio Cândido, Paulo Freire, Leonardo Boff, Betinho (Herbert Sousa), Apolo Heringer, Carmem Lúcia Antunes e Ayres Britto.  Daí se tornou vereadora de 1982 a 92.  Por causa dessa militância, sofreu atentado a bomba, outras ameaças físicas e de prisão, grampeamento telefônico, agressões morais e processo judicial.
Acompanhei de perto, mas sob equânime neutralidade política, toda essa magnífica trajetória. De tal testemunho concluo que a estatura histórica desta incrível mulher ainda não foi devidamente percebida e, portanto, avaliada. Conservo entre minhas mais sensíveis lembranças a cena quando em sua casa me apresentou a visitantes ilustres, ali chegados de dentro e de fora do país. Abraçando-me entre ela e o esposo, recomendou-lhes ouvir meus “causos mineiros” e acrescentou que  ela e JB sempre disputavam  qual repertório gostariam de apreciar, se sobre politica mineira ou se sobre história da medicina. Aproveitei para dizer àqueles convivas que minha mais recente pesquisa histórica consistia em verificar o possível parentesco de Helena Greco, por sua ascendência materna, com nada menos que Anita Garibaldi. E, apontando o casal, declarei: as brasileiras Helena e Anita entregaram seus corações a dois “italianos”.


O autor é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais

sexta-feira, 10 de junho de 2016

HÉLIO GARCIA SE FOI - E QUE ISSO TEM A VER COM NEPOMUCENO?
João Amílcar Salgado
Hélio Garcia é personagem controversa na política brasileira. Mas, neste momento, devemos esquecer seu lado controverso e considerar que, tendo sido prefeito da Capital, deputado e governador do Estado, ele está obrigatoriamente na história de Nepomuceno. Digo isso não em homenagem a ele, mas a seu pai, o nepomucenense Júlio Garcia. Júlio foi grande amigo de meu pai e não saia de nossa farmácia. Ali foi um daqueles que confessaram ter feito de sua frequência à roda da farmácia verdadeiro curso universitário, onde adquiriu cultura e principalmente seleto conhecimento político. Foi um dos jovens que passaram a abraçar os ideais da Revolução de 30. Quando foi morar em Santo Antônio do Amparo, fez-se líder daquela comunidade e procurou aplicar ali tais ideais.
Outros pontos em comum da biografia de Hélio com Nepomuceno são os seguintes: A) Ele disputou o governo estadual com Pimenta da Veiga e essa foi uma disputa de dois filhos de nepomucenenses. B) Ele foi sucedido por Newton Cardoso, em 1987, e, no apoio que deu a este, influiu a deputada Maria Elvira Sales Ferreira, também filha de nepomucenense.  C) Durante seu governo estadual, iniciado em 1991, eu próprio fui representante do governo federal, através da UFMG, na Secretaria Estadual da Saúde, de onde várias propostas sobre saúde e educação, elaboradas em Minas, foram aproveitadas pelo governo central.

Pitoresco foi um episódio com o Dr. Décio Lourenção. Numa reunião política na Capital, um deputado ouviu dele que era parente do governador. O parlamentar duvidou preconceituosamente de tal informação, alegando desconhecer que Hélio tivesse primos italianos. O queridíssimo Dr. Décio ficou “picado” e me procurou para que eu documentasse o parentesco.  E esfregou o quadro anexo na cara do cético.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

CARLOS RIBEIRO DINIZ

João Amílcar Salgado
Nasceu em Luminárias, de pai de família trespontana e mãe de família nepomucenense.  Foi um dos três maiores discípulos do cientista Baeta Viana (ele, Beraldo e Veiga Sales) e quando faleceu era o maior bioquímico do Brasil. Sem ele a FAPEMIG não teria sido criada, nem a empresa BIOBRAS, esta a primeira a fabricar insulina no 3º mundo. Estava para escrever um livro sobre a genealogia de sua família e sobre o sul de Minas, junto com o escritor Antônio Cândido e comigo. No início, outro coautor seria o farmacologista José Ribeiro do Vale, seu parente.  Ligada a isso, a ideia de se criar a Unicamp foi dele. Ou melhor, ele formulou uma universidade nos moldes da Unicamp, que seria criada no sul de Minas. O golpe militar impediu que a ideia avançasse e os paulistas a aproveitaram para criar a Unicamp, inclusive com o apoio dele.
            Diniz influiu para que Caxambu abrigasse reuniões periódicas agradáveis de cientistas, de modo a se interfecundarem. Numa das primeiras, numa roda de cerveja, ele pegou um guardanapo e nele listou os sulmineiros atuantes em universidades e setores tecnológicos do país.  E disse, se fizéssemos a revoada deles para uma cidade como esta, teríamos a melhor universidade brasileira  e  equidistante de Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Chegou a falar com o reitor Aluizio Pimenta da UFMG que topou cria-la como campus sulmineiro desta, sendo Diniz o captador de recursos. Tendo sido concretizada em Campinas, a coisa não deixa de ser de certo modo sulmineira, pela proximidade e pela gente do sul de Minas que colonizou o noroeste paulista. Mas a tal revoada foi substituída, sendo esperado o afluxo, não de  mineiros ou paulistas, mas de cientistas de qualquer parte. O próprio Diniz sugeriu que eu fosse chamado a Campinas para dar sugestões sobre a transferência da faculdade de medicina do centro da cidade para o campus.
Também antes do golpe, em 1963, Carlos Ribeiro Diniz, Marcos dos Mares Guia,  Zigman Brener, Amílcar Martins, líderes do diretório acadêmico, um deles Henrique Santillo, e eu (recém-formado) nos reunimos para propor que, entre as chamadas reformas-de-base do governo João Goulart (educacional, tributária, eleitoral, agrária e urbana), fosse incluída a da indústria farmacêutica. Defendíamos a criação da Farmacobrás, espelhada na Petrobrás. Carlos Ribeiro Diniz argumentou que a escola bioquímica de Baeta Viana era a única a dominar de fato a enzimologia no hemisfério sul. E isso na terra do mamão e do abacaxi, fontes ultra-disponíveis dos dois mais potentes enzimas proteolíticos  vegetais. Daí que cumpria aos bioquímicos mineiros a missão de fabricar medicamentos para o povo brasileiro, a partir de tais privilégios. A concretização dessa ideia era mais plausível após a reeleição de  JK em 1965, mas, sob a ditadura, foi modificada e limitada à criação da Biobrás.
Convidei o Carlos Diniz para conhecer a paciente Berenice (a primeira diagnosticada com a doença de Chagas), numa internação desta, para revisão no Hospital das Clínicas. Entre vários assuntos ele me perguntou como andavam os estudos sobre a domiciliação do triatomíneo. Estava interessado em fazer estudo semelhante sobre o escorpião amarelo e aproveitou para lamentar a ocultação do nome completo do professor Osvaldo de Melo Campos como autor da descrição desta espécie.  São exemplos de como o pensamento original deste homem genial era incessante e quase sempre na contramão do saber estabelecido. Dias depois, após ouvir meu protesto contra a negação do premio Nobel a Carlos Chagas, ele me sugeriu. verificar sua suspeita de que o Instituto Karolinska fora financiado por um médico sueco, que havia ficado rico no sul de Minas. Ou seja, este médico prosperou perto de onde nasceu Carlos Chagas.
No episódio da invasão da Faculdade de Medicina em 1968, correu altíssimo risco, ao enfrentar a ditadura, colocando-se no meio dos invasores, protegendo-os e apoiando-os.. Dez anos depois Diniz organizou o 4º Simposio Nacional de Pós-Graduação nas Áreas das Ciencias da Saúde, na Faculdade de Medicina da UFMG, e minha participação ali foi de alerta contra a SÍNDROME DAS MULETAS SUCESSIVAS. Nosso temor era de que o fenômeno por mim denunciado, de que a residência médica não passava de muleta da má graduação já se estendera a toda a educação. Cada ciclo, cada etapa, cada modismo não passava de corretivo da má etapa anterior. Nessa época já se começava a falar em pós-doutorado. Denunciamos então o desvirtuamento do mestrado e do doutorado, como títulos voltados ao mercado de trabalho, em vez de qualificação docente. Logo a seguir o mesmo alerta foi feito por Paulo Vanzolini.
            Em 1974, Carlos Diniz me entregou o livro A FARMACOPÉIA TIRIYÓ - ESTUDO ÉTNO-BOTÂNICO (1973), de Cavalcante & Frikel, do  Museu Goeldi. Perguntou-me se aquilo estava previsto em nossa inovação curricular e lhe mostrei a disciplina optativa que seria proposta no seminário daquele ano, denominada  TERAPIAS NÃO CONVENCIONAIS e ele sorriu feliz, mas disse que seríamos metralhados pelos conservadores do Instituto de Ciências Biológicas, o que de fato aconteceu. Naquele dia, enquanto eu folheava o livro, ele me perguntou: você sabia que o Museu Goeldi deveria ser chamado de Museu Domingos Ferreira Pena, um mineiro genial, o verdadeiro fundador da instituição?  Da memória indígena frutificou a idéia da  fabricação de licor de marolo  e de gim de mangarito e também do cultivo de amendoim proteico, obsessão de Armando Gil Neves, seu devotado admirador.
            Toda vez que Diniz aparecia no Centro de Memória eu me preparava para saber o que ele fora ali me dizer ou mostrar. Numa das últimas vezes ele entrou com um homem chamado Baldomero Oliveira, um indígena filipino. Disse-me: você pode estar sendo apresentado a um descobridor histórico; ele estuda desde 1970 poderoso veneno de um molusco, com o qual sua mãe lhe aliviara, na infância,  a dor atroz de um abcesso dentário; achei que você poderia fazer com este analgésico um ensaio terapêutico semelhante ao ensaio que fez com a cimetidina. Não fiz o ensaio porque já estava em andamento o desmonte das universidades públicas. .No caso do captopril, basta dizer que, nos EUA, ao falar ali sobre cininas, Diniz foi contactado pela Squibb, bem antes da tese do Sérgio Ferreira.
Finalmente sobre a FAPEMIG, lembro-me de que Carlos Diniz veio dizer-me que sonhava embutir o amparo à pesquisa na constituição mineira, mas estava pessimista. Perguntou-me se eu tinha condições políticas de reforçar a proposta. Respondi que eu seria ouvido por gente influente. Reuni amigos e conterrâneos entre estes Cid Veloso (1º reitor eleito), Antônio Cândido Carvalho (líder docente de Medicina), Antônio Dilson Fernandes (líder docente de Medicina), Ênio Leão (líder docente de Medicina), Tarcício Campos (líder docente de Farmácia), Élvio Moreira (líder docente de Veterinária), Oder Santos (líder docente de Educação), Joaquim Carlos Salgado (líder docente de Direito),  Ângelo Machado (líder docente de Ciências Biológicas), Jota Dângelo (líder cultural), Airton Dutra (líder cultural), Jarbas Juarez (líder no meio artístico), Célio de Castro (médico e político), Carlos Becker (médico e político), Antonio Cordovil de Freitas (político e líder no meio jurídico), Luiz Fernando Maia (líder sindicalista), Eliane Souza (médica líder sindicalista), Apolo Lisboa (ativista docente), Jésus Fernandes (ativista estudantil) e outros ativistas da UNE. Depois de aprovada a Fundação, embora não da forma plenamente desejada, Diniz veio agradecer o apoio que considerou decisivo.
Em síntese, ideias de Carlos Ribeiro Diniz foram o motor inicial de universidades, indústrias, mudanças institucionais, linhas de pesquisa e descobertas científicas, de que ele jamais reivindicaria a paternidade, mas em que o historiador diligente sem dúvida detectará o DNA de sua liderança fecundante. Além disso, soube sabiamente ser o homem de cada década.  Seu mestre Viana foi o legítimo tenentista da ciência brasileira nos anos 20 do século 20, mas não vacilou em ser constitucionalista nos anos 30 e veio a ser nos 40 poderosa arma contra o Estado Novo. Em seu rastro, o discípulo Diniz, na década de 50, lutou pelo desenvolvimentismo que se estendesse dos alicerces à vanguarda da ciência. Na década de 60, vale repetir, lá estava ele na Faculdade de Medicina, não ao lado do diretor, mas dos estudantes conflagrados contra a ditadura militar, junto a Amílcar Martins e a Noronha Peres, na histórica invasão de 1968, no mesmo  dia da correspondente invasão da Sorbonne. Na de 70, já estava  mergulhado em outro desafio, sem temer a controvérsia: era a edificação do Instituto de Ciências Biológicas. Na de 80, estava prolongadamente entrincheirado na mencionada proposta da FAPEMIG.
Na década de 90, em vez de escrever seus textos memorialísticos, sempre adiados, seu devotamento foi estendido à Fundação Ezequiel Dias, onde sua presença vem impedindo que o deliberado desmantelo de organizações públicas soterre aquela instituição, referência  dos mais caros sonhos de Minas ligados à ciência. Deslocou-se a esta nova trincheira, além disso, para “injetar métodos bioquímicos, herdados de Baeta Viana, nos métodos biológicos, herdados da tradição de Vital Brasil, Carlos Chagas e Osvaldo Cruz”. Por exemplo, aposentar os cavalos fornecedores de soro antipeçonha, substituindo-os por tecnologia molecular. Assim, o mais notável dessa onipresença politico-institucional é que ela nunca foi pretexto para diminuir sua enorme e retilínea produção científica, repleta de contribuições de indiscutível relevância, e que à primeira vista seria própria não deste quixote bem sucedido, mas do mais recluso homem de laboratório.
Quando faleceu, a Funed o homenageou e fui chamado para falar. Não costumo aceitar incumbências assim, mas no caso dele não trepidei. Encerrei com uma comparação entre o Diniz e um político mineiro que indignava Tancredo Neves, por usar raro talento oratório para enganar todo o mundo. E concluí: todos nós nos afligimos com a dificuldade do Diniz para expressar suas mais geniais ideias; ora pois, enquanto o Diniz é maravilhosa fluência de ideias com dificuldade para expressá-las, esse político é maravilhosa fluência verbal à procura desesperada de mínima ideia que tenha algum valor. Este cientista-patriota, este professor-empreendedor, este cidadão valente - de posições sempre socialmente impecáveis e em sintonia constante com a juventude de seus alunos - deve passar a ser, nos dias mesquinhos e conturbados de hoje, o símbolo de perseverança em prol da vocação de grandeza deste país


O autor é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais