CARLOS RIBEIRO DINIZ
João Amílcar Salgado
Nasceu em Luminárias, de pai de
família trespontana e mãe de família nepomucenense. Foi um dos três maiores discípulos do
cientista Baeta Viana (ele, Beraldo e Veiga Sales) e quando faleceu era o maior
bioquímico do Brasil. Sem ele a FAPEMIG não teria sido criada, nem a empresa
BIOBRAS, esta a primeira a fabricar insulina no 3º mundo. Estava para escrever
um livro sobre a genealogia de sua família e sobre o sul de Minas, junto com o
escritor Antônio Cândido e comigo. No início, outro coautor seria o
farmacologista José Ribeiro do Vale, seu parente. Ligada a isso, a ideia de se criar a Unicamp
foi dele. Ou melhor, ele formulou uma universidade nos moldes da Unicamp, que
seria criada no sul de Minas. O golpe militar impediu que a ideia avançasse e
os paulistas a aproveitaram para criar a Unicamp, inclusive com o apoio dele.
Diniz influiu para que Caxambu
abrigasse reuniões periódicas agradáveis de cientistas, de modo a se interfecundarem.
Numa das primeiras, numa roda de cerveja, ele pegou um guardanapo e nele listou
os sulmineiros atuantes em universidades e setores tecnológicos do país. E disse, se fizéssemos a revoada deles para
uma cidade como esta, teríamos a melhor universidade brasileira e equidistante de Rio, São Paulo e Belo
Horizonte. Chegou a falar com o reitor Aluizio Pimenta da UFMG que topou
cria-la como campus sulmineiro desta, sendo Diniz o captador de recursos. Tendo
sido concretizada em Campinas, a coisa não deixa de ser de certo modo
sulmineira, pela proximidade e pela gente do sul de Minas que colonizou o
noroeste paulista. Mas a tal revoada foi substituída, sendo esperado o afluxo, não
de mineiros ou paulistas, mas de cientistas
de qualquer parte. O próprio Diniz sugeriu que eu fosse chamado a Campinas para
dar sugestões sobre a transferência da faculdade de medicina do centro da
cidade para o campus.
Também antes do golpe, em 1963, Carlos
Ribeiro Diniz, Marcos dos Mares Guia,
Zigman Brener, Amílcar Martins, líderes do diretório acadêmico, um deles
Henrique Santillo, e eu (recém-formado) nos reunimos para propor que, entre as
chamadas reformas-de-base do governo João Goulart (educacional, tributária,
eleitoral, agrária e urbana), fosse incluída a da indústria farmacêutica.
Defendíamos a criação da Farmacobrás, espelhada na Petrobrás. Carlos Ribeiro
Diniz argumentou que a escola bioquímica de Baeta Viana era a única a dominar
de fato a enzimologia no hemisfério sul. E isso na terra do mamão e do abacaxi,
fontes ultra-disponíveis dos dois mais potentes enzimas proteolíticos vegetais. Daí que cumpria aos bioquímicos
mineiros a missão de fabricar medicamentos para o povo brasileiro, a partir de
tais privilégios. A concretização dessa ideia era mais plausível após a
reeleição de JK em 1965, mas, sob a
ditadura, foi modificada e limitada à criação da Biobrás.
Convidei o Carlos Diniz para conhecer
a paciente Berenice (a primeira diagnosticada com a doença de Chagas), numa
internação desta, para revisão no Hospital das Clínicas. Entre vários assuntos
ele me perguntou como andavam os estudos sobre a domiciliação do triatomíneo. Estava
interessado em fazer estudo semelhante sobre o escorpião amarelo e aproveitou
para lamentar a ocultação do nome completo do professor Osvaldo de Melo Campos
como autor da descrição desta espécie.
São exemplos de como o pensamento original deste homem genial era
incessante e quase sempre na contramão do saber estabelecido. Dias depois, após
ouvir meu protesto contra a negação do premio Nobel a Carlos Chagas, ele me
sugeriu. verificar sua suspeita de que o Instituto Karolinska fora financiado
por um médico sueco, que havia ficado rico no sul de Minas. Ou seja, este
médico prosperou perto de onde nasceu Carlos Chagas.
No episódio da invasão da Faculdade de
Medicina em 1968, correu altíssimo risco, ao enfrentar a ditadura, colocando-se
no meio dos invasores, protegendo-os e apoiando-os.. Dez anos depois Diniz
organizou o 4º Simposio Nacional de Pós-Graduação nas Áreas das Ciencias da
Saúde, na Faculdade de Medicina da UFMG, e minha participação ali foi de alerta
contra a SÍNDROME DAS MULETAS SUCESSIVAS. Nosso temor era de que o fenômeno por
mim denunciado, de que a residência médica não passava de muleta da má
graduação já se estendera a toda a educação. Cada ciclo, cada etapa, cada
modismo não passava de corretivo da má etapa anterior. Nessa época já se
começava a falar em pós-doutorado. Denunciamos então o desvirtuamento do
mestrado e do doutorado, como títulos voltados ao mercado de trabalho, em vez
de qualificação docente. Logo a seguir o mesmo alerta foi feito por Paulo
Vanzolini.
Em
1974, Carlos Diniz me entregou o livro A FARMACOPÉIA TIRIYÓ - ESTUDO
ÉTNO-BOTÂNICO (1973), de Cavalcante & Frikel, do Museu Goeldi. Perguntou-me se aquilo estava previsto em
nossa inovação curricular e lhe mostrei a disciplina optativa que seria
proposta no seminário daquele ano, denominada
TERAPIAS NÃO CONVENCIONAIS e ele sorriu feliz, mas disse que seríamos
metralhados pelos conservadores do Instituto de Ciências Biológicas, o que de
fato aconteceu. Naquele dia, enquanto eu folheava o livro, ele me perguntou: você
sabia que o Museu Goeldi deveria ser chamado de Museu Domingos Ferreira Pena,
um mineiro genial, o verdadeiro fundador da instituição? Da memória indígena frutificou a idéia da fabricação de licor de marolo e de gim de mangarito e também do cultivo de
amendoim proteico, obsessão de Armando Gil Neves, seu devotado admirador.
Toda vez que Diniz aparecia no
Centro de Memória eu me preparava para saber o que ele fora ali me dizer ou
mostrar. Numa das últimas vezes ele entrou com um homem chamado Baldomero
Oliveira, um indígena filipino. Disse-me: você pode estar sendo apresentado a um
descobridor histórico; ele estuda desde 1970 poderoso veneno de um molusco, com
o qual sua mãe lhe aliviara, na infância, a dor atroz de um abcesso dentário; achei que
você poderia fazer com este analgésico um ensaio terapêutico semelhante ao ensaio
que fez com a cimetidina. Não fiz o ensaio porque já estava em
andamento o desmonte das universidades públicas. .No caso do captopril, basta
dizer que, nos EUA, ao falar ali sobre cininas, Diniz foi contactado pela
Squibb, bem antes da tese do Sérgio Ferreira.
Finalmente sobre a FAPEMIG, lembro-me
de que Carlos Diniz veio dizer-me que sonhava embutir o amparo à pesquisa na
constituição mineira, mas estava pessimista. Perguntou-me se eu tinha condições
políticas de reforçar a proposta. Respondi que eu seria ouvido por gente
influente. Reuni amigos e conterrâneos entre estes Cid Veloso (1º reitor
eleito), Antônio Cândido Carvalho (líder docente de Medicina), Antônio Dilson
Fernandes (líder docente de Medicina), Ênio Leão (líder docente de Medicina),
Tarcício Campos (líder docente de Farmácia), Élvio Moreira (líder docente de
Veterinária), Oder Santos (líder docente de Educação), Joaquim Carlos Salgado
(líder docente de Direito), Ângelo
Machado (líder docente de Ciências Biológicas), Jota Dângelo (líder cultural), Airton
Dutra (líder cultural), Jarbas Juarez (líder no meio artístico), Célio de
Castro (médico e político), Carlos Becker (médico e político), Antonio Cordovil
de Freitas (político e líder no meio jurídico), Luiz Fernando Maia (líder sindicalista),
Eliane Souza (médica líder sindicalista), Apolo Lisboa (ativista docente),
Jésus Fernandes (ativista estudantil) e outros ativistas da UNE. Depois de
aprovada a Fundação, embora não da forma plenamente desejada, Diniz veio
agradecer o apoio que considerou decisivo.
Em síntese, ideias de Carlos Ribeiro Diniz
foram o motor inicial de universidades, indústrias, mudanças institucionais,
linhas de pesquisa e descobertas científicas, de que ele jamais reivindicaria a
paternidade, mas em que o historiador diligente sem dúvida detectará o DNA de
sua liderança fecundante. Além disso, soube sabiamente ser o homem de cada
década. Seu mestre Viana foi o
legítimo tenentista da ciência brasileira nos anos 20 do século 20, mas não
vacilou em ser constitucionalista nos anos 30 e veio a ser nos 40 poderosa arma
contra o Estado Novo. Em seu rastro, o discípulo Diniz, na década de 50, lutou
pelo desenvolvimentismo que se estendesse dos alicerces à vanguarda da ciência.
Na década de 60, vale repetir, lá estava ele na Faculdade de Medicina, não ao
lado do diretor, mas dos estudantes conflagrados contra a ditadura militar,
junto a Amílcar Martins e a Noronha Peres, na histórica invasão de 1968, no
mesmo dia da correspondente invasão da
Sorbonne. Na de 70, já estava mergulhado
em outro desafio, sem temer a controvérsia: era a edificação do Instituto de
Ciências Biológicas. Na de 80, estava prolongadamente entrincheirado na
mencionada proposta da FAPEMIG.
Na década de 90, em vez de escrever
seus textos memorialísticos, sempre adiados, seu devotamento foi estendido à
Fundação Ezequiel Dias, onde sua presença vem impedindo que o deliberado
desmantelo de organizações públicas soterre aquela instituição, referência dos mais caros sonhos de Minas ligados à
ciência. Deslocou-se a esta nova trincheira, além disso, para “injetar métodos
bioquímicos, herdados de Baeta Viana, nos métodos biológicos, herdados da
tradição de Vital Brasil, Carlos Chagas e Osvaldo Cruz”. Por exemplo, aposentar
os cavalos fornecedores de soro antipeçonha, substituindo-os por tecnologia
molecular. Assim, o mais notável dessa onipresença politico-institucional é que
ela nunca foi pretexto para diminuir sua enorme e retilínea produção
científica, repleta de contribuições de indiscutível relevância, e que à
primeira vista seria própria não deste quixote bem sucedido, mas do mais
recluso homem de laboratório.
Quando faleceu, a Funed o homenageou e
fui chamado para falar. Não costumo aceitar incumbências assim, mas no caso
dele não trepidei. Encerrei com uma comparação entre o Diniz e um político
mineiro que indignava Tancredo Neves, por usar raro talento oratório para
enganar todo o mundo. E concluí: todos nós nos afligimos com a dificuldade do
Diniz para expressar suas mais geniais ideias; ora pois, enquanto o Diniz é
maravilhosa fluência de ideias com dificuldade para expressá-las, esse político
é maravilhosa fluência verbal à procura desesperada de mínima ideia que tenha
algum valor. Este cientista-patriota, este professor-empreendedor, este
cidadão valente - de posições sempre socialmente impecáveis e em sintonia
constante com a juventude de seus alunos - deve passar a ser, nos dias
mesquinhos e conturbados de hoje, o símbolo de perseverança em prol da vocação
de grandeza deste país
O autor é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de
Minas Gerais e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais