João Amílcar Salgado

terça-feira, 17 de outubro de 2017

PAULO MADUREIRA DE PÁDUA  - HIERARCA DA REUMATOLOGIA BRASILEIRA


João Amílcar Salgado
     As turmas de medicina formadas na UFMG nos anos de 1960 e 1961 eram tão pequenas e o currículo médico era tal que ambas conviviam como uma só turma. Assim, dois de meus maiores amigos, durante e após o curso, foram o Paulo Madureira de Pádua, de Conceição do Mato Dentro, e o Rubens Nery Simões, de Brasília de Minas. Sendo eu sulmineiro, nós três passamos a viver uma amizade de integração cultural entre três regiões distintas de Minas. O Paulo, entretanto, sendo ligado aos Páduas de Lavras, acaba sendo também meu parente, pois meu trisavô Vicente Ferreira Costa integra o matricial tronco lavrense dos Costa-Pádua-Sales.
     O Paulo Madureira foi um jovem cheio de leitura, muito atento às políticas nacional e mundial e sempre crítico para com os homens públicos, sobre os quais exibia informações privilegiadas, que lhe eram repassadas por um conterrâneo, seu confidente, o José Aparecido de Oliveira. Foi por intermédio do Zé Aparecido, então secretário de cultura do Tancredo Neves, que o Paulo trouxe grande apoio a nosso Centro de Memória da Medicina.
    Antes de graduar-se, o Paulo prenunciava seu brilho, por rara preocupação em buscar iniciação científica, escolhendo ser aprendiz junto a nada menos do que José Noronha Peres, então o maior virologista do país. Apresentou sua pesquisa inicial em memorável convenção no Rio Grande do Sul. Fui honrado para participar da banca examinadora do concurso pelo qual o Paulo Madureira se tornou professor titular de reumatologia da UFMG. Em minha apreciação, tive oportunidade de repassar sua carreira, a partir de, quando recém-formado, foi inaugurar, ao lado de Achiles Cruz Filho, o setor de reumatologia da cátedra de Caio Benjamim Dias – à época localizada no Hospital da Cruz Vermelha.
     Éramos de andares vizinhos, pois no 4o ficava o serviço do professor Caio e no 5o ficava o do professor João Galizzi, de que eu participava. Assim nossa amizade estudantil se prolongou em frutífero companheirismo docente, sendo que ali tínhamos como abalizado mentor nosso queridíssimo Luiz Cisalpino Carneiro, em bate-papos acalorados e hilariantes. Participavam dos debates sobre temas gerais, entre outros, Alberto Paolucci, Douglas Andrade, Naftale Katz, Emílio Grinbaum, Cid Veloso e Carlos Alberto Barros Santos.
      Esse grupo de auxiliares do Caio e do Galizzi foi denunciado como subversivo logo depois do golpe de 1964, mas não era fácil para os denunciantes persegui-los. A cada dia figuras proeminentes estavam ali fazendo exames, aos cuidados do Luiz Carneiro, proclamado por nós o melhor laboratorista de Minas. Eram personalidades que estavam sob stress político, pois eram antigos democratas agora na posição conflitiva de golpistas. Assim cruzávamos ora com Magalhães Pinto, ora com Milton Campos, ora com Pedro Aleixo – e outros.
      Mesmo assim alguns repressores mantiveram a esperança de prender e torturar pelo menos o Luiz, principalmente quando souberam que ele conseguira viagem clandestina a Cuba. O Paulo correu pequeno risco, quando os inimigos de José Aparecido o fizeram cair em desgraça. Gente de Nepomuceno muito ligada ao Paulo são o João de Lima Pádua (cunhado de Lucas Lopes) e Evandro Veiga Negrão de Lima - parentes da Sara Kubitschek. O Paulo não quis beneficiar-se de tais ligações, para fim de cargo ou outra vantagem.  Lembro também que Lucas era irmão de meu grande amigo Hélio Lopes, sobre quem escrevi um perfil com surpreendentes revelações, recolhidas de tal proximidade familiar.
        Paulo e Achiles, colegas de turma, decidiram especializar-se na Alemanha e de lá trouxeram a sólida experiência germânica em reumatologia. Daí que, ao arguir o Paulo, lembrei que seu acabamento de especialista exibia bela harmonia entre três raras qualidades no mesmo clínico: o rigor semiotécnico, o seguro repertório científico da complexa nosologia dos reumatismos e o raciocínio feito de lógica férrea. Foi-me possível, com isso, anunciar ali a reumatologia mineira no devido vértice de invejável posição no país. De fato, Minas Gerais detém a primazia de ter madrugado na atenção aos reumáticos brasileiros, por meio de nossas estâncias hidrotermominerais. Veio a seguir a formalização da reumatologia nacional pelo mineiro Pedro Nava, ligado à escola francesa.
        Do Rio de Janeiro, Nava disseminou-a por vários centros, sendo seu procônsul mineiro o Geraldo Guimarães da Gama, entusiasta de nosso grupo de naveanos. E, para coroar, Minas foi brindada com o referido complemento, salutar e indispensável, da reumatologia alemã. Ao longo do tempo, o eminente professor Paulo Madureira de Pádua, graças a sua natural liderança universitária, gerou sua própria linha de discípulos, aplaudida pelos pares de fora de Minas. E assumiu com espontaneidade a grave responsabilidade de ser a principal referencia científica e clínica, exatamente no Estado que detém aquele privilegiado cabedal histórico da especialidade. É um dos diversos nomes (entre os quais Baeta Viana e Liberato DiDio), que injustamente não foram agraciados com o título de professor emérito.

 O autor João Amílcar Salgado é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais e criador do Centro de Memória de Minas Gerais

domingo, 15 de outubro de 2017

ILUSTRE FARMACÊUTICA MARIA ILCRAM VILELA

MARIA ILCRAM VILELA 

 Não existe ninguém que se interesse mais por outro ser humano do que este ser imensamente humano chamado Ilcram. 


 João Amílcar Salgado 

      Minha primeira lembrança da Ilcram foi numa roda de meninas em volta da Fina. Serafina era o nome desta, criada por minha avó Amélia. Eu, que convivi com educadoras e educadores extraordinários, coloco minha madrinha Fina entre a mais alta hierarquia deles. No caso, a Fina estava ensinando a arte do tricô às netas da Sá Amélia. Cheguei-me ao grupo e a Ilcram, toda loira e graciosa, me chamou para aprender tricô. Respondi que eu era homem e homem não fazia tricô. Ela insistiu: é tão fácil que até homem aprende! E veio passando o fio de lã por meu pescoço e me entregando as agulhas. Não protestei, porque senti que aquilo era o jeito que minha linda prima achou para me dar um abraço. 

       Nos anos 50, o concurso de miss fica popular e o coadjutor padre Virgílio, em contraponto, cria uma espécie de concurso para moças católicas. O sucesso veio da beleza das concorrentes e fiquei muito feliz de ver no palco duas primas, moradoras da praça da matriz. Eram a Zélia da tia Adélia e a Ilcram do tio Lela. O padre foi diplomático, porque não houve uma miss e todas alcançaram o primeiro lugar. Para nós, a escolher uma, esta estaria entre a Ilcram e a Zélia, de fato dois tipos de igual beleza. 

     Quando a Ilcram entra na UFMG, a escola de farmácia havia adquirido a fama de alunas bonitas. Nas férias ela chegava com uma a três beldades em Nepomuceno. A casa ficava festiva e meus tios as recebiam como filhas. Uma delas me confessou que jamais conhecera um lar como aquele. Ali, o prazer em agradar era sem fim e tudo muito risonho. Quando a Ilcram fica noiva, fiquei maravilhado com o noivo. O Spencer era nada menos que o irmão da Beatriz, minha querida paraninfa no Colégio Estadual. Outra grata revelação foi a saga daquele clã de farmacêuticos. O Spencer é filho de um farmacêutico e professor – e eu também. Demais, meu pai foi colega de Carlos Drummond, na mesma faculdade do Spencer e da Ilcram. Além disso, o Drummond foi professor no colégio do pai do Spencer. Afinal, a Ilcram, o Spencer e eu comungamos a circunstância de termos sido crianças curtidas no ambiente das farmácias antigas, principalmente o aroma dos ingredientes de poções, láudanos e elixires magistrais. 

      Tenho o privilégio de conhecer algumas das bondades secretas da Ilcram. Ela as esconde de todos, mas não conseguiu evitar que eu as descobrisse. Se um parente ou um amigo está em dificuldade, ela tanto faz que acaba achando um meio de ajuda. Não estou autorizado a revelar exemplos e nem devo, mas de um caso posso falar por ser humorístico. A prima dela era casada com o Hélio, ótima pessoa, mas danou a beber. Os pais dele eram caseiros de nossa chácara e fui médico deles. Os filhos preferiam usar o sobrenome da mãe que era Garcia. 

     A Ilcram decidiu recuperar o Hélio. Ele viria para a casa dela e, enquanto trabalhasse ali, não beberia e ganharia bem. Escreveu o endereço, comprou-lhe o bilhete do ônibus e lhe deu o dinheiro do táxi. Ele chega à rodoviária, mas o endereço ele perdeu e o dinheiro também. Pensou: a Ilcram e o Marcli são pessoas importantes e são conhecidos de muita gente. O guarda percebeu que ele incomodava a cada passante, indagando onde morava a Ilcram ou o Marcli. Aproxima-se do importuno: Seu nome, por favor. Resposta: Hélio Garcia. O guarda ironiza: Então estou falando com o governador de Minas Gerais?... E o Hélio: Sou primo dele. A sorte foi que a revista feita nos bolsos do Hélio foi tão bem feita que a carteira de identidade foi achada e lá estava escrito Hélio Garcia. O nepomucenense se livrou desta, mas, como não sabia sair dali, entrou na lanchonete. Aquele senhor de cara afável ali no balcão parecia ser o dono da loja. Perguntou: O senhor conhece o Marcli? Espantosamente, o homem abriu um sorriso: Se for meu grande amigo Marcli Vilela, conheço muito! Deu ao Hélio um lanche e pagou o táxi, que rumou não para a casa da Ilcram, mas para o endereço do Marcli. Este quis reembolsar o amigo, que recusou com a seguinte justificativa: Não é todo dia que a gente pode fazer um agrado a um governador... 

       Para terminar, deixo aqui o registro de minha mais alta gratidão à Ilcram e à Tia Mariinha. Minha tia Licínia e minha mãe me proibiram relatar, no livro O RISO DOURADO DA VILA (2003), o épico episódio inaugural da lua de mel dos nubentes Lela-Mariinha. E não é que a própria noiva e a Ilcram me autorizaram plenamente a transcrição? Hoje sei que isso foi um dos fatores do sucesso dessa publicação, que logo se esgotou e aparecerá agora em segunda edição. 

 Texto comemorativo dos 80 anos da ilustre farmacêutica Maria Ilcram Vilela, em 14/10/2017