João Amílcar Salgado

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

 




NEPOMUCENO 300 ANOS ATRÁS

Em 1720 - quando Minas foi delimitada - como era Nepomuceno? Em 1675 Lourenço Taques esteve próximo a Nepomuceno, quando promoveu um massacre de indígenas em Cristais. No ano anterior, Fernão Dias acampou perto daqui por causa da chuvarada de setembro a maio. Do acampamento surgiu a primeira cidade mineira, Ibituruna.  Seus homens também massacraram os índios hostis, nas margens de um ribeirão afluente do rio Grande, que foi denominado Vermelho, pelo sangue derramado.

Nas terras da futura Nepomuceno, em 1720, havia apenas nativos. Na década seguinte chegaram os negros fugidos do garimpo do Funil. A paisagem era densa Mata Atlântica, aqui e ali interrompida por congonhais, em meio ao barbatimão. Provavelmente garimpeiros vindos do Funil subiram riachos, rios e morros, à procura de ouro, por exemplo na corredeira do Rio Cervo e na Lavrinha. Ainda hoje encontram-se escavações de suas buscas.  Era intensa a lereia de enorme variedade de pássaros, incluindo a arara vermelha, papagaios, maritacas e periquitos. Peixes eram de se pegar com a mão, inclusive, decerto, a piabanha. Caça igualmente fácil incluía patos, perdizes e outras aves, além de veados, tatus, catetos e bugios. Tribos cultivavam a saúva de que comiam as tanajuras. Tubérculos e verdura eram cozidos.  A “sobremesa” era o mel de abelhas nativas e também frutas, como a goiaba, o articum, a pitanga e a gabiroba.

De tais abelhas ficou o nome Trombuca, atribuído ao rio, onde abundavam, e aos índios seus apreciadores. Silvícolas vizinhos eram denominados cambuavas, mandiboias, puris e catiguás. No alto da cidade, passa a avenida São João Nepomuceno, nome pomposo dado à antiga Estrada Boiadeira, antes trilha desses mesmos indígenas. Acabou sendo um dos ramos colaterais do Caminho Velho, que escoava o ouro das Minas a Parati. Este mesmo caminho, por sua vez, é o prolongamento pela Mantiqueira, da trilha dos guaianases, gentios de que descendemos. Em 1700 ele foi percorrido pela primeira vez por um governante, Artur de Sá e Meneses, que assim passou perto da futura Nepomuceno, onde os Meneses locais, seus consanguíneos, nos conferem distinta comenda fidalga.

O ano de 1720 inaugura Minas Gerais e nesta data começa a política de sonegar a Minas não só o oceano, mas a margem esquerda do Paraíba e o sul da Bahia. Tudo isso causado pelo medo de que, por nossa riqueza, viéssemos a ser não uma província, mas um país, como ocorreu semelhantemente no lado espanhol do continente. Mas o ano de 1720 é principalmente a data do assassínio infame do insubmisso Felipe dos Santos, em Vila Rica. Este herói foi glorificado indiretamente pelo porta-voz de seus algozes, o Conde de Assumar, quando disse a frase lapidar: Minas tem por brio ser livre; o ar que se respira aqui é o da liberdade. E disse outra: A terra evapora tumultos; a água exala motins; destilam liberdade os campos; o clima é tumba da paz e berço da rebelião.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

 



A LEGENDA DE MEU BAOBÁ

            Antoine de Saint-Exupéry, aviador e pensador francês, escreveu o livro O PEQUENO PRÍNCIPE, em 1943, em plena segunda guerra mundial. Na década seguinte, o livro fez sucesso no Brasil e foi através dele que muita gente ficou sabendo que existia uma árvore chamada baobá. Eu era bibliotecário do diretório estudantil do curso médico e tive de adquirir múltiplos exemplares do pequeno livro, que nos traz esta parábola poética e filosófica. Outro autor de sucesso então era Jorge Amado e ele nos revelou o universo afro. Neste, Jorge fez brilhar Pierre Verger, fotógrafo e etnógrafo francês, que adotou a Bahia como pátria, inclusive a religião dos orixás. Outro que adotou essa crença foi o seleto poeta e compositor Vinícius de Moraes.  

            Quando criei o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais passei a procurar um consultor em medicina afro. Encontrei o Geraldo André da Silva e perguntei-lhe que seria necessário para tal função. Ele foi direto: faça este Centro me enviar à África. Ele foi e ficou estagiando com um sacerdote da mais pura religião angolana. Quando voltava, perguntou que devia trazer para mim, como agradecimento. Fui direto: uma muda de baobá. Quando ele chegou, tremi de emoção, ao receber a muda de uns 30 cm. Era inacreditável:  mas André, é proibido entrar no avião com isso! De fato, ainda lá, foi avisado da proibição. Voltou a seu guru, que lhe arranjara a muda. Este disse: eu encantei a muda, já está encantada, pode levar ao doutor que ele a vai receber. A muda passa por um fiscal na entrada do avião, que não a vê. Viaja no colo do portador, sem que ninguém da tripulação e dos passageiros a perceba. E desce em Belo Horizonte do mesmo modo. Coloquei-a sobre o cimento de meu quintal e, quando olho, a raiz já havia penetrado o cimento. Havia crescido mais do que eu esperava. Para levar a Nepomuceno, foi necessária uma caminhonete. Mandei o motorista ajeitar a muda na carroceria e, quando chego, ele tinha esqueletizado a árvore, alegando que era para ela suportar o vento...  Pensei: agora ela está morta... Mesmo na certeza de que estava perdida, plantei-a carinhosamente. E não estava morta. Encantada, está lá, cada vez maior, sob as bençãos de meus ancestrais angolanos e do Padre Vítor. FOTOS DE PAI ANDRÉ E DO BAOBÁ NEPOMUCENENSE

sábado, 21 de novembro de 2020


 

A LEGENDA DO NEGRO CASCALHO

João Amílcar Salgado

A região que inclui as cidades de Itumirim, Lavras, Nepomuceno, Cristais, Campo Belo, Boa Esperança, Três Pontas e Campos Gerais foi palco, pouco depois de 1720, do início do mais importante fenômeno quilombola de Minas, que é a epopeia do Quilombo do Ambrósio. Negros congoleses, cabindas, angolanos e moçambicanos foram trazidos para apurar o ouro da garganta do Funil no rio Grande. Os que fugiram se aldearam em Cristais onde foram massacrados. Sobreviventes escaparam no rumo da Farinha Podre. Parte deles atravessou o rio no estreito onde hoje é o Porto dos Mendes e se aquilombaram no morro do Morembá e também nos morros da Calunga. Provavelmente após o incêndio do quilombo da Calunga os melhores guerreiros se entrincheiraram atrás das elevações da Serra das Três Pontas.  O líder deles era o negro Cascalho. Era tão hábil na guerrilha que, para derrota-lo, nada puderam os garimpeiros, corujas e faiscadores - foi necessária força governamental. O armamento dos bravos libertários sucumbiu ao maior número das armas de fogo. A orelha de cada combatente foi cortada e todas ajuntadas. Um saco de orelhas salgadas foi depositado na mesa do governador em Vila Rica. Uma delas era do negro Cascalho, cujo retrato imaginário foi desenhado pelo pluri-artista João Vinícius. Este negro é nosso primeiro herói. Deve figurar na parede principal de nossas casas. É ele que homenageamos neste dia 20/11/2020, comemorativo da consciência negra no Brasil.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

 

DOAÇÃO DE PEÇAS DO CENTRO DE MEMÓRIA DA MEDICINA (UFMG) AO CENTRO DE MEMÓRIA DA FARMÁCIA (UFOP), INSPIRADA EM DOIS CLÃS DE FARMACÊUTICOS

 

João Amílcar Salgado

 

        No dia 09/04/1999, em Ouro Preto, tive a honra de entregar peças de significado histórico, doadas pelo Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, ao Centro de Memória da Escola de Farmácia da Universidade Federal de Ouro Preto, na solenidade de inauguração deste, comemorativa dos 160 anos desta que foi a primeira escola de farmácia criada no Brasil.. 

         As peças são as seguintes:

         1. O exemplar original do livro MYRTACEARUM BRASILIENSIUM de Hjalmar Kiaerskou, que fora doado ao Herbário Magalhães Gomes da Escola de Farmácia pelo ilustre Dr Glaziou, em 08/04/1896, e foi adquirido em loja de livros usados pelo membro de nossa equipe, Professor Paulo Pimenta de Figueiredo, docente de pediatria, bibliófilo e estudioso de botânica.  Ao verificar que se tratava de exemplar raro, escrito em latim e editado na Europa, versando sobre  nossa flora, ele sugeriu que o devolvêssemos em seu nome ao lugar de origem, e que o fizéssemos de modo a ressaltar a importância quer da preservação de bens históricos, quer da própria flora indígena.  Disse mais, que fizéssemos a devolução em homenagem a Ouro Preto e seu brilhante passado e à memória de seu bisavô, o farmacêutico João Soares da Silva Costa (pai de outro ilustre médico, Júlio Soares), formado nesta Escola de Farmácia em 1891

         2. O exemplar encadernado de cópias de três textos de Antônio José de Souza Pinto, boticário em Lisboa, editados por Luiz Maria da Silva Pinto, na Typografia De Silva de Ouro Preto, em 1834,  intitulados:

- PHARMACOPÉA  CHIMICA, MEDICA E CIRURGICA

- MATERIA MEDICA

- APPENDIX AO VADEMECUM – BREVE TRATADO DE

CIRURGIA FORENSE OU LEGAL

         3. Foto da AULA DE CAMPO do Curso de Farmácia, ministrada pelo Professor WILLIAM SCHWACKE, provavelmente nos arredores de Ouro Preto, em  1891.      .

         4. Foto da FARMÁCIA POJICHÁ, da cidade de Rio Novo, que ali funcionou, na Av. Benedito Valadares, por mais de cem anos  e pertenceu a José Ribeiro  Pojichá, graduado em Ouro Preto, em 1883.

         5. Poster da CARTA RÉGIA do Príncipe D. João, que documenta o INÍCIO DO ENSINO MÉDICO NO BRASIL, EM VILA RICA, EM 1801..  Cartas régias semelhantes foram expedidas a São Paulo e ao Rio de Janeiro, e talvez a outras cidades, mas a de Vila Rica foi a única que resultou, documentadamente,  em curso com produção regular de profissionais até a criação das Faculdades de Medicina..O curso é citado no livro de Pedro Salles, História da Medicina no Brasil, mas sua documentação histórica completa foi feita pelo historiador e decano dos cartunistas brasileiros, Fernando Pieruccetti, ouropretano, quando de seu estudo ainda inédito da história centenária da atual Escola Estadual Milton Campos (antes chamada Liceu Mineiro, Ginásio Mineiro e Colégio Estadual), onde lecionou Desenho, e que remonta à Vila Rica do século 18.

         6. Cópia do quadro pintado por FERNANDO PIERUCCETTI, mostrando a cena imaginada da chegada do segundo cirurgião-docente para ministrar as aulas acima referidas na SANTA CASA de Vila Rica.  As aulas do primeiro docente foram inicialmente ministradas no REAL HOSPITAL MILITAR, em uma de suas localizações, hoje em ruínas.

         Ao fazer tais doações, afirmei que me sentia em casa, pois sou neto do boticário Joaquim Alves Vilela e filho do farmacêutico João Salgado Filho e que as famílias Alves Vilela e Abreu Salgado são clãs de farmacêuticos.  Entre os primeiros, enumerei os farmacêuticos Pedro Alves Vilela, Demétrio Alves Vilela, Clyde Alves Vilela (estes dois formados na Escola de Ouro Preto), Manoel Clyde Vilela , José Ramilc Vilela, Maria Ilcram Vilela (esposa do farmacêutico Spencer Alvarenga, de outro clã semelhante), Luciana Vilela Alvarenga e Eugênia Lima Menezes (esposa do farmacêutico Antônio Juliano Breyner, de outro clã semelhante, ambos graduados na Escola de Ouro Preto, em 1982).   Entre os segundos, os fitoterapêutas Cadete, Antônio (Nhotó) e João Ferreira de Castro, o farmacêutico Moacir de Abreu Salgado (pioneiro entre os farmacêuticos-bioquímicos do Brasil) e os graduandos, também Vilelas, Marco Antônio Salgado, João Maurício Salgado e João Eustáquio Salgado (os dois últimos da Escola de Ouro Preto).  A observação, além do aspecto sentimental, é de interesse histórico, pois uma das fontes fundamentais para documentar a história das profissões, como medicina e farmácia, são as histórias das famílias, as autobiografias, as biografias e a história da vida privada,  hoje em pleno florescimento.

         No estudo que faço da história de minha cidade  de  Nepomuceno, no sul do Estado,  e no de minha família, é possível verificar a fase inicial de farmacêuticos licenciados, como Pedro Alves Vilela (que emigrou da região e veio a ser um dos fundadores de Ituiutaba, sendo pioneiro no oeste ao levar consigo a rica tradição dos boticários coloniais e imperiais) e de seu irmão Joaquim, muito mais jovem e treinado por ele, que sonharam para os filhos (no caso deste, Demétrio, da turma de 1911, e Clyde, de 1924) o diploma de Ouro Preto.  Outro licenciado, João Barbosa de Oliveira, competidor do Joaquim, quis o mesmo para o filho Antenor Barbosa (de 1908), de tal forma que a pequena cidade, na segunda geração, contava com seis egressos de Ouro Preto: Demétrio, Clyde, Antenor, aos quais se somaram Marcílio Lima (de 1904), Manoel José de Simas (de 1908) e Calipso Mentor de Menezes (de 1909), decidindo-se este por trabalhar na localidade vizinha de Coqueiral.  Minha cidade hoje é honrada por outros egressos desta  mesma Escola: Francisco de Calaes Moreira (de 1973 ), Henrique de Sagres Maia (de 19   ), Rosilene Botega (de 19   ) e  Eliseti Galvão (de 19   ), além dos estudantes mencionados..

         O entusiasmo daquela segunda geração, naturalmente aureolada de ciência, era tal que partiram para a criatividade, produzindo semi-ndustrialmente novos remédios e cosméticos, alguns de nomes saborosos, outros de sucesso para além da região e até premiados na exposição industrial do Centenário da Independência, no Rio de Janeiro, em 1922.. Fenômeno análogo ocorreu na odontologia e o exemplo da Cera do Dr Lustosa de S. J. del Rei é tão interessante que mereceria  espaço  no Centro de Memória de Ouro Preto, pois é formulação farmacêutica, e museu inteiro em S João..  Em minha cidade, ao lado da Cera, era popular para dor de dente o Guaiacol.  Meu pai criou remédio aparentemente mais eficaz que estes, de nome  Odontalgina e que virou unanimidade.  Vendia para os competidores mas não fornecia a fórmula.  Um dia  seu leal auxiliar confessou que recebeu tentadora oferta de suborno a troco do segredo.  Outra criação sua foi a modificação que fez nas clássicas gotas eupépticas, a que deu o nome de Gotas do Padre Vítor (santo milagroso da região, hoje em beatificação)  Seu sucesso foi tal que recebeu proposta de grande laboratório para produção industrial. Por sinal, a água de melissa, um eupéptico clássico, teria sido o pivô do primeiro processo judicial de patente, movido contra boticários por monges carmelitas, no final da Idade Média. Também o marketing comercial moderno teria sido inaugurado com medicamentos no século 17.  Quadrinhas premiadas de meu pai encontram-se nas coleções (a serem preservadas nos Centros de Memória) dos almanaques do Biotônico, do Bromil e do Capivarol (hoje objeto de teses, veja-se a da Profa.        )

         Meu tio Moacir foi pioneiro como farmacêutico-bioquímico, no final da década de 40, da clínica que o cardiologista Adauto Barbosa Lima (discípulo de Baeta Viana e responsável clínico na primeira cirurgia de circulação extra-corpórea no Brasil) esboçou montar em Nepomuceno, logo que regressou dos EUA.  No mundo universitário da medicina, em contato com os maiores especialistas, nunca encontrei um que o superasse em conhecimentos e habilidade no laboratório clínico. Mas, como seu laboratório ficava defronte nossa farmácia, acabou ocorrendo o que meu pai muito temia e que prenunciaria as críticas acumuladas pela nova especialidade entre farmacêuticos.  Um fazendeiro deixou na farmácia receita de pomada para aviar, com muita esperança de afinal se ver livre de doença crônica - e que pusessem  na conta  e no balcão para ele pegar.  Antes disso,  alguém deixou ali uma latinha de fezes para o Sêo Moacir examinar, e o fazendeiro levou esta em vez da pomada.  Foram atrás dele e não o acharam a tempo.  Quando voltou à cidade, meu pai apreensivo se surpreendeu com seu semblante amigável. - E a pomada?  - Ah sêo João, foi um santo remédio, mas como fede!

         Outro aspecto importante da história das farmácias e dos farmacêuticos é seu papel social.  A rede de boticas provavelmente foi o arcabouço do mais democrático  sistema de atenção à saúde vigente no Brasil e em outros países.  Várias teses de pós-graduação têm focalizado este fato, como a da Profa Ceres Pinheiro (De Estudante de Medicina a Médico no Interior, UNICAMP) e a da Profa Betânia Figueiredo ( A Arte de Curar, USP).  Quando convidei o notável médico Hermes de Paula para escrever seu livro sobre a história da medicina no norte de Minas, ele perguntou se não iria escandalizar com o título A MEDICINA DOS MÉDICOS E A OUTRA (UFMG), pois no sertão a outra era muito importante.  Não só aplaudi o título como apelei a que iniciasse a obra por aqueles versos de Pedro Canela que lá estão.  E  o momento mais alto do livro é quando fala da dedicação e da competência dos boticários.

         Ao lado da democracia atencional, a farmácia ocupou papel comunitário, não só como ponto de convivência, mas de referência política, educacional e de lazer. Para quem quisesse saber novidades em geral ou as últimas anedotas, as farmácias eram mais confiáveis que as barbearias (historicamente suas irmãs-gêmeas) e ambas mais que os demais lugares .A farmácia de meu pai foi marcante central humorística, no tempo feliz em que os cidadãos mais respeitáveis se ocupavam em pregar peças uns nos outros, tendo horário reservado a rodas de causos, mais de humor que de fofocas.  Até hoje é comum se ouvir pelos botecos da cidade:: - Quem aqui sabe aqueles causos engraçados do João Sargado? Outra maneira de os farmacêuticos amenizarem os dramas diariamente testemunhados era afixionar-se  a animais, plantas, esporte ou  arte. Meu pai era poeta e contista (contemporâneo de Carlos Drummond em Belo Horizonte), fruticultor e dava nome eruditos a seus animais.  Ele e meu tio Clyde fundaram o Clube de Xadrez 18 de Agosto, hoje o clube social da cidade, além de nossa farmácia ter sido  palco de memoráveis  torneios do jogo de dama..

Além disso, após a ditadura Vargas, houve grande efervescência política, na qual as farmácias entraram de cheio.  Vivi esta experiência em situação singular, pois nossa farmácia era o quartel general da UDN e a farmácia de meu tio Clyde era o do PSD.. Situações às vezes dramáticas, às vezes cômicas ocorreram quando ambos os lados tiveram direito a intensas comemorações coincidentes, por causa da vitória da UDN, com a eleição de Miltom Campos para governador, e a vitória do PSD , com a de Gaspar Dutra para presidente, em 1947.

Se o sonho dos boticários licenciados era ter sucessores diplomados, a maior parte destes queria um filho farmacêutico para herdar a farmácia e outro médico..  Eles próprios, tendo oportunidade, acumulavam os diplomas de farmacêutico e médico.  Um exemplo é Ismael Faria, o zeloso guardião da memória de  Guimarães Rosa e de seus colegas diplomados em medicina, em 1930, na hoje UFMG, que antes fora o farmacêutico de tradicional farmácia perto do Colégio Arnaldo. Houve lei que permitia a farmacêuticos ingresso direto no curso médico, o que resultou em turmas numerosas de estudantes, alguns já encanecidos.  A experiência permite a conclusão de que a atividade de auxiliar de farmácia ou de farmacêutico antes do curso médico é preparo melhor para a clínica do que o atual ciclo pré-clínico  de ciências biológicas.- e isso é coerente com a  tendência mais avançada da pedagogia médica.

 Peculiar é o caso de Aurélio Pires, um dos mais ilustres ex-alunos da Escola de Farmácia de Ouro Preto, que quis ser também médico e, não conseguindo, passou a sonho maior, criar uma escola médica.  Aceito sem dúvidas como o idealizador combativo da primeira Faculdade de Medicina de Minas (UFMG), não tem seu nome entre os médicos fundadores inscritos metalicamente na entrada do prédio.  Bem antes deste bronze, seu nome já fora imortalizado em mais que o bronze, no célebre poema de Pedro Nava, MESTRE AURÉLIO ENTRE AS ROSAS, que, segundo o farmacêutico Carlos Drummond (também ex-aluno de Pires), é um dos marcos iniciais da revolução modernista na literatura brasileira. Ainda menino, li, na biblioteca paterna, dois nomes de autores, que depois saberia admirar: Aurélio Pires e Jovelino Mineiro.

     Esta Faculdade de Medicina tem ligações francamente filiais com a Escola de Farmácia de Ouro Preto. De seus    fundadores, o farmacêutico Aurélio Pires e os médicos Alfredo Balena e Cornélio Vaz de Melo são egressos desta. Demais, o sucessor de Balena e terceiro diretor é o ouropretano, Adelmo Lodi.  Outro fundador ouropretano foi Antônio Aleixo. O rigor didático de Ouro Preto foi levado à nova Faculdade por outro  egresso, depois médico, Francisco de Paula Magalhães Gomes (de 1889), terror dos alunos na freqüência e no cálculo estequiométrico. Outros médicos ali docentes, antes farmacêuticos pela mesma Escola, foram Otaviano Ribeiro de Almeida (de 1906) e Olinto Orsini de Castro (de 1911). Joaquim de Santa Cecília foi colaborador de meu avô, Joaquim Alves Vilela, em Nepomuceno, tornou-se farmacêutico em Ouro Preto, em 1904, formou-se em medicina e veio a ser pioneiro da docência oftalmológica na nova escola médica.

Depois de toda esta história - mais testemunho sentimental que historiográfico - fica evidente que a doação da Faculdade filha à Escola mãe, intermediada por mim, não foi mais que coerente preito de gratidão, próprio para simbolizar e selar o congraçamento entre os dois Centros de Memória, com largo terreno comum a percorrer, a explorar e  a documentar.

 

O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da UFMG

[INCLUIR A FOTO DE MINHA PALESTRA]

...

terça-feira, 1 de setembro de 2020



 

JOÃO VINÍCIUS SALGADO - MÚSICA E DESENHO

SOMEWHERE IN YOUR MIND
Ficou pronta mais uma gravação de uma música que compus na juventude. Quero manifestar minha gratidão ao meu grande amigo e parceiro Waldir "George Martin" Cunha por conseguir tornar a composição inicial em uma música afinada, com arranjos incríveis, mas mantendo a essência original! Foi uma música gravada em tempos de pandemia. Eu gravava e mandava para o Waldir, que mandava de volta. Por isso mesmo não há um filme da gravação da música. Em seu lugar coloco uma colagem de fotos dos ensaios e gravações unilaterais.
Esta música foi composta quando ainda estava no início do curso de medicina, mas a letra já anuncia minha "pegada" psiquiátrica de que, à época, nem fazia ideia!

https://www.facebook.com/jviniciuss/videos/3544970038848782/

 

 

DESENHANDO COM O LADO DIREITO DO CÉREBRO
Outro dia, meu filho João Mateus me pediu para desenhar o Pesadelo Monstruoso para o livro sobre dragões que ele estava escrevendo (para quem não tem filhos menores e não conhece o Soluço e o Banguela, favor assistir "Como treinar meu dragão"). Eu fiz o desenho de cima e ele: "Pô pai, você desenha bem mesmo! Como você consegue?". Eu disse: "Eu desenho com o lado direito do cérebro. Quer dizer, tento não simbolizar, mas desenhar exatamente o que vejo. Se eu simbolizar, ou seja, usar o hemisfério esquerdo, o dragão vai ficar desse jeito aqui (fiz o desenho de baixo). É rápido, você vai saber do que se trata, mas não vai ficar bacana, concorda?". Pelos desenhos posteriores dele, acho que ele captou a ideia!

 

 

 

COMENTÁRIO DO AVÔ joão amílcar: DESENHAR VAI SER FÁCIL PARA QUEM TEM UM PAI NEUROCIENTISTA

 

sábado, 15 de agosto de 2020

 

CÍCERO FERREIRA E LUCAS MACHADO

Muito oportuna a lembrança do erudito acadêmico Geraldo Magela Cruz de homenagear Cícero e Lucas, pela Academia de Medicina.

Importante homenagem a Cícero Ferreira foi feita no congraçamento intitulado FERREIRADA (1982), publicado com um texto inicial de nada menos que Pedro Nava. Foi recentemente lançada a biografia completa: CICERO FERREIRA – UM APÓSTOLO DA MEDICINA (2018), redigido por Mário Lara, para a qual forneci assessoria. Acabo de redigir o livro O CASO BERENICE DA DOENÇA DE CHAGAS, cujo capítulo final se intitula ASPECTOS BIOGRÁFICOS DE CARLOS CHAGAS, com dados do parentesco entre Cícero e Chagas, inclusive o fato de que a esposa de Cícero, Laura Chagas, é prima de Carlos. Cícero e Carlos são conterrâneos da mesma cidade de Oliveira, pois Bom Sucesso, onde nasceu Cícero, era distrito de Oliveira. Outro fato é que Nava passou a ser clínico da viúva Iris, depois do falecimento de Carlos.

Lucas Machado e sua família recebem também homenagem, que é oportuna adicionalmente diante do falecimento recente de seu brilhantíssimo sobrinho Angelo Machado. A neta do Angelim fez um vídeo sobre o avô que acabo de distribuir amplamente e peço que seus inúmeros admiradores o multipliquem mais ainda (https://ecofalante.org.br/filme/angelo).   Escrevi antes um texto sobre o Lucas, que aproveito para incluir nesta homenagem.

 

LUCAS MACHADO

Mineiríssimo hierarca da medicina brasileira

João Amílcar Salgado

                O primeiro representante dos Machado que conheci, quando cheguei a Belo Horizonte, foi Aníbal Machado. Ainda vestibulando, assisti uma conferencia dele sobre o conto como estilo literário. Foi na Faculdade de Direito, no primeiro e adorável prédio da praça Afonso Arinos, criminosamente demolido. Fiquei fascinado pela palestra dita em tom coloquial, com riqueza de dados e muito humor. Após o vestibular, um terceiranista com dificuldade de dicção e de aparência caricata foi escalado para meu monitor de histologia. O impacto daquela figura e daquela voz me fez seu admirador imediato, o que sou até hoje, além de amigo e garupeiro contumaz de sua motoca. Tratava-se do Ângelo Machado que não demorou muito para revelar-me ser sobrinho do Aníbal. Certo tempo depois, o Ângelo me levou para assistir uma palestra de sua tia Lúcia Machado sobre a cidade de Sabará. Saí dali exclamando: que família...!

                O ginecologista Lucas Machado foi o quarto dos Machado que conheci, numa palestra proferida por ele na Associação Médica sobre ética em medicina. Ali ele se abriu a perguntas e eu arrisquei a indagar: Axel Munth, em seu O LIVRO DE SAN MECHELLE, diz que estava agindo contra grave epidemia e, num convento, foi assediado por linda freira - e concluiu que situações de calamidade trazem afloramento erótico.  Lucas, em vez de reação negativa, achou foi graça e acrescentou: realmente isso é enorme desafio à ética médica, mas não tenho dados para confirmar a afirmação desse notável médico e escritor.

Mais tarde, Lucas Machado retirou um nódulo de mama em minha tia Rute.  Fui-lhe apresentado como estudante de medicina e ele pareceu não ter-se lembrado de mim. Cavalheirescamente, me introduziu na sala de cirurgia do Hospital São Lucas. Ali, do pré- ao pós-operatório, recebi dele magnífica aula sobre mastologia. E seu diagnóstico de nódulo benigno estava certo, pois, hoje, a tia Rute está viva e forte, vesprando  os cem.

Durante nossa conversa, disse-lhe de minha admiração por seu sobrinho Ângelo. Ele então me disse que foi um adolescente muito parecido com o Ângelo.  Tinha no quintal da casa paterna uma espécie de laboratório de biologia, onde “brincava” de ser cientista.  Dali  tomou a decisão de montar grande laboratório, caso conseguisse se tornar professor na faculdade de medicina. Durante seu curso médico, coincidiu haver grande entusiasmo cientifico com a endocrinologia nascente e com o lado terapêutico desta, que era a opoterapia, chegando mesmo a haver transplantes de gônadas.  

De fato, Lucas se tornou o mais admirado e mais brilhante auxiliar de Hugo Werneck. Todos, no ambiente médico da década de 30, não duvidavam de que ele seria o sucessor de Werneck, este um dos fundadores da primeira faculdade de Minas e seu primeiro professor de gineco-obstetrícia. Lucas estava pronto para cumprir seu sonho confidenciado a mim naquela nossa conversa. Acontece que o concurso para escolha do sucessor de Hugo sofreu inédita interferência: o embate entre o poderoso arcebispo de Belo Horizonte, Antônio Cabral, e o não menos poderoso político Artur Bernardes. Diante da vacância da cátedra, Bernardes, convocou Clóvis Salgado, seu conterrâneo e parente da zona-da-mata. Seu objetivo era que Clóvis acumulasse a projeção de catedrático com a liderança do bernardismo em Belo Horizonte. Já o objetivo do arcebispo era evitar que a especialidade médica muito importante para a religião caísse nas mãos de alguém que não fosse católico confiável. Lucas, que, por critérios puramente acadêmicos, seria imbatível, sucumbiu ao peso do bernardismo. Simbolicamente, ele fundaria mais tarde a faculdade “católica” de medicina.

E foi assim que o egresso da Faculdade mais vocacionado, na época, para a carreira universitária fosse privado desta no melhor momento para começar a brilhar ali como memorável sorbonnard, como diria Pedro Nava, amigo do peito de Lucas. Essa privação se repetiria anos depois com outro extraordinário vocacionado: o notável cirurgião Wilson Abrantes. Como historiador da medicina e na condição de quem dialogou com Lucas e com Clóvis, assevero que Bernardes e Cabral não tinham o direito de usar os dois eminentes ginecologistas como meros floretes em sua esgrima. Cada qual dos quatro saiu irreversivelmente atingido nessa contenda afinal ridícula.

Um terceiro contato tive com Lucas Machado. Foi na biblioteca da Faculdade, quando o ouvi dizer ao atendente que desejava levar um volume para consultar em casa. O funcionário verificou que seu nome não constava do fichário. Lucas respondeu: deve constar porque sou livre-docente, além de ex-aluno. O rapaz disse que infelizmente não podia emprestar o livro. Entrei, então, na conversa e mandei registrar o empréstimo em meu nome. O professor me abraçou agradecido e saiu com o volume e também com indisfarçável mágoa.  Numa reunião sobre o funcionamento da biblioteca, relatei o fato, e, contra minha indignação, a arrogante bibliotecária-chefe sentenciou: o funcionário é que devia estar aqui sendo elogiado e tecnicamente não concordo que livres-docentes devam constar do fichário.

Já que falei em Nava, foi emocionado que li no final de seu livro CHÃO DE FERRO a descrição da residência senhorial do capitalista Virgílio Cristiano Machado, pai do Lucas. Ficava na rua Tupis, 303, endereço onde depois fui assíduo frequentador do cine Tupi (depois Jaques). Aí  se vê que o nome Lucas foi dado ao médico em homenagem a Lucas Monteiro de Castro, barão de Congonhas, que acolheu Virgílio vindo do Paraná. Este acabou marido de Marieta, neta do barão. Os descendentes então receberam o sobrenome composto Monteiro Machado. Estes, conforme Nava, trazem ¼ de sangue mineiro, 2/4 paranaense e ¼ pernambucano. Formam, com os Nava, os Sales (de Pedro Sales) e os Chaves de Mendonça (de Aureliano Chaves) e outros, um grupo de famílias mineiríssimas, caracterizado por ilustres componentes nordestinos.

Além desta, me ficaram duas outras passagens de Nava referentes a Lucas Machado. Uma delas foi a agilidade de Lucas para escapar da polícia num tumulto. A outra foi a interferência dele junto ao diretor Hugo Werneck para que Nava não fosse expulso da Faculdade. Pedro Nava ainda estava redigindo BEIRA MAR e no Centro de Memória da Medicina nos antecipava o conteúdo do livro. Lembrou que o Hugo o expulsara da Santa Casa e o queria expulsar da Faculdade. Disse que nesse próximo volume manifestaria sua gratidão a Lucas por ter garantido seu diploma de médico. Depois da edição, Nava foi informado de que também Carleto Chagas agiu em favor dele. Lucas, ciente de que Hugo sabia de sua amizade a Nava, pediu a Carleto para somar seu apelo ao dele, para convencer o severo diretor.

Mais tarde acompanhei a turma de Lucas Viana Machado, filho do Lucas, tão fino gentleman quanto o pai, em seu final de curso. Isso foi possível porque fui colega, na república REMANSO DE HIPÓCRATES, de dois colegas de turma do jovem: Cláudio Almeida de Oliveira e Criso Duque de Resende, ambos meus sempre estimados vizinhos sulmineiros e, portanto, com inevitável parentesco entre nossas famílias - sendo o Cláudio meu ex-contemporâneo de internato marista em Varginha. Com o tempo, o Lucas-filho, nome nacional em gineco-endocrinologia, passou de dileto amigo a companheiro na luta pela qualidade do ensino médico. Tal amizade me permite o privilégio de estender a ele os sólidos laços que me unem a seu primo Ângelo, desde meus primeiros dias do curso médico.

 

O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais

 

 

Adendo:  Prezados João Vinícius e João Amílcar

Gostei muito do filme. Muito obrigado por compartilhá-lo.

Meu primeiro contato com Ângelo Machado foi por ocasião do vestibular, na prova prática de Biologia. Entrei na sala e deparei com uma cena surreal: um examinador sui generis, magérrimo, de voz fanhosa (decorrente de miopatia mitocondrial), sentado ao modo de Buda sobre uma mesa, com um esqueleto dependurado ao seu lado, cercado de plantas e bichos, munido de uma lança que trouxera da Amazônia (com a qual apontou para o microscópio para que eu identificasse uma figura de mitose). Foi uma experiência inesquecível para um jovem de 18 anos.

Grande abraço do

Luiz Otávio Savassi

 

 

 

segunda-feira, 27 de julho de 2020


DENISE CÁSSIA GARCIA - MUSA DOS HISTORIADORES DE MINAS
Quando foi publicado o livro OS GARCIA FRADES (1990), foi geral o aplauso pela contribuição à história de Minas, oferecida pela admirável pesquisa da historiadora Denise Cássia Garcia. Caso raro nessa área, o louvor foi também dirigido à beleza, à elegância e aos dotes de oradora daquela moça. Daí que foi brindada com o título de musa dos historiadores mineiros.
Antes ocorrera o constrangimento de que a lacuna açoriana na historiografia mineira tenha sido inicialmente preenchida por um biógrafo paulista. Ricardo Gumbleton Daunt é um advogado, legista, inventor e historiador, nascido na cidade de Casa Branca, SP, que ficou encantado de saber que era descendente de Garcias oriundos de Nepomuceno. Cientista que era, documentou tudo no livro O CAPITÃO DIOGO GARCIA DA CRUZ (1974). Por causa disso, propus que o Ricardo receba o título de cidadão honorário de Nepomuceno. Pelo lado paterno, descende de aristocratas normandos e irlandeses.
Infelizmente AS TRÊS ILHOAS, obra monumental de José Guimarães ficou para publicação póstuma. Assim, até surgir o livro da Denise, os historiadores mineiros, em geral descendentes de bandeirantes do centro e do sul de Minas, cuidavam apenas de sua origem, menosprezando migrantes açorianos, árabes e italianos. Grave erro, porque o lado melhor de Minas, principalmente do sul de Minas, vem da feliz amálgama de tais componentes. Para exemplificar a contribuição açoriana ao país, pouca gente sabe que são de origem açoriana os ficcionistas Machado de Assis e Luiz Vilela, o frasista Otto Lara Resende, os músicos Villa-Lobos, Nelson Freire, Wagner Tiso e os irmãos Caymmi, o sonetista Vasco de Castro Lima, os artistas Selton e Danton Melo, os juristas Pimenta da Veiga e João Batista Vilela, os infectologistas Eurico Vilela e Pedreira de Freitas, o descobridor Aloysio Resende Neves, as deputadas Maria Elvira Sales e Marta Nair Monteiro, a magnata Sinhá Junqueira, o financista Márcio Garcia Vilela, o presidente João Goulart, os governadores Hélio Garcia e Maguito Vilela, o Marquês de Valença e outros nobres do Império, bem como outros famosos. Ironicamente, Matias Cardoso de Almeida, um dos primeiros bandeirantes, era açoriano. Sintomaticamente, um romance de Machado é IAIÁ GARCIA.
Certa vez estive em Florianópolis e os médicos de lá ficaram surpresos de que eu falasse sobre a medicina tradicional dos Açores e de que me confessasse açoriano por meus ramos Correia e Arantes. Levaram-me para um passeio pela comunidade açoriana de Ribeirão da Ilha, onde encontrei muitos sobrenomes nepomucenenses. É claro que os três maiores nomes dessa gente, na Vila, são o fundador Mateus Garcia, seu primo Sete Orelhas e o Chico Frade, cujo fumo Frade foi famoso na Capital brasileira, aonde chegava com nossos queijo, toicinho, couro-de-cervo e equino. Quanto mais as pessoas cultas deste país tomem conhecimento disso tudo, maior é a importância da contribuição de Denise Garcia.



sábado, 11 de julho de 2020



OS MEIOS DE VIDA, AS INFECÇÕES E O DESTINO DO HOMEM
           
                                                                                               João Amílcar Salgado

INTRODUÇÃO

            Nosso objetivo não é resenhar aqui a história das doenças infecciosas, e sim convencer o leitor de que vale a pena dedicar-se à fascinante leitura e busca de seus diversificados aspectos, e não só para o deleite cultural pessoal, mas, sobretudo, para benefício dos pacientes e da comunidade. 
            De fato, a história das doenças infecciosas pode ser definida como apenas a sucessão de suas descobertas pela medicina oficial.  Mas pode incluir também a compreensão das relações recíprocas entre o homem e as condições socio-ambientais de infecção, ao longo dos tempos, inclusive antes do estabelecimento do homem nos diversos ambientes.  Por exemplo, a história da doença de Chagas tem sido relatada a partir de sua descoberta no começo do século 20, mas pode ser investigada em sua relação com a migração de animais placentários e marsupiais ocorrida nas Américas, por efeito da deriva dos continentes, há milhões de anos.  Também a tuberculose pode ser encontrada em múmias sudano-egípcias de 6000 anos atrás ou em lesões vertebrais de macrópodos do plioceno.
            Nesta linha, pode ser de considerável interesse verificar comparativamente os processos pelos quais as comunidades biológicas têm conseguido conviver com as infecções, independentemente do homem.  Por exemplo, a humanidade, mesmo com a ajuda da medicina, tem tido dificuldades, durante todo o tempo, para sobreviver a três ou quatro espécies de protozoário causador da malária18, enquanto os macacos  da Amazônia têm sobrevivido, com aparente sucesso até agora, a quinze ou vinte espécies de causador semelhante29.

NEM TREVAS NEM EXCESSO DE CONFIANÇA
            Bastam esses dados para evidenciar que a perspectiva histórica do conhecimento das infecções envolve muito mais do que o antigo valor decorativo que se lhe atribuia.  Aliás, o menosprezo que alguns especialistas tecnicistas dedicavam às “trevas” do passado era resultado tanto da superficialidade de seu preparo, quanto de seu entusiasmo mais deslumbrado que realista diante das “conquistas” modernas.  A melhor porção da geração recente se mostra madura, cautelosa e crítica, evitando o excesso de confiança na tecnologia médica, inclusive porque está cada vez mais consciente de que a maior parte desse entusiasmo é produzida propositadamente para o consumo forçado de produtos, entre eles os antimicrobianos.
            Os profissionais que se salientam como autoridade em determinado ramo de atividade o fazem proporcionalmente ao domínio que demonstram de seus aspectos evolutivos, inclusive como base para ampliar conhecimentos e para aplicá-los, de acordo com as circunstâncias, em benefício da sociedade.  No caso das doenças infecciosas isso é mais verdade ainda.  Os melhores clínicos e pesquisadores há muito já não discutem que o saber referente à história das infecções  é maneira agradável de aprofundar conhecimentos, consubstanciar condutas clínicas e alargar os horizontes da investigação científica.  Aí a própria história dos cuidados  com a infecção é mestra para os clínicos, pois a humanidade descobriu como prevenir (tabus, quarentena, imunização) muito tempo antes de saber diagnosticar etiologicamente e tratar farmacoquimicamente as infecções.
            Com a maior velocidade, precisão e disponibilidade da informação histórica, constitui hoje estimulante e esclarecedor exercício corrigir pontos de vista tendenciosos veiculados apressadamente, quer para prestigiar países, pessoas ou correntes de pensamento médico, quer por simples desinformação. Eloqüente ilustração deste jogo da verdade foi a cena impressionante, vista por milhões na televisão, da retratação afinal havida pela falsificação da descoberta do virus da imunodeficiência adquirida.

MEMÓRIA TECNOLÓGICA
            Basta ser inicialmente atraído pelos aspectos históricos de determinado assunto que o indivíduo - seja ele cientista, professor, estudante ou qualquer cidadão - passe daí em diante a ser zeloso preservador de objetos, documentos e depoimentos.  Os documentos e depoimentos são hoje muito fáceis de gravar e reproduzir.  Já os objetos necessitam de cuidado especial, principalmente para que constituam organizadamente o que denominamos memória tecnológica.  Por exemplo, os estudantes de medicina, odontologia e enfermagem, ao serem treinados em hospital sofisticado, aprendem a manejar equipamentos automáticos e até robóticos de esterilização, deixando de tomar conhecimento de equipamentos em desuso, acionados eletricamente, a vapor ou ao fogão.  Se eventualmente, em etapa posterior do curso ou no exercício profissional, forem forçados pelas circunstâncias a regredir a estes recursos obsoletos, mas no caso necessários e eficazes, deverão para isso estarem preparados, por meio do contato com a memória tecnológica, propiciada pela preservação não só de todos os exemplares possíveis desses equipamentos, mas preservados  em pleno funcionamento.  Os currículos dos cursos na área da saúde devem, pois, dispor coerentemente de um centro de memória geral, que deverá incluir a memória tecnológica a ser aproveitada, quando necessário, em ambulatórios periféricos ou estágios rurais41.

A HISTÓRIA COMO MESTRA DOS CLÍNICOS
            A crescente consciência da necessidade de preservação do patrimônio ecológico e histórico das comunidades mostra que os currículos, os departamentos, as disciplinas e as aulas nos quais não se valorize tal patrimônio estarão ultrapassados.  Assim, os currículos na área da saúde não só devem incluir disciplinas, pelo menos optativas, da história respectiva, mas devem incluir os aspectos históricos entre os objetivos educacionais em cada disciplina, reciclando-se se necessário os docentes para isso.  Cada unidade e a universidade devem ter um acervo sempre em expansão, inclusive porque com ele se evitam aulas expositivas desinteressantes, que serão então substituídas pela participação estudantil na busca e preservação dos bens culturais.  No curso de História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) verificamos a admirada surpresa dos estudantes diante do convite para participarem do grupo que investigava as relações entre a tuberculose da coluna vertebral de que se supõe sofria o padre José de Anchieta e a saúde dos brasileiros catequizados por ele: era um desafio para aprender clínica, ecologia humana e uma História do Brasil com sabor oposto ao do insípido curso colegial.  A mesma tuberculose seria retomada mais tarde quando se tratou de relacionar a fundação da Faculdade de Medicina da UFMG  e o prestígio terapêutico do clima de Belo Horizonte, o qual atraia pacientes, terapeutas e também médicos acometidos pela infecção, entre eles fundadores da Faculdade41.  Por sua vez, os manuais e tratados, gerais e especializados, devem voltar a incluir capítulos e parágrafos de introdução histórica.

MEMÓRIA CLÍNICA E CULTURA
            Outra saudável e fecunda prática que o cientificismo tecnicista tem impedido de ser exercida é o encontro das doenças infecciosas na literatura e nas obras de arte.  O profissional de saúde e, obrigatoriamente, o infectólogo devem ser estimulados a encontrar na criação artística o impacto das infecções sobre o homem, desde o folclore, a mitologia e a Bíblia, até a ficção, a escultura, a pintura, a  música, o teatro e o cinema (exemplos de filmes: A Dama das Camélias, Paixão dos Fortes,  Se Todos os Homens do Mundo, Ben Hur, O Enigma de Andrômeda, Epidemia; e, na televisão, Floradas na Serra).
            De fato, o futuro profissional terá melhor notícia de doenças não mais incidentes, hoje raras ou menos graves ou, ainda, agora recrudescentes -  não nos livros técnicos, mas ao apreciar obras de arte, como, por exemplo,  O Livro de San Michele de Axel Munthe32, Montanha Mágica e Morte em Veneza ambos de Thomas Mann25,26, Grande Sertão -Veredas de Guimarães Rosa38 e Amor em Tempos de Cólera de Garcia Marques27, ou então as peças teatrais Um Inimigo do Povo de Ibsen23 e O Dilema do Médico de Bernard Shaw43.  O clima real de uma epidemia de varíola no Brasil será  melhor captado em Teresa Batista Cansada de Guerra de Jorge Amado2 ou o da pandemia gripal de 1918 em Chão de Ferro de Pedro Nava33.  Nesse sentido, entretanto, a obra-prima (mesmo competindo com os citados e ainda com Tucídides46, Bocácio5 e Defoe16) continuará sendo A Peste de Albert Camus9, magistral descrição da peste bubônica por autor não-médico.
            Outra relação pode ser buscada na própria biografia dos artistas, como no caso de Ticiano, que pintou A Coroação de São Marcos como ex-voto  pela peste de 1510, ou como no caso do Aleijadinho, para cujo aleijão causas infecciosas foram levantadas.  Outro exemplo é o de Shakespeare, cuja carreira de teatrólogo foi decisivamente influenciada pelo fechamento dos teatros londrinos durante a peste de 1592-93.
            Em 1976, no Seminário de Integração Vertical do Currículo  de Medicina da UFMG, foi solicitado aos participantes, entre eles cientistas do ciclo básico e vários com pós-graduação nos EUA, responder se haviam lido o livro Arrowsmith de Sinclair Lewis24.  As respostas foram negativas e apenas um professor de bioquímica tinha ouvido falar desta obra, que, tendo como personagem central um pesquisador na área das doenças infecciosas, analisa criticamente o cientista moderno e sua ética ambivalente.

CONTRAMEMÓRIA DAS MEDICINAS OFICIAL E COLONIAL
            Representantes da medicina oficial no Brasil chegaram a doutrinar que neste país não ocorria a escarlatina.  A razão do equívoco reside no fato de que, em uma comunidade multirracial, a pessoa, para ficar escarlate ao sofrer a escarlatina, tem de ter a pele branca, a menos que o médico seja tão competente que diagnostique a infecção por outros sinais, ou pelo menos a posteriori, diante da descamação cutânea em negros e mulatos.
            Viezes como esse explicam vários acontecimentos da história da medicina, como, por exemplo, denominar de exótica a chamada patologia tropical.  Ela foi assim considerada pelos países colonialistas, inclusive aquelas infecções que, existentes lá e cá, desapareceram lá50 e persistiram cá por persistir aqui a pobreza.  Ainda no século 15, quando os portugueses começaram a explorar os primeiros arquipélagos do Atlântico, no contorno da África, alguém proposital ou ilusoriamente alegou que o óleo de tartaruga era soberano contra a lepra.  Com isso aconteceram três coisas: 1) a metrópole  exportou seus leprosos; 2) as colônias infectaram-se nas condições imunitárias em que se achavam; e 3) as tartarugas foram dizimadas.
            Mesmo com todos esses fatos podendo ser percebidos, as escolas médicas ainda insistem em manter aqui cadeiras, disciplinas ou cursos de Medicina Tropical.  É o mesmo que confessar que os cursos e disciplinas restantes  não tratam da realidade local.  O mais inacreditável ocorre quando, para fielmente copiar a metrópole colonial, tais cursos ou disciplinas se referem a pacientes adultos, e isso em países com grande proporção  de crianças, que, nesta idade e por serem desnutridas, são alvo compreensível, como se verá, de infecções, inclusive múltiplas.

HIATO ENTRE DESCOBERTA E BENEFÍCIO
            Outro fator de consciência crítica que a história da medicina nos oferece é o fenômeno da dissociação entre descoberta e uso clínico.  De fato, do modo jornalístico como se costuma relatar o progresso médico fica parecendo que os clínicos levaram poucos dias, em vez de séculos, para beneficiar seus pacientes com, por exemplo, a descoberta da circulação do sangue.  No caso das infecções, significativa foi a afirmação do médico cubano Carlos Finlay42, em 1881, de que o mosquito é o transmissor da febre amarela, confirmando observação anterior feita na Venezuela, em 1854, por outro médico antilhano, Daniel Beauperthy29.  Somente cerca de vinte anos depois, no início do século 20, é que essa descoberta beneficiou as populações, inclusive no Brasil, pois o esnobismo  científico se negava a admitir revelação tão importante feita por um simples clínico nativo.  Em 1903, em sua tese inaugural, o doutorando Carlos Chagas12 estampava o pensamento estabelecido:  “Da febre amarela a terapêutica é ainda uma utopia; está limitada a intervenção médica  nessa terrível moléstia ao combate, o mais das vezes improfícuo, dos sintomas, e isso porque a etiopatogenia dela é ainda completamente desconhecida”.
            As próprias verificações de Pasteur, ainda mais um não-médico, não tinham sido universalmente aceitas após o início do século 20.  Afonso Pavie, um ex-estudante de medicina francês, ao desenvolver a planta da Santa Casa da cidade de Itamarandiba, Minas Gerais, em 1910, alegava basear-se em Pasteur para provar que este tinha razão quanto aos meios de se prevenirem as infecções.
            Em Belo Horizonte, a 250 km de Lassance, onde foi descoberta a doença de Chagas, e em 1929, vinte anos após a descoberta, foi publicado um artigo sobre as arritmias cardíacas em pacientes ancilostomóticos, sem a menor suposição de que fossem chagásicos3.  Como não se trata de incompetência, pois o autor era dos maiores clínicos locais, a explicação pode ser encontrada na campanha de descrédito que a medicina oficial desencadeara antes contra Carlos Chagas, levando os clínicos a nem sequer pensar na tripanossomose entre hipóteses diagnósticas.  O silêncio assim determinado levou os argentinos, por seu lado, a reivindicar para Salvador Mazza uma segunda descoberta da doença, na década de trinta.  Foi, pois, a tradicional rivalidade entre Brasil e Argentina, e não fatos científicos, que aproximou nossos clínicos do diagnóstico da doença de Chagas, ou seja, nos aproximou de nossa própria verdade nosológica.
            Já o caso do diagnóstico seletivo da estrongiloidose é da maior atualidade.  Para ele, Morais, em 1948, criou a adaptação do método de Baermann ao exame das fezes.  Vinte anos depois (e ainda até hoje, em geral), os clínicos continuaram a encarar a infecção como rara, enquanto, a partir daquela inovação, sabe-se que sua prevalência pode chegar a quase metade da maioria de nossa população, equívoco que leva suas vítimas a serem tratadas como pacientes neuróticos ou ulcerosos35.
            Mais três exemplos são o DDT, descoberto em 1875 e só usado depois de 1940, a sulfanilamida, descoberta em 1908 e só usada clinicamente cerca de trinta anos depois, e a bactéria relacionada à úlcera péptica, descoberta em 1906 e só levada a sério em 1983.

A VERDADEIRA RELAÇÃO ENTRE INFECÇÃO E SOCIEDADE
            A doença do sono constitui um dos exemplos mais interessantes da influência de uma infecção sobre aspectos desde a ecologia até a cultura de determinado povo.  É que o parasita causador dessa infecção permite a sobrevivência dos rebanhos de herbívoros selvagens, mas não poupa o homem, impedindo que este dizimasse aqueles, como o fez onde não ocorria a doença.  Por outro lado, a impotência diante da peculiar morbimortalidade dessa tripanossomose africana provavelmente está relacionada com o sistema médico-religioso da cultura Azande, caracteristicamente estruturado em bruxaria, oráculos e magia.  Talvez o caso mais radical de impacto de uma infecção sobre a população seja a seleção genética resultante da simbiose entre a malária e a drepanocitose1.
            Além do plano ecológico e antropológico, podemos verificar interações entre fatos econômico-sociais e infecção.  Embora os historiadores tradicionais tenham feito parecer que a história humana se restringia à história das guerras entre os povos, hoje há a consciência da determinação social desses e de todos os demais acontecimentos.  Assim, os meios de sobrevivência, sejam eles econômicos em senso estrito, sejam econômicos em senso lato, incluindo-se aí a economia biológica, são hoje objeto da atenção mais lúcida e ampla dos historiadores.
            Tomemos o caso das populações mais primitivas que habitavam a floresta úmida: o número de indivíduos e o nível de sua organização social eram coerentes com a sobrevida dos grupos, inclusive às infecções peculiares a seu ambiente e a sua alimentação.  Quando tiveram necessidade econômica de partir da floresta para a savana, além da adaptação no plano social, tiveram que se adaptar ao impacto de novas infecções decorrentes da nova fonte alimentar.  Quando, nesse mesmo processo, foram levados a ambientes cada vez mais frios pela atração econômica da caça aí abundante, exigiu-se a criação de procedimentos contra o frio.  Estes, a princípio, implicavam o contato pele-a-pele, junto a fogueiras noturnas, e depois, com a evolução do vestuário e da habitação, decorrente inclusive da escassez progressiva de lenha, fizeram da aglomeração dos micro-ambientes verdadeiro contato mucosa-a-mucosa.  É possível que os próprios agentes infecciosos tenham acompanhado o processo e curiosamente até dentro do mesmo gênero.  Por exemplo, uma micobactéria de veiculação muco-cutânea (lepra) seria substituída por outra estritamente mucosa (tuberculose), o mesmo ocorrendo com treponemas (respectivamente a bouba e a sífilis)21,29. 
            Mesmo no desfecho das guerras, ocorreram outros acontecimentos tão ou mais importantes do que a potência de arcabuzes e canhões.  Quando Cortez, apoiado em poucos espanhóis, subjugou a evoluída civilização asteca, dotada de numeroso exército, o sucesso se deveu menos à superioridade da arma de fogo em mãos européias e mais a uma epidemia de varíola, devastadora para os indígenas e menos mórbida para aqueles.  Ironicamente, Cortez, mais tarde, para tratar de sério ferimento na cabeça, provavelmente infectado, sofrido na batalha de Otumba, teve de recorrer desesperadamente a um pajé de Tlascala, que o curou com admirada rapidez.  A febre amarela da ilha de São Domingos pode ter levado Napoleão a vender a Luisiana aos EUA e pode também ter enfraquecido seus recursos militares, fazendo fracassar o coroamento de suas conquistas.
            Não se trata de ficarmos imaginando como seriam os EUA parcialmente franceses ou Napoleão vitorioso sobre Moscou e Londres, caso a história humana tivesse sido previamente autoclavada.  Trata-se apenas de afastar o ocultamento das verdades, quaisquer que sejam.  Devemos reconhecer, no entanto, que erro igual ao de censurar as pestes entre as guerras cometeríamos se nos deixássemos contaminar pela paranóia de querer narrar o passado como se ele fosse uma conspiração de micróbios contra o homem.
            O episódio de Cortez com os astecas mostra que os brancos devem ter aprendido muito cedo a maneira biológica de praticar aquilo que viria a ser um dos maiores genocídios da história e que resultou no extermínio de tribos e tribos, do Polo Norte ao Polo Sul.  Parece que o extermínio por arma de fogo ocorrido na América do Norte e no cone sul da América do Sul (inclusive por brasileiros na destruição das reduções jesuíticas) foi feito quando a expropriação do espaço econômico era mais urgente.  Nos demais lugares bastou incluir roupas de variolosos junto a presentes deixados no mato para serem recolhidos pelos índios.  E o procedimento se prolonga a nossos dias na Amazônia, onde por avião é fácil levar pessoas gripadas para matar tribos inteiras a cusparadas.  E isso não só quanto a doenças epidêmicas, pois também se disse que o Brasil se sifilizou antes de se civilizar (quando, também, a primeira terapia da blenorragia era desvirginar meninas, passando adiante o mal) - e mais ou menos assim ocorreu com as demais endemias.
            Seria errôneo pensar que importamos apenas os agentes infecciosos das diversas doenças: vieram também os modismos de tratamento ou as atitudes substitutivas frente à impotência terapêutica.  No século 19 acreditava-se que a humanidade estava chegando a um apogeu técnico (de um modo mais ingênuo e menos proposital que aquele difundido presentemente), o que culminou na  concepção vitoriana das coisas, na paz britânica, na era da certeza ou belle époque.  Pois bem, tal cosmovisão contrastava com a tuberculose endêmica, que não poupava a elite dirigente (século das luzes e da tuberculose).  Então foi necessário incluir aí a idéia de que a tuberculose  não só era bela como afrodisíaca.  E a beauté phtisique da dama das camélias (na vida real Marie Duplessis): magreza, palidez de fundo, rubor febril e cílios alongados - em vez de conjunto de sinais mórbidos, passou a ser indicador estético, assim como o orgasmo em estado febril passou a prazer desejado e precioso.  A camélia (Camelia japonica) é flor caracteristicamente sem perfume, própria para símbolo nesse culto a mulheres doentias.
            Ficcionistas e poetas brasileiros adotaram e viveram tais padrões11,31 (Castro Alves, às voltas com a infecção,  ligou-se à própria intérprete de A Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho17), inclusive tardiamente (como se lê no romance O Moleque Ricardo de Lins do Rego37, de 1935).  O charme antinômico de eros e tanatos da tuberculose foi celebrizado por Manuel Bandeira, às vésperas de ser salvo pela estreptomicina, no poema Pneumotórax4, que, por sinal, menciona o tango argentino, outra estética fundada na mesma antinomia e provavelmente na mesma doença (ver também a versão operística do tema cameliano na criação de Verdi,  La Traviata, de 1850). 
            Os sanatórios para tuberculosos  em clima de altitude foram a primeira indústria de serviços médicos moderna, desde o final do século 19, com seu auge entre as guerras mundiais e glamurizada na Suiça e também no Brasil (Belo Horizonte, Campos do Jordão, Santos Dumont).

ANAMNESE DAS INFECÇÕES DA HUMANIDADE
            Como foi dito, a cultura tradicional minimizou ou ignorou o significado da relação ente as infecções e a história.  Quem primeiro chamou a atenção para a importância histórica delas  foram os microbiologistas cultos, que, no entanto, deixaram de fazer estudo mais abrangente, em virtude de não serem historiadores.  A obra clássica desse tipo é a do patriarca da microbiologia norte-americana Hans Zinsser, intitulada RATS, LICE AND HISTORY53, de 1935, sendo justo lembrar também Charles Nicolle, que, em 1930, já falava de infecções inaparentes e profetizava as doenças do futuro.  O estudo, também já clássico, do tema, feito abrangentemente por historiador, é o livro de William H. McNeil, PLAGUES AND PEOPLES29, publicado em 1976.  Nele o autor propõe cinco períodos da história, resultantes de mudanças econômicas e ecológicas, das quais decorreram comportamentos característicos da infecção humana: 1) antes de 500 aC; 2) de 500 aC a 1200; 3) de 1200 a 1500; 4) de 1500 a 1700; e de 1700 até o presente.

ANTES DE 500 aC: O HOMEM SE DOMESTICA E ESTABILIZA A INFECÇÃO
            Nesse período, observam-se a crescente mobilidade do homem para diversificadas paisagens e, ao mesmo tempo, progressiva urbanização.  Ocorre a domesticação de plantas e animais, bem como a correspondente fixação do contato peridoméstico e doméstico com os predadores destes.  Por causa da crescente estocagem e abundância dos mesmos, dá-se a predação do homem pelo homem.  Todas essas condições trazem a correspondente domesticação de infecções, até hoje incorporadas ao destino humano.  Na conquista da agricultura, tivemos uma primeira etapa em que predominou o preparo da colheita pelo fogo e que pode ser relacionado à intensificação da malária, inclusive o desenvolvimento de mosquitos com preferência pelo homem.  Posteriormente, o desenvolvimento da irrigação, ligada às grandes civilizações dos vales de grandes rios,  pode ser relacionado ao advento da esquistossomose no Oriente e na África, inclusive atestado pela verificação dessa parasitose em múmias datadas de mais de mil anos aC.  Aqui, a institucionalização do parasitismo do homem pelo homem (escravidão) pode ser relacionada a uma espécie de simbiose resultante de o homem parasitar o homem parasitado pelo verme.  É que a infecção, debilitando a população de pés molhados, facilitava o domínio dela por gente que mantinha secos seus pés e assim usufruía mais e  melhor o trigo e o pão produzidos com aqueles - tal como se lê na Bíblia no caso de hebreus escravizados no Egito, sendo, inclusive, simbólico que seu libertador, Moisés, tenha sido recolhido do rio.
            Aqui vale lembrar que o impacto das terapias modernas pode levar-nos a esquecer que o convívio inicial do homem e de seus antepassados com as infecções se deu concomitantemente ao desenvolvimento de diversos modos de proteção contra elas, alguns dos quais até hoje de grande validade.
            As repulsas olfativa, gustativa e visual do homem a determinados odores, principalmente putrefativos, e sabores, bem como a determinados objetos, principalmente fezes e cadáveres (de cor amarela), não ocorrem evidentemente entre os abutres e as hienas, os quais sobrevivem exatamente graças à atração que sentem pelo aspecto,  o paladar e o odor da carniça.  Embora o homem possa ter sido comensal desses animais, quando ainda não desenvolvera suas habilidades de caça e com o fogo, sua evolução posterior se deu no sentido da ingestão de carne fresca crua ou assada, deixando de ser adaptado ao consumo de carne putrefata.  Assim a repulsa a objetos ou ambientes ofensivos ao olfato, ao paladar e à visão parece ter sido um dos elementos primordiais da prevenção de infecções no homem.  Ela inclui o reflexo da náusea e está inscrita nas expressões  asco, cheiro nauseabundo e aspecto disforme, desfigurante ou asqueroso de objetos e ambientes.  O próprio termo infeccionar, ou, anteriormente, inficcionar, está relacionado a mau cheiro, como atesta o próprio poeta Camões (morto durante a peste de 1579-81, em Lisboa), aludindo à lesão das gengivas numa doença, por sinal, não infecciosa, o escorbuto, em “Os Lusíadas” (canto V-82)8:

            “Apodrecia c’um fétido e bruto
            Cheiro que o ar vizinho inficcionava.”

            Essa deve ter sido a base primitiva da teoria miasmática, que relaciona as infecções a miasmas - transmissores aéreos de doenças emanados de putrefações.  Também é a base para o uso de substâncias aromáticas e/ou coloridas para neutralizar infecções, o que veio revelar-se nada contraditório, do ponto de vista microbiológico, pois várias substâncias aromáticas e vários corantes, ao longo do tempo, foram selecionados como eficazes e usados até o presente na qualidade de germicidas ou quimioterápicos, como os bálsamos, o enxofre (usado desde Hipócrates para “fumigar” contra miasmas), a cal, o iodo, o azul de metileno, a violeta de genciana, o mercúrio-cromo, o oxigênio nascente (água oxigenada, permanganato) e os derivados de azocorantes (sulfas).  Estes últimos fizeram da indústria farmacêutica um prolongamento da indústria de cores para tecidos. Colateralmente veio o uso dos odorantes com outros fins (de unção, eróticos), como o incenso e a mirra, os perfumes modernos e os desodorantes atuais.  Nossos índios já sabiam disso há muito, pois colorir o corpo com urucum (vermelho) e genipapo (preto), além de enfeite, era e é arma contra ectoparasitas, principalmente mosquitos - assim como as plantas cheirosas são anti-pragas vegetais.  Os elementos da história dos perfumes, levantados por Corbin15  (e levados polemicamente para a ficção) não podem ser dissociados da história das infecções, especialmente por camuflarem a fronteira entre o limpo e o sujo49.
            No lado do aspecto repulsivo, vamos encontrar no panteon afrobrasileiro47 um dos orixás mais significativos, que é Omulu, uma das formas de Xampaná, divindade primitiva, que rege as doenças, principalmente epidêmicas (Cf13).
            No Daomé (Benin), origem do culto a Omulu, a varíola era temida, mas provavelmente com tendência a aí endemizar-se e infantilizar-se.  É ilustrativo que Omulu-jovem, chamado Obaluaê, seja também caracterizado como o orixá da varíola, a qual, além da repulsa das pústulas, trazia cicatrizes cutâneas definitivas.  Omulu ou Obaluaê sempre aparece nos terreiros coberto de palha-da-costa, sendo vedado ver-se principalmente seu rosto, e sua dança mimetiza comportamento febril, astênico ou convulsivo.  Omulu e outras divindades análogas (Sacapatá, Sapatói, Quicongo, Iximbó, Igui) de outras culturas africanas, além da cultura iorubá (que o incorporou) e a daomeana original, é o arquétipo da vítima de pestes e do correspondente abandono desta pelos poderes superiores, e que, apesar disso, sobrevive mesmo deformada.  No reino de Benin havia o infanticídio de crianças defeituosas, que eram lançadas no lago.  É interessante que uma das lendas de Omulu diz que quando sua mãe Naná verificou ser o filho leproso foi por ela abandonado.  Este foi recolhido por Iemanjá, mas Omulu, ao crescer, rejeitou a mãe adotiva, por causa da irreversibilidade de sua desgraça - indicativo das bases da institucionalização do isolamento sem ser necessário matar o doente.  Tal superação do infanticídio, nos grupamentos mais estáveis, guarda semelhança com o episódio de Isaac na Bíblia, coincidentemente numa família conviva de escrava africana.
            Entre as substâncias antiinfecciosas, das mais primitivas são o vinho, o vinagre e o calcáreo, já que a Bíblia prescreve o reboco contra a “lepra” das casas (Lev 14: 33-48). Antigas leis persas prescreviam vasilhame de cobre brilhante para a água potável. Os índios da Flórida já dispunham há milhares de anos de um remédio contra vírus, o podofílio mandraque. A descoberta da destilação pelo alquimista árabe Jabir ibn Hayyan, no século 9, fez do álcool concentrado uma panacéia cultivada até hoje. O cloro, substância aromática ainda em uso, foi a arma histórica com que Semmelweiss, demonstrou, nos primórdios da era microbiológica (1851), a transmissibilidade manual da febre puerperal.  O fenol, derivado do alcatrão de madeira (muito antes presente na defumação de alimentos), foi outro  instrumento histórico, com o qual Lister, com base em Pasteur, comprovou a eficácia da antissepsia cirúrgica, em 1867 (o impacto desta levou Ogston a queimar o grande dístico que os pacientes liam ao entrar na sala cirúrgica: Prepara-te para encontrar Teu Deus) .
            De todos esses recursos, entretanto, a primeira arma realmente poderosa criada pelo homem contra animais, inclusive os micróbios, é talvez a mais antiga, datando de 750 000 anos atrás, quando foi descoberto o uso controlado do fogo.  Desde então, vários desenvolvimentos podem ser encarados como domínio sobre agentes de infecção.  Há cerca de 10 000 anos, quando o catador-caçador passou a produtor de alimentos, e mesmo antes, surgiram técnicas de estocagem que supõem a ação contra macro- e microrganismos predadores dos excedentes, bem como os tabus alimentares, associados a determinadas doenças.  O tabu alimentar mais conhecido é a proibição religiosa da carne de porco, meio de prevenir a infecção por triquinela e tênia.
            Ao lado de tabus, lendas e prescrições primitivas, e datando também de antes de 10 000 anos atrás,  desenvolveram-se técnicas de conservação de alimentos que constituem extraordinária vitória antimicrobiana.  Preservar carne imersa em gordura é exemplo de hoje entre índios da Amazônia e de uso nas fazendas brasileiras.  Técnicas como essa e como a dessecação, a defumação e a salgação de alimentos rapidamente perecíveis representam enorme triunfo para os que com elas se libertaram da procura diária do alimento, inclusive permitindo novo uso do tempo e novo tipo de mobilidade das populações, antes impossíveis.  O mesmo pode ser dito dos ácidos contidos no vinho azedo, no leite azedo e no próprio suor, cuja ação antimicrobiana se dá seja na preservação alimentar (invenção da coalhada, do queijo, da manteiga, do picles e da carne conservada em leite azedo), seja no uso médico do ácido undecilênico contra micoses.  Tudo isso culminou com o advento dos alimentos enlatados em 1809. 
            Entre os líbios primitivos  (célebres pelo hábito de se banharem freqüentemente), os egípcios (lavagem externa e interna do corpo) e os caldeus, desenvolveu-se a prática da circuncisão (provavelmente profilática de infecções mutilantes, subseqüentes ao trauma do vento arenoso do deserto, em meninos nus) - que, entre os judeus, passou de cirúrgica a litúrgica.
            Segundo a Bíblia, o patriarca Abraão recebeu a seguinte prescrição (Gen 17: 10-14): “...Todo varão entre vós será circuncidado.  Cortareis a carne de vosso prepúcio e isso será o sinal de minha aliança entre mim e vós.  Todo menino no oitavo dia de seu nascimento será circuncidado entre vós nas gerações futuras, tanto o que nascer em casa como o que comprardes a preço de dinheiro de um estrangeiro qualquer e que não for de vossa raça.  Circuncidar-se-á tanto o varão nascido na casa como aquele que for comprado a preço de dinheiro.  Assim será marcado em vossa carne o sinal de minha aliança perpétua.  O varão incircunciso, do qual não se tenha cortado a carne do prepúcio, será exterminado de seu povo, por ter violado minha aliança.”
            Além da prevenção de infecções urogenitais no próprio varão e em sua parceira sexual, a circuncisão tem sido apontada como preventiva de neoplasmas em ambos os sexos, inclusive relacionados a virus. É digno de admiração que os dois ritos batismais, do Velho e do Novo Testamento - a circuncisão e a imersão n’água, administrados como sinal de aliança, penitência ou mudança de vida - sejam armas (e não apenas símbolos sagrados) contra infecções.
            Ainda do Torah, que é o núcleo primitivo da Bíblia, constam quatro prescrições mosáicas relativas às infecções: o holocausto, queima total do indivíduo sacrificado, na verdade uma celebração do poder purificador do fogo (Lev 1: 1-17), a proibição alimentar, que envolve não só a carne de porco, mas a de outros animais terrestres, aquáticos e aéreos, inclusive a carne de predadores carnívoros, interpretáveis como fonte de infecções graves (Lev 1: 1-47) (Cf Isa 1: 17-18), o estigma da lepra, que é tratada ao lado de outras duas infecções, a blenorragia e a tinha (Lev 13: 1-59, 14: 1-55, 15: 1-18) e os banhos.
            O banimento do leproso diz textualmente (Lev 13: 45-46): “Todo homem atingido da lepra terá suas vestes rasgadas e a cabeça descoberta, cobrirá a barba e clamará: Impuro!  Enquanto durar o seu mal ele será impuro.  É impuro; habitará só, e a sua habitação será fora do acampamento.”  Como se observa, admitia-se sabiamente a curabilidade, pois o diagnóstico e a eventual alta do paciente dependiam do critério do levita a quem devia apresentar-se, o que foi obedecido inclusive por Jesus, quando curou um leproso (Mat 8: 1-4).  A prova de que o ostracismo bíblico era rigoroso está na segregação de um dos reis de Israel, Josias (II Reis 15: 5-7, II Crônicas 26: 16-21), vitimado pela infecção.  Está implícito que o banimento era um mal necessário, devendo incluir, por segurança, casos de lesões falsamente hansenianas que, quando revertidas, permitiam ao sacerdote anistiar o banido.  Tal dispositivo era mais sábio em sua origem, pois o nomadismo ecologicamente confere melhor proteção contra infecções do que o sedentarismo, impedindo a fixação de cadeias epidemiológicas e propiciando a imunização por socialização dosada (outro meio era exibir o doente aos passantes para receber sugestões terapêuticas).  Quando os judeus, de dominados passaram a aliados dos dominadores e se urbanizaram, com a construção do templo de Salomão (1000 aC) - o resultado foi aglomerar os segregados e os pacientes de falsa lepra  se contaminavam junto aos casos verdadeiros.  Mais tarde os lazaretos medievais, ao promiscuir, por exemplo, hansenianos e boubáticos, levaram à mútua contaminação dos internos, de tal modo que um dos efeitos colaterais da Morte Negra no século 14 foi o esvaziamento quase total dos leprosários, como uma espécie de equivalente mais ou menos involuntário de solução final, neste caso contra os leprosos.
            É provável que do exame feito pelo sacerdote a cada sete dias, como chance para ser feito o diagnóstico diferencial - por exemplo, explicitamente, entre a lepra, a tinha de cabelo e barba e a calva vulgar (Lev 14: 29-44) - tenha surgido, com o tempo, a observação de que seis períodos de sete dias eram média segura e suficiente não só para esse esclarecimento, mas, no caso de outras infecções, para a cura ou a morte dos empestados - e daí a quarentena.
            No caso da blenorragia é dito expressamente: “A impureza está no fluxo: quer sua carne deixe correr o fluxo, quer o retenha, há impureza.  Qualquer cama em que se deitar aquele que tem uma gonorréia, bem como qualquer cadeira em que ele se sentar será impura.  Quem tocar sua cama, lavará suas vestes, banhar-se-á em água, e ficará impuro até a tarde” (Lev 15: 3-5).  “Todo recipiente de terra tocado por esse homem será quebrado e todo vaso de madeira será lavado com água.  Quando se tiver purificado ... contará sete dias ... lavará suas vestes, banhar-se-á em água corrente e será puro” (Lev 15: 12-15).  É digno de nota que as estigmatizações seguintes no texto sagrado sobre o derramamento seminal e a menstruação podem ser encaradas como sábia medida de segurança diante da natural dificuldade, entre aqueles a quem se dirigia o livro, para diferençar fluxos fisiológicos de corrimentos infecciosos.
            É notável que a valorização do banho da pessoa, das vestes e dos utensílios, entre um povo de país árido, sendo tão antiga e no próprio texto matricial do cristianismo, não tenha impedido sua desvalorização na teocracia medieval.  Daí o escândalo dos europeus que chegaram a acusar de libidinosos os ameríndios só por causa de seu sadio hábito de banho diário ou de até doze vezes ao dia entre as mulheres (em vez de semanal, mensal ou anual, como chegou a ser a prática na Europa, inclusive gerando a já citada indústria de perfumes).
            Isso mostra que, na mesma tradição religiosa, a infecção pode ser encarada de modo distinto.  Assim, as prescrições do Torah representam provável confluência naturalística entre a mais primitiva medicina popular mesopotâmica e egípcia - enquanto no próprio Torah e no resto da Bíblia os fenômenos epidêmicos incontroláveis são interpretados mágica, messiânica ou apocalipticamente.  Vão das pragas de Moisés contra o Faraó (Ex 8: 16-32, 9: 1- 35) e das advertências de Jeremias, incluindo o nexo epidemiológico entre guerra, peste, fome e morte (Jer 34:17-22), e à retomada deste, representado nos quatro cavaleiros de João Evangelista, dos quais o amarelo era aparentemente a peste (Apoc 6: 1-8).
            Entre as pestes bíblicas, pelo menos uma se repetiu historicamente no século 20.  Em 701 aC, o rei assírio Senaqueribe sitiou Jerusalém e em seu ultimato a Ezequias, rei dos judeus desarmados, alegou que o Deus destes nada poderia contra suas armas.  O profeta Isaias tranqüilizou seus compatriotas e, no ataque à cidade, os assírios amanheceram mortos (Isa 36: 1-38).  Em 1918, na época de Lawrence da Arábia, os soldados ingleses, após conquistarem a região e acamparem nas margens do Jordão, subiram a Jerusalém e também amanheceram mortos por malária, possivelmente falciparum, 26 séculos depois dos assírios.  Outro ato médico de Isaias (Isa 38: 1-32) foi curar Ezequias de grave ulceração cutânea (antraz?, leishmaniose?) com cataplasma de figo.
            De qualquer modo, o banho higiênico primitivo, em água corrente ou não, como para a gonorréia bíblica; a perda do hábito do banho, como na Europa; a disponibilidade de água para beber  e lavar em centros de peregrinação, como Meca; ou o banho ritual, como no Ganges - têm muito a ver com a endemização e com a epidemização de infecções.  Em nossos dias, no Brasil, a chegada da esquistossomose ao vale do Paraíba e ao sul de Minas Gerais está relacionada não tanto à falta de redes sanitárias, mas às peregrinações ao santuário de Aparecida do Norte, associadas à atração migratória das indústrias vizinhas.  Só mesmo a perspectiva histórica poderia relacionar a descoberta milagrosa de uma imagem num rio com a emergência, séculos depois, de determinada infecção ribeirinha.  É quase certo que em futuro próximo a introdução da moto-serra no Brasil, a partir de 1970 (no contexto da construção de rodovias na Amazônia), terá mais importância do que qualquer outro fato na interpretação epidemiológica de  endemias e epidemias recrudescentes, inclusive urbanizadas, como leishmanioses, malária, doença de Chagas, dengue e febre amarela.  A malária urbana no Peru, o calazar urbano em Belo Horizonte e a pandemia de dengue no Brasil são os arautos confirmatórios dessa previsão.
            Não é só na Bíblia ou nas mitologias elaboradas que se encontram procedimentos de proteção direta ou indireta contra infecções.  Simples lendas aparentemente fantásticas podem ter justificativas surpreendentes, por afastarem as pessoas de contaminações.  Tal é o caso do lobisomem, que pode ser lenda tão  ou mais antiga que a domesticação do cão, do cabrito e do carneiro, ocorrida a partir de 10 000 aC, ou antes. O cão (domesticado provavelmente para proteger o gado contra lobos, cães selvagens e outros predadores), ao contrair a hidrofobia, se tornava feroz como o lobo e o mesmo sucedia com o homem (lobisomem), após serem atacados por animal ou homem contaminados, principalmente ao se aproximarem, em noite de luar, do refúgio das vítimas fotófobas dessa endemia mortal.  Lendas de vampiros têm significado análogo, sendo que, ainda hoje nos EUA, se registram quinze casos por ano de raiva humana transmitida diretamente  por morcegos hematófagos, e que se podem urbanizar.

DE 500 aC A 1200: A INFECÇÃO SE ENDEMIZA E SE INFANTILIZA POR CONFLUÊNCIA DAS CIVILIZAÇÕES
            Neste período ocorre a confluência das infecções das principais civilizações da Eurásia, com as conseqüentes endemização e infantilização de doenças antes epidêmicas e antes abrangentes de adultos e crianças.  Até então, o ajustamento de cada civilização às catástrofes pestilenciais tinha sido eficaz mas internamente, tanto que o próprio conceito de civilização hoje deve incluir o de que o grau de organização econômico-social era tal que mesmo a ruptura das produções econômica, administrativa e cultural trazida por peste violenta não era suficiente para destruí-las e até mesmo incapaz de impedir sua expansão.  Ou seja, sendo civilização, se expandia; a expansão produzia pestes, mas estas não eram suficientes para impedir sequer a expansão, pelo menos com menor ritmo ou em outra direção.  Por exemplo, o vale do rio Yangtze, na China, era mais agricultável que o do rio Amarelo e, no entanto, foi neste que se desenvolveu uma das mais antigas civilizações.  Esta, tendo-se tornado estável em 300 aC, levou cinco a seis séculos adicionais para vencer a barreira da malária, da esquistossomose, do dengue e de outras infecções e ir com elas conviver no cultivo do vale do Yangtze.
            Esse processo, que na Eurásia levou quase dois mil anos, fez com que o contato crescente entre civilizações, por guerra e/ou comércio e/ou religião, inclusive por e com crescente aumento populacional, trouxesse a universalização nosológica, reduzindo a virgindade das comunidades, a qual ocorria não só espacialmente, mas também temporalmente.  De fato, antes uma epidemia podia acometer não só uma região nunca acometida, mas podia recair sobre uma região antes acometida, porém, tão assolada, que os  novos habitantes eram igualmente virgens.  Agora, os surtos menos arrasadores e com freqüência menor que dez anos permitiam sempre a existência de populações adultas sobreviventes e resistentes, ocorrendo então a infantilização associada à endemização da nosologia confluída.
            Foi nesse período que surgiram as grandes religiões universalizantes da humanidade, como o budismo, o cristianismo e o islamismo, e também a filosofia grega.  Observe-se que as religiões substituídas por estas, como o bramanismo, o judaismo, o confucionismo e a mitologia greco-romana, representaram o respaldo moral para a estabilização interna dos centros civilizatórios, enquanto as religiões substitutas eram coerentes com a confluência destes, inclusive sendo instrumento da mesma.  É notável como estas últimas têm em comum a apologia da superação do sofrimento físico, considerada útil e até necessária para que se passe à felicidade espiritual - tradução intuitiva da necessidade de sofrer pestes e calamidades, inclusive freqüentemente, para se passar a uma etapa mais segura para todos.
            Nesse período também surgiu a medicina hipocrática que, no contexto do pensamento filosófico grego, coerentemente reconhecia as pestes não como imprevisíveis maldições divinas, mas de causas naturais e evitáveis, suscetíveis até do controle humano (antes, Empédocles acabou com uma praga de malária, e para tal, em vez de recorrer ao oráculo ou mesmo de prescrever às vítimas, retificou o leito de um rio).  Por sinal, o conceito hipocrático de epidemia não se superpõe ao atual, pois se refere basicamente a doenças, não necessariamente agudas, reincidentes por razões sazonais ou outros fatores ambientais recorrentes.
            A correlação primitiva entre mau cheiro e doenças, somada à longa experiência das culturas africanas, mediterrâneas e orientais sob o peso da  malária, levou à concepção miasmática de transmissão, daí advindo os nomes desta peste (mal ar, febre palustre, paludismo, sezão pantanosa, doença mefítica) e à ênfase hipocrática nas prescrições/restrições dietéticas, senso lato, que abrangia alimentos, atividade física e ambientes.  Assim, a teoria do miasma está consubstanciada em sua compatibilidade com a epidemiologia de uma doença de grande impacto social e transmissível pelo ar, embora se ignorasse que isso se fazia pelas asas de um inseto.  Nada mais lógico que a teoria deixasse de ser compatível com a propagação de outra doença - a peste bubônica medieval, de maior impacto - que, sendo transmitida também por um inseto, mas sem asas, e dependendo do contato corpo-a-corpo, mostrou-se suscetível, por isso, de ser evitada pela quarentena.  Como os interesses comerciais europeus no Mediterrâneo necessitavam de fundamento teórico para a legislação impositiva da quarentena nos portos, substituiu-se a teoria miasmática (transmissão ambiental aérea) pela teoria do contágio (transmissão pelo contato corporal), formulada por Fracastório, em 1546, e baseada na fácil evidência de contágio na sífilis, então em expansão.
            Outro aspecto da relação entre a medicina hipocrática e as pestes consiste na ética do papel do médico nas guerras. Relata-se que Hipócrates recusou debelar peste entre soldados inimigos, alegando dever patriótico - o que seria contraditório com as linhas morais do célebre juramento a ele atribuído.  Ora, esta questão é de grande atualidade, pois, embora tenha sido parcialmente resolvida a partir da criação da Cruz Vermelha Internacional19 em 1863, o uso potencial e real de armas radiativas, químicas e, principalmente, microbiológicas mostra-se mais ameaçador em nossos dias do que no passado.  Segredos militares e a cobiça comercial secreta, trazidos parcialmente a público, mostram que cientistas e médicos continuam a exercitar sua competência de modo mercenário e sem qualquer escrúpulo, desde na experimentação em sujeitos humanos, especialmente idosos, crianças e encarcerados, passando pela execução farmacológica da pena de morte, até a preservação e a multiplicação de bactérias, como a do antraz,  de virus, como o da varíola, e provavelmente de agentes infecciosos inventados pela engenharia genética.  O risco de escape do virus selvagem da varíola, mantido pelos EUA e pela Rússia, tem sido constante, capaz de  inimaginável hecatombe sobre a humanidade, que logo estará universalmente virgem. O clamor por sua destruição levou à promessa de consumá-la antes do ano 2000, em 30/6/1999 - e os opositores argumentam, por exemplo, com o risco de humanização da varíola de macacos (!)14.
            Na Grécia do século 5 aC, bem antes de Hipócrates, já deveria haver condições para a peste moderna da infecção hospitalar no asclepiéion de Atenas ou de Epidauro, exemplo de precursores do hospital atual, onde clientes, inclusive peregrinos ou prepostos, vinham obter prescrições, feitas pelo deus Asclépio, por meio de sonhos sonhados por eles com tal objetivo45.  Os leitos ali existentes se destinavam precipuamente aos sonhos e não ao cumprimento das prescrições.  Como entre os clientes devesse haver portadores de infecção, assim como entre os próprios asclepíadas e funcionários, ali deve ter ocorrido alguma relação entre infecções e o ambiente dos asclepiéia.  O mesmo pode ser dito das termas hidroterápicas espalhadas por toda a Europa, inclusive em Portugal, mesmo antes dos romanos, cujo uso foi reprimido como imoral na Idade Média.  Nesta, os precursores do hospital tiveram seqüência com o atendimento à movimentação de pessoas ligada às peregrinações por mosteiros e santuários e às cruzadas.
            Com a queda do império romano, o que restou da medicina helenística foi preservado nos mosteiros, os quais, de postos de hospedagem ou devoção a viajantes e romeiros, passaram a ser demandados por doentes.  A igreja, embora reprimindo os monges que clinicavam (porém permitindo que guerreassem), estimulou a vertente de assistência social, com base nas seis recomendações evangélicas denominadas atos de misericórdia - matar a fome, saciar a sede, agasalhar o maltrapilho, amparar na doença, receber o estrangeiro e visitar o prisioneiro (Mat 25: 35-36) - acrescidos no século 13 de um sétimo: sepultar os mortos, com base em Tobias (1: 19-21).  Por meio de doações em vida ou testamentárias,  o cumprimento de tais atos canalizou formidável parcela econômica do comércio mediterrâneo, arrebatado aos muçulmanos pelas cruzadas, a qual assim se imobilizou como propriedade secular do clero.  São Crisóstomo dizia aos neo-burgueses: “Se não houvesse os pobres, a maior parte de vossos pecados não seria removida, eles são os médicos de vossas feridas”.  Coincidentemente a hospitalidade oferecida pelos monges obedecia explicita e contraditoriamente ao princípio (que já prevalecia no código de Hamurabi, nos asclepiéia e ainda hoje): só se consegue privacidade a troco de dinheiro.  Exemplo característico de monastério que teve de adaptar-se, inclusive em condições de pouca água, para hospedar romeiros antes doentes ou que adoeciam na romaria foi o de Turmanin na Síria, à beira da estrada entre Antióquia e a igreja-santuário onde São Simeão Estilita se fez eremita e onde acolhia, para consolar, multidões no século 6. 
            A hospedaria original criada para acolher peregrinos era chamada pandoquéion, mas as palavras albergaria, asilo, hospício, hospedaria, hospital e hotel-Dieu vieram a ser usadas sem limite de significado.  Em Portugal, por exemplo, usou-se o termo hospital para os primeiros orfanatos de Lisboa e Santarém. E hospício era usado inicialmente para animais abandonados.
            Após aquela institucionalização assumida pela igreja, as casas destinadas à prática dos atos de misericórdia, não mais à beira dos caminhos das peregrinações, mas já em condições urbanizadas, foram surgindo e crescendo por acréscimos, como o Hospital de Santa Maria Nuova em Florença (1315), ou já todo planejado por um arquiteto, como Filarete, que justificou cada pormenor de seu projeto da Ospedale Maggiore de Milão, em 1456.  Daí se originaram as Santas Casas de Misericórdia brasileiras.  De fato, a Misericórdia de Lisboa foi fundada, com base no modelo florentino, dois anos antes de Cabral chegar ao Brasil, e a primeira Santa Casa brasileira é a de Santos, criada em 1543 por Brás Cubas. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que introduziu as misericórdias no mundo lusitano, a rainha Leonor de Lencastre revitalizou as termas, ao criar a de Caldas da Rainha.
            Os hospitais, cada vez maiores, inicialmente controlados pelo clero e depois com participação governamental, aglomeravam doenças de toda a espécie.  Devem ser distinguidos daqueles que permitiam a privacidade em divisões menores: os destinados aos leprosos, aos dementes, aos empestados, aos senis e aos ricos.  Assim, das cinco categorias, duas se referem a infecções, sendo que a lepra já se isolava desde o Torah.  O concílio de Orleans, em 549, atribuiu aos bispos cuidar dos leprosos e o de Lion, em 585, determinava a cada cidade ter um leprosário e, no século 8, este estabelecimento multiplicou-se por toda a Europa, conseqüência da contaminação dos bárbaros recém-chegados.  Além de obrigados a habitar fora dos muros das cidades, as restrições aos leprosos variavam com o lugar, sendo drásticas na Europa central e oriental e brandas na Península Ibérica, onde eles eram chamados gafos.  A primeira gafaria peninsular pode ter sido criada por El Cid, em 1037, em Valência.  Nesta época das cruzadas, a movimentação de pessoas para estas e outras guerras recrudesceu a infecção na população confluída, valendo lembrar que, entre as ordens de cruzados, como a de São João de Deus (importante na história do hospital) e a dos célebres Templários, havia a de São Lázaro, supostamente reservada aos cruzados que contraíssem a lepra, a qual não poupava nem as cabeças coroadas, pois o próprio rei Afonso II de Portugal morreu leproso.  Na Espanha a seqüestração dos leprosos só foi decretada em 1284 por Sancho IV, o Bravo.
            Já os hospitais específicos para epidemias constituem grande fracasso, prenunciando as dificuldades de isolamento até hoje vividas, mesmo com a mais sofisticada tecnologia.  Exemplo mais característico foi o gigantesco Lazaretto de Milão, de 1488, um quadrado de 288 células contíguas, em volta de um pátio vazio, com uma igreja octogonal no centro, para todos presenciarem a missa.  Quando não havia peste, ele era estrutura onerosa e, quando vinha a epidemia, como no início do século 17, 16 000 corpos, entre doentes, moribundos e mortos, compunham ali quadro indescritível. 
            Problema difícil nos hospitais medievais e renascentistas era conjugar aquecimento com exaustão do ar.  O mau cheiro, que primitivamente era indicador de peste, agora paradoxalmente característico dos hospitais e oriundo das próprias doenças, dos dejetos, dos medicamentos e dos combustíveis, fazia com que as emanações dos domos de ventilação matassem até os pássaros desavisados.  Apesar da experiência acumulada dos povos mediterrâneos quanto a hábitos de limpeza (árabes e judeus), de drenagem de esgotos (sistema da cloaca máxima de Roma) e de captação d’água (aquedutos)49, muita coisa se perdeu ou se esqueceu, sem que escrúpulos maiores existissem até o século 19.  No Hotel-Dieu de Paris não eram de estranhar até seis doentes na mesma cama.  O relato de Florence Nightingale45 sobre as condições sanitárias do hospital militar inglês de Scutari na Turquia, durante a guerra da Criméia (1854-55), derrubou um governo e nele menciona ter descoberto que a pouca água de suprimento banhava antes a carcaça em putrefação de um cavalo.  Daí surgiu o hospital militar pré-fabricado de Renkioi, que, antes de ser usado na Turquia, no final da guerra, foi o primeiro a ser experimentalmente aperfeiçoado.  Enquanto o de Scutari, com 2500 pacientes, apresentava a mortalidade de 42,7%, no de Renkioi, com 2200, esta caiu para 3,0%.
            Todos esses dados mostram que as condições sanitárias prevalentes antes de 1200 resultaram não apenas de fatores como a separação entre os mundos cristão e islâmico e a confluência de populações em estados imunitários diferentes, causada pela ampliação de sua mobilidade por guerra, comércio e religião.  É que o poder religioso, monoliticamente espiritual e temporal, ao estimular gananciosamente os atos de misericórdia, reprimia, ao mesmo tempo, e aí por oportunismo proselitista, aquelas sábias práticas da medicina popular e clássica, inclusive bíblicas.  Assim, a substituição de procedimentos sadios, antes e longamente praticados, por orações, exorcismos, relíquias e amuletos (de valor psicoterápico, desde que não exclusivos) tornou a pessoa ainda mais indefesa diante das sucessivas agressões epidêmicas, até que viesse a maior delas no século 14.

DE 1200 A 1500: AS CONTINGÊNCIAS E CONSEQÜÊNCIAS DA MORTE NEGRA
            Neste período, os equilíbrios em via de serem alcançados pela confluência das infecções sofrem o impacto do império mongol, cujo principal resultado foi a morte negra, pandemia bubônica que devastou a Eurásia no século 14.  Os canais econômico-administrativos e militares, criados para o funcionamento desse primeiro império ecumênico surgido após aquela confluência,  foram usados pelos ratos, pelas pulgas e pelo bacilo da peste bubônica para disseminarem-se pandemicamente.  Esses canais permitiram alta velocidade, impossível antes, no transporte dos vetores da doença, o que atropelou a tradicional formação de focos isolados e isoláveis, surgidos  em  cadência.  Precipitou-se assim a contaminação abrupta de todos os limites do império.
            O império mongol dispunha de dois canais de comunicação recém-desenvolvidos, logo utilizados pelos vetores da doença: a ligação a cavalo através da estepe (no lugar da ligação a camelo através do deserto) e os novos barcos a vela, de longo curso, que navegavam durante todo o tempo (no lugar de embarcações de pequeno alcance).  Até então, a ligação segura oriente-ocidente se fez milenarmente de oásis a oásis nos caravançarais do deserto - a famosa estrada da seda, ligando a Síria à China.  Os mongóis construíram ao norte desta a ligação regular a cavalo pelas estepes, em cujo subsolo provavelmente se formou uma correspondente conexão subterrânea de roedores capazes de atuar como reservatórios contínuos da propagação da peste.  Já no mar, até então os navios eram pequenos e não ficavam permanentemente ao largo, principalmente no inverno nórdico.  Foi nesta época que o rompimento do bloqueio muçulmano de Gibraltar levou ao aperfeiçoamento náutico com a criação de navios maiores e mais rápidos, capazes de fazer a navegação permanente entre o Mediterrâneo e o Atlântico Norte.  A bordo dos novos navios, o rato negro da Índia se disseminou por todos os portos e terras adentro. No caso da peste, o número de roedores em cada navio, combinado com a velocidade destes, era adequado à sobrevivência e ao desembarque de ratos ainda contaminados.
            A peste já se tinha estabilizado na África, no Mediterrâneo e no Oriente e é possível que o foco inicial da pandemia, nos contrafortes indianos do Himalaia, tenha surgido pela ruptura da estabilização aí ocorrida sob a forma de um tabu de caça.  Em locais no Oriente, onde roedores silvestres (tabargãs, espécie de pequenas capivaras orientais) são reservatórios de peste endêmica (estabilizada), é proibido caçar o animal vivo ou matá-lo quando aparenta estar doente, sob pena de sobrevir castigo divino.  É possível que os civilizados mongóis, recém-chegados, zombassem dessa ignorância da medicina popular local.  Desrespeitando-a talvez, desencadearam o castigo de uma calamidade só comparável às guerras mundiais.  Há evidência de que, no paroxismo pandêmico, a infecção tenha dispensado os vetores, passando-se a uma epidemia dentro da pandemia, conseqüente à transmissão de homem a homem, por via respiratória, da forma pneumônica da peste, e neste caso quase sem sobreviventes.
            O despovoamento e o agravamento da infecção provavelmente fizeram parte de um círculo vicioso que incluia a fome e a desnutrição, ligadas à desestruturação econômica e ao caos social.  A perda de recursos humanos essenciais à organização economico-socio-cultural estabelecida correspondeu a uma desculturação com revisão dos valores vigentes - causa provável do declínio gótico e da abertura rumo ao Renascimento e à Idade Moderna.  A diminuição dos que dominavam a língua oficial, o latim, deve ter favorecido a emergência das línguas populares nacionais, transformadas em idiomas cultos.  Os judeus, menos atingidos por seus hábitos de saúde, foram acusados de pacto demoníaco e judiados, com isso muitos se refugiaram na Europa oriental e ocidentalizaram a Ucrânia e a Polônia.
            A endemização subseqüente da peste está relacionada à adaptação da infecção aos roedores silvestres de cada região, onde permanecem até hoje (até 20 casos anuais nos próprios EUA e muitos no Brasil) e onde não são ameaça temida, porque se confia nos antibióticos (mas seu uso depende do diagnóstico).  Convém lembrar que o desaparecimento das sucessivas epidemias de peste ocorridas na Europa Ocidental, do século 14 ao 17, se relaciona também à substituição ecológica do rato negro dos navios (doméstico) pelo rato cinza dos campos (peridoméstico).  É que o uso de madeira como combustível levou à escassez de material vegetal para a construção de casas, inclusive  tetos, e sua substituição por alvenaria - afastando o rato negro, grimpador, e suas pulgas. Tal mudança explica por que o grande incêndio de Londres de 1666 queimou a peste, com o advento das novas moradias.
            Em 1346, quando começou a morte negra já existia a quarentena.  Ela deriva, como foi dito, do ostracismo bíblico dos leprosos e da idéia de considerar os pestosos como leprosos temporários.  Sua prescrição, entretanto, se fez junto a numerosas medidas inócuas, consideradas na época igualmente válidas e igualmente mal obedecidas, por isso só institucionalizada muito tempo depois nos portos italianos do Adriático, primeiro em Ragusa, em 1465, depois em Veneza, em 1485, e no resto do Mediterrâneo só no século 16.

DE 1500 A 1700: A CONFLUÊNCIA PLANETÁRIA DAS INFECÇÕES
            Neste período, as infecções passam a dispor de um intercâmbio transoceânico.  Se o cavalo mongol levou a peste bubônica à Europa (coroando os mecanismos de estabilização ecológica de toda a massa continental da Eurásia), as caravelas ibéricas levaram as pestes da Europa ao resto do mundo (principalmente a terras insulares), trocando-as por novas infecções.
            As terras insulares sofrem as pragas de modo peculiar, por sua característica de fazer intercâmbios, sem deixar de preservar o isolamento e a independência.  Assim, o arquipélago grego, no Mediterrâneo, o japonês, no Oriente, e o britânico, no Ocidente, são modelos de grande interesse para a epidemiologia histórica, inclusive a correlação entre aspectos ecológicos, econômicos, sociais e culturais.  No impacto da chegada dos europeus às Américas e à Austrália, estas, apesar de sua massa continental, apresentaram um comportamento insular.  Diante da varíola, do sarampo, da malária e da febre amarela, entre outras infecções, acometendo populações  virgens, pode-se espantar de ter havido sobreviventes.
            Os índios sobreviventes, em vez de heróis ecológicos ou bravos insubmissos, foram então taxados de preguiçosos, justificativa usada para se lucrar com o tráfico de negros, que, por sua vez, trouxeram novas infecções da África e vieram a sofrer tanto as raras aqui pré-existentes como aquelas antes importadas (no estudo desse conjunto, brasileiros e estrangeiros realizaram aqui importantes contribuições científicas).  Os negros de regiões africanas com contato anterior com a Eurásia (muçulmanos) tinham maior resistência que os índios.  O certo é que essa confluência planetária trouxe um morticínio também planetário, que, incluiu, além dos ameríndios, os hotentotes (africanos), os polinésios e os indígenas australianos.
            Os europeus, ao chegarem às Américas, ficaram impressionados com a saúde dos índios28,29 e, mais que febres daqui, temiam serpentes, aracnídeos, vespas, lacraias e taturanas.   A baixa densidade de populações (grande parte nômades), o baixo grau de domesticação de animais, as raras doenças autóctones e as plantas nativas nutricionalmente superiores às da Eurásia e da África dão objetividade à impressão paradisíaca causada pelo continente americano.  Mesmo no caso das civilizações centro-americanas e andinas - nas quais houve urbanização, maior densidade demográfica, a domesticação da lhama, da cobaia e talvez do cão e do peru (e do pato entre tupis-guaranis), além de aves, macacos e outros mamíferos  de estimação (os filhotes destes usados para fazer descer o colostro), enfim, o favorecimento a doenças ligadas ao vestuário (riquetsiose) e à habitação (treponematose, micose, tripanossomose),  necessários contra o frio dos altiplanos - não há evidência de que esses povos tenham sofrido pestes dizimadoras de origem infecciosa, antes de Colombo.  A falta de rebanhos numerosos os protegia contra infecções oriundas dos mesmos (leishmaniose, riquetsiose, miíase, tularemia, equinococose, micoses, arboviroses), mas os colocava indefesos contra fracassos nas colheitas (suas verdadeiras pestes), pois o gado e a caça na África e na Eurásia são tampões contra a fome por perda de alimentos vegetais.  Em compensação não necessitavam de muita terra para a lavoura, pois seus vegetais nativos são mais produtivos por área e mais ricos nutricionalmente que os do velho mundo, exceto o arroz, tanto é que as batatas, o milho, a mandioca (o manejo indígena da mandioca brava é obra-prima de bioquímica antropologicamente seletiva), o amendoim, as castanhas, as abóboras, os cocos, o tomate, o abacaxi, o abacate, o caju, o cacau, as pimentas, a baunilha e as mirtáceas das Américas passaram a ser, desde então, cada vez mais indispensáveis à explosiva  população mundial (além do amplo fornecimento adotivo de açúcar, banana, trigo e café). E o consumo do tabaco, da cocaína, da mescalina (e de outros produtos psicoativos) e do chicle nem sequer era vício aqui.
            Essa maior e melhor nutrição para menos gente deve ter dificultado o acesso de infecções do animal ao homem, que ingeria importante porção de peixe.  Mesmo com facilidade de caça, não dependia dela para fonte de vitaminas, encontráveis nas pimentas, no tomate e em outros frutos, bem como no milho e na mandioca fermentados, e no mel.  É, pois, inevitável a conclusão de que em 1500 os europeus nos trouxeram a infecção e nós lhes retribuímos com nutrição (além de medicamentos revolucionários, algodão,  borracha, madeira, gemas e  ouro).
            Para amenizar esta forte verdade foi feito igual esforço para provar que a sífilis foi exportada das Américas e que a malária e a febre amarela pre-existiam aqui.  A única infecção de massa indiscutivelmente americana, e sem similar fora, a doença de Chagas, nunca foi exportada daqui, nunca se fez epidêmica, e aparentemente só se domiciliou junto ao homem após a importação da sub-habitação ligada à desigualdade social.  Por outro lado, uma infecção típica e benquista, o bicho-de-pé, veio reaproximar os europeus aqui chegados do banho diário, pelo menos do joelho para baixo, abrindo o surpreendente caminho, junto com o piolho (iguaria indígena), para os prazeres do cafuné.
            A verdade é que, após o intercâmbio transoceânico, as infecções tiveram de retomar suas estabilizações sob a enorme complexidade da confluência de todos os povos da terra, inclusive novas condições demográficas, de urbanização, de nutrição, de comportamento e de heterogeneidade  imunitária, donde passam a sobressair a sífilis (e outras doenças venéreas), os tifos, a varíola, a tuberculose e a colera.  O alívio da repressão sexual medieval, a revelação de outras morais sexuais, a urbanização burguesa e a necessidade de rápida reprodução humana para ocupar espaços impuseram o tema das doenças sexualmente transmitidas, antes cercado pelo pudor dos próprios médicos, e que afinal fica ostensivo na obra de Astruc, De morbis veneris, de 1736.  A importância delas se ilustra pelo recurso a  sedutoras jovens sifilíticas na estratégia militar (antecipando as armas bacteriológicas e em contraponto à imunização dos soldados, a seguir).


DE 1700 A NOSSOS DIAS: INFECÇÕES VERSUS TECNOLOGIA
            Em 1700 começa o impacto ecológico da ciência e da organização médicas.  Até esta data a prática médica não teve influência significativa no surgimento, na trajetória ou na interrupcão das infecções.  Antes, qualquer medida preventiva ou curativa tinha de ser justificada pelas teorias de Galeno, entre cristãos, pelas de Avicena, entre muçulmanos,  e pelas dos respectivos cânones na Índia e na China.  Só depois que a obediência cega à medicina canônica foi progressivamente iluminada por questionamentos contundentes, embora arriscados, é que medidas administrativas e clínicas começaram  a ter alguma influência na ecologia das infecções.
            O impacto de mundos, medicinas e nosologias diferentes ou emergentes levou, por exemplo, a que se argumentasse, com base na irreverência de Paracelso, que doenças novas como a sífilis necessitavam remédios mais fortes a serem desenvolvidos pela química (ainda indistinta da alquimia), em vez de buscados em livros antigos.  O dogmatismo então foi sendo substituído pela retomada da observação criteriosa (inclusive com base na estatística nascente) e pela comparação entre as condutas antigas e o uso empírico de novas prescrições (culminando, porém, no exagero oposto, com muitas mortes).  Foi assim que a quarentena se destacou do universo panacéico e teve reconhecida sua eficácia, passando a ser melhor administrada.  Depois dela, a imunização administrada coletivamente mostrou seus efeitos.  Para garantir as eficácias verificadas, passou-se à formação de profissionais responsáveis por sua continuidade e ao estímulo à respectiva carreira.
            Logo se percebeu a importância militar desse progresso, pois o exército e a marinha protegidos contra epidemias, temidas e freqüentes conseqüências de guerras,  teria decisiva superioridade sobre inimigos não protegidos.  A saúde pública moderna resultou, pois, da aplicação pelos novos estados nacionais de novas técnicas médicas, em favor de seus interesses econômicos, políticos e militares. Consistiram: na imunização clínica rural, feita durante a mudança agrária britânica, precedente à revolução industrial; na imunização de membros das casas reinantes, para garantir arranjos sucessórios; na profissionalização do corpo médico militar francês e respectivo treinamento, desde 1770, precedente aos triunfos napoleônicos; e  na concepção germânica da saúde como recurso político e militar, expressa na obra, em seis volumes,  Polícia Médica de Johann Peter Frank29,39, publicada de 1779 a 1819.  Por isso é que o ensino médico criado pelos governos a partir daí se vinculava a hospitais militares, a exemplo, no Brasil, do curso criado em 1801, em Vila Rica (Ouro Preto)36, e dos de Salvador e do Rio de Janeiro, criados em 1808.
            Convém, no entanto, não exagerar o valor de cada fato. Assim como antes a quarentena teve a ajuda da alvenaria para aplacar a peste, no período estudado deu-se a diminuição da malária, não pelos progressos mencionados, mas pela expansão da pecuária, quando o mosquito, preferindo picar o gado sem infectá-lo, afastou-se do homem.  A própria técnica administrativa teve também efeito genérico, desde que a organização é irmã da limpeza49, isto é, da prevenção inespecífica (higiene) e todas são filhas da prosperidade.
             Outro fundamento da saúde sob drástica mudança foi a nutrição, representada pela adoção da batata americana, tanto que passou a ser batata inglesa (outro fator da revolução industrial) e pelo acesso à carne, graças à pecuária mencionada, ambas sustentando e acelerando o aumento populacional.  Da melhora da alimentação participam as especiarias e junto a elas, ou indistintos delas, medicamentos longamente selecionados pela medicina popular de todos os povos, entre eles, os que se revelaram agentes antinfecciosos, como a ipeca tupi-guarani (contra a diarréia de sangue epidêmica causada por ameba) ou o quinino inca (contra a malária - que assim alicerçou o poderio barroco dos jesuítas). A desconfiança natural e as restrições religiosas contra tais adoções são vencidas não só por seu respectivo  resultado, nem sempre tão evidente, mas com o entusiasmo trazido pelas demais adoções, como as da bússola, da pólvora, do papel e da imprensa, e também das descobertas ópticas.
            A imunização deliberada com matéria pustular de variolosos (variolização) já era praticada na Índia e foi daí introduzida na China no século 11, sendo conhecida também na Pérsia, na Grécia, na Arábia e no norte da África.  Só em 1721 foi levada à Europa pelos ingleses.  É que Lady Wortley Montagu, esposa do embaixador britânico na Turquia, tendo seu belo rosto marcado pela varíola, ao saber que, como as turcas, poderia tê-lo evitado, variolizou seu próprio filho de sete anos, em 1717, e divulgou essa prática na Europa, abonada por médicos gregos, graduados em Pádua, Itália.  A adoção da idéia pelos dirigentes britânicos foi facilitada por ter havido a morte de dois herdeiros, um filho da rainha Ana, em 1700, e outro da linhagem Habsburgo, em 1711, ambos de varíola - mortes que mudaram a história política do país no xadrez europeu, onde se confrontavam os colonialismos espanhol, francês e britânico (fado igual levou o irmão de D. João VI, que só assim foi rei luso).  Mesmo diante disso, a variolização pegou na área rural e não nas cidades e primeiramente nas ilhas britânicas e só depois no continente, onde inocular doença em pessoa sadia era tido como contrário à Providência Divina (nesta polêmica envolveu-se Voltaire). 
            A resistência continental diminuiu quando Luis XV morreu de varíola em 1774, sendo que antes, em 1768, Catarina da Rússia importou um médico inglês para imunizá-la e sua corte, deixando o povo de lado.  Já Frederico da Prússia, em 1775, mandou ensinar a técnica aos médicos rurais, mas não aos da corte.  Só depois de tudo isso ter acontecido é que, em 1798, Edward Jenner, médico rural inglês comprovou e divulgou a verificação popular de que a varíola vacum (vacina) imunizava contra a varíola humana.  A difusão da variolização e depois da vacina, com seus efeitos diretos e indiretos, representaram  a primeira grande mudança resultante do processo civilizatório, na história natural de uma doença, desde a origem da humanidade29.  Como nessa época as forças militares, por exigência de quem as mantinha e delas dependia, eram vanguarda na eficácia organizacional, é significativo que, ao contrário da ambivalência dos monarcas absolutistas, George Washington mandasse variolizar seu exército em 1776  e Napoleão vacinou o seu em 1805, e neste caso sendo favorecido pela nova organização profissional da medicina francesa.  É quase certo que as pessoas variolizadas na América do Norte (por George Washington) e na do Sul (pelo matemático La Condamine, no vale amazônico) e as vacinadas em colônias espanholas (México, 1803), portuguesas e russas tenham servido de cobaias para a plena adoção nas metrópoles.  Francisco de Melo Franco, um dos maiores médicos de nossa história,  fracassou ao tentar introduzir a imunização junto a seus colegas no Brasil.
            Esses dados mostram que o fato novo, talvez maior que a contribuição isolada de Jenner (inspirada na iniciativa do camponês Benjamim Jesty), foi a conjunção, de um lado, da velocidade só então possível na difusão de técnicas pré-conhecidas e, de outro, o deslocamento da ação médica do plano clínico ao administrativo, a serviço da economia e da política.  Outro aspecto foi a imunização de áreas rurais britânicas onde contribuiu, influindo na força de trabalho, na preparação da revolução industrial (por sinal financiada pelo ouro das minas brasileiras), que deu à Inglaterra a vanguarda européia.  Os britânicos já tinham antecipado esta vitória no sentido de que, enquanto Napoleão decidia vacinar soldados, aqueles já haviam imunizado um novo tipo de soldado - o operário.
            A partir daí iniciou-se uma aposta de corrida entre o aperfeiçoamento técnico-científico e o surgimento ou o agravamento de infecções induzidas pela revolução industrial e pelo imperialismo europeu.  Assim, a revolução industrial, apesar de ser irmã e filha da melhor saúde das populações e também de lucrar com ela - ao mesmo tempo as constrange a condições de infecção, das minas de carvão aos espaços artificiais confinados.  Do mesmo modo, o imperialismo, apesar de irmão e filho da nova administração sanitária e também de se sustentar nela - ao mesmo tempo fez com que a tração a vapor de navios e locomotivas desempenhasse papel análogo e com maior velocidade ao do cavalo e das caravelas, ao romper estabilizações endemizantes, com alcance inédito.  De fato, a morte negra do século 14 está para o império mongol assim como a  pandemia de cólera no século 19 está para o império britânico.  E o esforço técnico-científico não venceu também esta corrida, pois a cólera já tinha conseguido dar a volta ao mundo, quando Koch, em seu encalço, descobriu seu bacilo em 1883.
            E, apesar de toda a tecnologia, é provável que os aviões de hoje e as astronaves do futuro continuem a repetir o símile indefinidamente.  Entrevê-se isso quando habitantes próximos a aeroportos da França e da Suiça sofrem malária após serem picados por mosquitos trazidos por avião da África e mesmo quando passageiros são picados na cabine durante escala nesse continente, inclusive adquirindo malária grave (há evidência de que o mesmo ocorra no Brasil com a malária da Amazônia).  Segundo McNeill, é possível que a corrida entre skills and ills jamais tenha fim29.

IMPACTO DA CHUVA DE PRODUTOS ANTIINFECCIOSOS
            Se antes do século 19 já se preveniam e já se curavam as infecções, se já se conheciam a imunização e a medicação antifebril, anti-séptica, antiparasitária, antibacteriana e antivirótica, se já se havia descoberto o micróbio, o contágio e a quarentena - em que consistiu o advento da era microbiológica?  Consistiu  na utilização convergente da observação experimental, de equipamentos recém-disponíveis e de conhecimentos acumulados, para começar a correlacionar tudo isso com os micróbios,  fazendo aceleradamente, em décadas e anos, o que a medicina popular já vinha fazendo lenta,  divergente e dispersamente em milênios, por meios intuitivos.
            Mesmo assim, os interesses econômico-político-religiosos criados, ao constituírem o establishment científico, notadamente representado, logo no início, pela “Real Sociedade de Londres para a Melhora do Conhecimento da Natureza” (1660) e pela “Academia de Ciências da França” (1666), passaram a refrear a queda de diques de represamento tecnológico e assim controlar a explosão de descobertas.  Jenner (um médico rural, por sinal reprimido em seu estudo sobre o cuco), Semmelweiss (um médico estrangeiro em Viena, logo demitido, acusado de revolucionário de 1848), Pasteur (não-médico, criador de seu instituto fora da universidade - levado a cuidar de infecções de insetos e carneiros e só depois do homem) e Florence Nightingale (mulher, não-médica e enfermeira não-religiosa) são exemplos de que muito do progresso de 1700 até hoje passou por entre os dedos do controle da ciência e da medicina oficiais, conseguido por pessoas e meios à margem dos arquiatras da corte.  Doenças do vinho, da batata, do bicho da seda e do gado, sempre economicamente mais importantes, foram então usadas para a afirmação da causação microbiana dos mais antigos tormentos do homem, abrindo caminho para a tecnologia das vacinas, dos anti-soros, dos quimioterápicos e dos antibióticos. E o fenômeno prossegue, já que Prusiner acaba de passar de herege (por contrariar conhecimentos estabelecidos na químio-infectologia) a Prêmio Nobel de 1997.
            A convergência de desenvolvimentos antes paralelos deve ser sempre lembrada.  Assim, o limite da microbiologia francesa estava determinado pela assincronia de sua indústria óptica em relação a seus naturalistas.  A primazia de Pasteur passou a Koch exatamente porque a indústria Zeiss de lentes desdobrou os horizontes da microbiologia alemã.
            Uma das maneiras que as ciências oficiais, principalmente a mais poderosa delas, a medicina, desenvolveram para refrear descobertas e inovações que ameaçassem interesses estabelecidos, foi explicar as práticas empiricamente eficazes por meio de teorias sistematizadoras fechadas, originalmente surgidas do controle social feito pela religião, como as teorias citadas do miasma e do contágio.  Pois só em 1822, com a não demonstração do contágio na febre amarela (veiculada miasmaticamente por inseto voador) de Barcelona, é que se chegou à distinção entre o contágio imediato e o mediado por vetor físico e animal. Para a transmissão física foi importante a contribuição de Snow44 sobre a veiculação hídrica da contaminação fecal na cólera em 1855, mas o vetor animal já havia sido levantado por Cardan, em 1536, ao ser o primeiro a descrever o tifo (distinguindo-o do sarampo e referindo-se, no caso, ao tifo murino, sem obviamente distingui-lo dos demais tifos), denominando-o morbus pulicaris (doença das pulgas).  Mesmo assim tal evidência só se firmaria com o fim de outra teoria oficial, a da geração espontânea, que caiu não só por experimentalmente indemonstrável, graças a Pasteur em 1861, mas pelo uso da própria microbiologia para apontar a razão ilusória de sua concepção.  Tardiamente, em 1892, um apaixonado médico conservador, na Alemanha, para provar o erro da teoria microbiana, ingeriu um frasco com bacilo da cólera e quase convenceu os interlocutores, pois incrivelmente nada sofreu.
            Passando ao largo das resistências, prosseguiu o mapeamento de agentes e vetores, vasculhados em toda a nosologia humana, animal e vegetal.  Desse esforço, vale lembrar dois mártires, Ricketts e Prowazeck, vítimas (um no México, em 1910, e outro na Alemanha, em 1915) do tifo que estudavam, sendo que o brasileiro Rocha Lima, que se contaminou junto com o segundo e sobreviveu, ao descobrir o micróbio que buscavam, deu-lhe o nome de Ricketsia provazeckii em honra de ambos.
            No lado terapêutico, embora desde Pasteur já se observasse o fenômeno a que Villemin (1868) deu o nome de antibiose (produtos de microrganismos que são nocivos a seus semelhantes) as primeiras vitórias após os produtos empíricos já citados  ocorrem no âmbito da quimioterapia.  Neste caso houve, em 1912, extraordinária contribuição brasileira, quando o jovem e genial patologista Gaspar Vianna (morto muito moço por infecção acidental em necrópsia) introduziu o antimônio contra a leishmaniose (substância que fora objeto de uma guerra médica no início da idade moderna).  Esta descoberta, a primeira de um quimioterápico capaz de cura etiologicamente comprovável, e a do uso dos arsenicais contra a sífilis, feita por Erlich (1910), inauguraram a era atual dos antimicrobianos, em que o fluxo e refluxo de microrganismos suscetíveis, resistentes, oportunistas e de comportamentos inesperados retratam uma batalha sem desfecho.
            A esse respeito o grupo de doenças mais ilustrativo são as resultantes da nova promiscuidade da cultura moderna.  Tudo começou após a última guerra mundial, quando - sob a chamada chuva  de penicilina e de outros antiinfecciosos emergentes, e também do DDT e outros inseticidas - verificou-se o decréscimo surpreendente das doenças sexualmente transmitidas, especialmente a sífilis e a blenorragia, além da sarna e dos piolhos.  É extraordinário que o primeiro antibiótico disponível tenha sido fulminante exatamente contra as duas principais venereopatias. É provável que o benefício tenha surgido não da indicação correta dos produtos em casos específicos das infecções, e sim do efeito profilático do abuso de antibióticos e inseticidas, usados então a qualquer pretexto.  Com a moderação no uso dos mesmos, proveniente da divulgação de seus perigos imediatos, o efeito preventivo deve ter sido suprimido.
            Essa prudência terapêutica coincidiu com o advento de novas realidades sociais e culturais.  As explosões demográfica, industrial e urbana contribuíram para promiscuir as populações, desestruturar a família e as comunidades, emancipar a mulher e determinar a predominância quantitativa de jovens.  A acessibilidade e rapidez dos transportes e das comunicações levaram à homogeneização das culturas e subculturas, deram grande mobilidade individual às pessoas e provocaram o relaxamento de restrições até então poderosas exercidas pela família, pela religião e pela opinião pública.
            As conquistas tecnológicas divulgadas pelos meios de comunicação de massa induziram a uma confiança tal na capacidade técnica da medicina que dois poderosos medos, o da doença e o da gravidez, foram anulados com base respectivamente no poder dos medicamentos, em geral, e no da pílula anticoncepcional, em particular.  Com esta, decaiu, por outro lado, o uso da camisinha, que é profilático tanto de gravidez como de doenças.
            A própria medicina e outras tecnologias, propiciando a maturidade precoce dos jovens e dando longevidade ativa aos maduros, estendeu a oportunidade de atividade sexual do indivíduo.  Assim, estendeu-se individual e coletivamente a faixa de consumo do sexo.  Faltava promovê-lo.  Como já existia o mercado do sexo biológico, a prostituição, surgiu então a mercadologia do sexo de consumo, que são o erotismo e a pornografia, ocupando hoje o ciberespaço.  Estes, aliados aos demais fatores que concorrem à cultura permissiva, acabou modificando os padrões estabelecidos em referência à mais antiga profissão, inclusive na esfera legal.  Na Suíça e na Alemanha foi onde primeiro se reconheceu parcialmente a prostituição, desde que como encontros sem exploração, e a Inglaterra foi a primeira a reconhecer o casamento homosexual.  Nos Países Baixos, pelo menos 28% de casos de sífilis recente correspondiam a homens casados que a haviam contraído de suas esposas. .A indústria turística lucra com o turismo sexual e é complacente com a prostituição infantil nos chamados terceiro e segundo mundos.  Com isso, a prostituição clássica passa a ser fração epidemiologicamente negligível do fator prostituição.  Os homossexuais, sendo promíscuos em diferentes níveis sociais constituem grupo de alto risco, especialmente os também heterossexuais, pela capacidade de difusão e ocultamento das infecções.
            Compõem grupos de risco, além dos jovens, prostitutas e homossexuais, os migrantes (especialmente trabalhadores migrantes) e os viajantes (turistas, tripulantes de avião, motoristas de caminhão e de ônibus, marinheiros, soldados e viajantes comerciais e culturais), que, pelas novas facilidades de  locomoção, passam de círculos sexuais fechados a abertos pelo anonimato e a permissividade.
            O fator desinformação talvez seja o mais importante, inclusive a desinformação por perda da memória médica.  A maioria da população, nascida depois da última guerra mundial, não tem lembrança pessoal de como era o atendimento médico na era pré-antibióticos e dentro em pouco a maioria não saberá como era o mundo antes da AIDS.  Essa desmemória explica por que mesmo pessoas cultas e a explosiva população de estudantes universitários apresentam alta prevalência de doenças sexualmente transmitidas, e por que até a também explosiva população de jovens médicos contribuem menos do que deveriam para sua prevenção.  O acometimento de não-marginais, no entanto, não deve marginalizar o cuidado com os marginais, pois o barco promíscuo é um só.  A miopia para com grupos-problema, especialmente a população que mora nas ruas e nas favelas (onde também mora uma das pontas do narcotráfico e da delinqüência), seria suicida, pois eles são característicos das sociedades hiperurbanizadas - mais nas pobres, mas também nas ricas, ambas atingidas pelo desemprego em ondas ou crônico.
            A administração sanitária, mesmo dispondo de ação internacional aceita como de interesse público, exercida pela cinqüentenária Organização Mundial de Saúde (OMS), criada em 1948, mesmo dispondo hoje de recursos tecnológicos amplos, inclusive para consolidação infinita de dados e para comunicação global instantânea, parece impotente e enfraquecida, no tumulto da luta para ser ouvida seriamente, em meio à estridência do marketing consumista.  Passados os anos, parece de fato que ninguém, muito menos os governos, ouviu seu alarme geral começado em 1965 sobre o recrudescimento das velhas pestilências, como a sarna, o piolho, a lepra, os males venéreos, a meningite e a malária - nesta passando-se da euforia à anarquia18.  De lá para cá elas se somaram à cólera, ao dengue, à leptospirose, à tuberculose e a infecções não ou pouco conhecidas, como as  subviroses pelos viróides príon e vírion, as legioneloses, as clamidioses (a exemplo da que atinge o sistema circulatório), a micoplasmose, o herpes genital, as hepatites, a malária e a leishmaniose urbanizadas, outras arboviroses, as gastrenterites viróticas, as iersinioses, as zigomicoses, as infecções anaeróbias, as infecções microbianas e parasitárias disseminadas por imunossupressão (da estrongiloidose difusa à endocardite por bacilo acidófilo), as infecções por infecções internas de parasitas, a AIDS20,40,48 e seu cortejo oportunista (inclusive a surpreendente micobacteriose cavitária avium), as viroses HTL-BL, a virose condilomatosa oncogênica, as viroses de  roedores (especialmente a nefropatia hipertensiva epidêmica cosmopolita, disseminável por inalação de restos fecais de ratos) e ainda a infecção hospitalar em geral.  A estas se associam as pestes não-infecciosas34, como a fome endemo-epidêmica (denunciada pelo brasileiro Josué de Castro e redescoberta pela televisão sensacionalista), a marginalidade social e/ou racial, a violência cínica ou sofisticada e os envenenamentos industrial, ambiental e individual (ora se dá uma epidemia de tabaquismo na China, após sua abertura ao marketing do cigarro ocidental). Convém aqui lembrar que a peste ideológica do nazismo é que inspirou A Peste de Camus9, assim como o apartheid evocou a mesma analogia6.  E as pestes infecciosas e não-infecciosas se misturam, tendo sido dramáticos o encontro de armas bacteriológicas em poder de terroristas neonazistas (e já ou breve em mãos do crime organizado) e os casos de malária diagnosticada  nos EUA, transmitida por seringa entre ex-soldados toxicômanos, egressos do Vietnã, e entre marginalizados de guerra  egressos do Sudeste Asiático.
              A malária, neste caso, antecipou o que sucederia com a AIDS, logo depois.  Mais trágicos, porém, que os drogados e  somando-se aos leprosos, aos loucos, aos aleijados, aos cegos e aos surdos - lázaros de todos os tempos - os aidéticos chegam com um potencial de estigma singular, pois são os primeiros lázaros recíprocos da história: são vistos como ameaça e aprendem a ver os que os temem como fontes de contágio..

PARADOXOS DO FINAL DE MILÊNIO
            Nas duas últimas décadas do século 20, o confronto entre ills e skills vem-se dando entre competidores surpreendentes: a revolução molecular da medicina versus o impacto das infecções inéditas.
            A revolução molecular oferece e promete métodos antes inimagináveis, permitindo o imediato diagnóstico meta-específico dos micróbios, com isso revolucionando também o rastreamento epidemiológico, da carga microbiana e da resposta imunitária, e propiciando, por outro lado, a manipulação genética dos mesmos e da respectiva resposta imunitária, desdobrando os horizontes da vacinação - agora não só preventiva e também possível contra doenças não infecciosas.  Com isso, oito anos apenas depois da primeira transferência genética no homem52, em 1990,  trinta indústrias de terapia genética e três grandes periódicos especializados foram  criados, enquanto 200 projetos para ensaios foram aprovados, com dois mil pacientes submetidos (o mesmo se dando em maior escala na veterinária e na agronomia) - mas apenas uma dúzia de pessoas portadoras de doenças raras foram de fato beneficiadas.  Apesar do arrefecimento do otimismo inicial, a luta contra os obstáculos encontrados prossegue forte e promete vitórias reais a médio prazo, em virtude do resultado potencial, sobretudo econômico.
            Assim, o otimismo molecular do final do século 20 poderia eqüivaler à euforia pastoriana do final do século 19, se não fosse a dura, irônica e paradoxal realidade da AIDS, e não só dela - conferindo a esta idade a conotação de, em vez de belle époque, de triste époque.  De fato, os anos de 1982/83 ficarão como a data em que a medicina tomou conhecimento da bactéria  ralacionada à úlcera péptica51, do vírus causador da AIDS30 e da bactéria causadora da única mas persistente infecção de importância transmitida por vetor nos EUA, a doença de Lyme7 (as duas bactérias são espiroquetóides, longamente postos em segundo plano pelo vedetismo hegemônico do espiroqueta da sífilis - quando os clínicos foram treinados para pensar sifiliticamente10).
            Antes, admitia-se que o simples desenvolvimento sócio-econômico dos países atrasados os livraria das infecções, o que, convém não esquecer, continua válido em geral para as pestilências clássicas, enquanto em seu comportamento tradicional.  O slogan da OMS de saúde  para todos no ano 2000, desde 1978, pressupunha que, mesmo sem o desenvolvimento, a chegada de cuidados primários a todos anteciparia pelo menos um mínimo de igualdade sanitária mundial, o que, inclusive, seria do interesse sanitário das próprias nações ricas.  Ainda mais, se nos cuidados primários fossem incluídas imunizações globalmente administradas, velhas companheiras do homem seriam riscadas da nosologia, como de fato foi anunciado para a varíola e a poliomielite e deve acontecer com outras infecções facilmente imunizáveis, inclusive por meio de vacinas molecularmente aperfeiçoadas ou criadas.
            Tais expectativas foram modificadas pelo anúncio sucessivo de infecções completamente novas, como as três citadas, e até de agentes infecciosos de nova natureza, como o prion, que caracteristicamente primam por desconhecer os limites entre ricos e pobres, anulando aquela idéia de que as pestes eram problema secundário entre os ricos (isso foi profetizado no episódio em que Ross, quando recepcionado na mansão de Osler, mostrou que este tinha o mosquito da malária em seu quintal). Depois delas a OMS reformulou seu programa de imunizações globais, abrindo-se inclusive à cooperação interinstitucional mais ampla e ao financiamento adicional, mesmo que implique riscos ligados à ética da pesquisa em sujeitos humanos.  Os EUA, conscientes de ameaças não só externas48, descentralizaram em rede sua vigilância, mesmo que assim fiquem cada vez mais  expostos a episódios histéricos (envolvendo interesses econômicos), como o da gripe suína do Fort Dix (New Jersey, 1976), ou os ligados às subviroses ebola e da vaca louca22, e à gripe do frango chinês.
            Assim como no final do século 19 e início do 20 toda a nosologia foi vasculhada à procura da etiologia microbiana -  a comprovação da relação entre infecção e tumores e, principalmente, entre infecção e úlcera péptica (doença em certa época admitida como peculiar a intelectuais) desencadeou, exatos cem anos depois, nova busca sistemática, desta vez facilitada por diagnósticos simplificados.  O escrutínio incide, assim, sobre agentes causadores ou aceleradores de afecções até então tidas como não infecciosas, sobretudo as chamadas doenças degenerativas.  Ao mesmo tempo procura-se compreender a ecologia microbiológica (inclusive de criptobiontes) própria dos canais internos, mas abertos, do corpo (digestivo, respiratório e gênito-urinário) e da pele, especialmente seu equilíbrio crítico nas respectivas cavidades ou canais de contato externo.
            O apagamento dos limites entre ricos e pobres, entre micróbios patogênicos e não patogênicos e entre entidades infecciosas e não-infecciosas, acrescidos dos fatos de que a medicina molecular, em um de seus procedimentos-meio, está obrigada a dominar o ciclo biológico dos microorganismos e de que o vírus de computador faz de um símile virtual uma insegurança real e doméstica, mostram que a microbiologia retomou seu status inaugural, o que deverá  ser talvez uma das características da medicina no início do novo milênio.  Profunda decepção ocorrerá se tudo isso, além de produzir lucros e fazer brilhar pessoas, grupos, instituições ou países, não resultar no mínimo, ou seja, livrar as populações da cotidiana ameaça de doenças sabida e completamente evitáveis.      
            Tal novo posicionamento da infectologia  na medicina e na sociedade deveria ser absorvido logo.  Seus aspectos mais traumáticos, em vez de recebidos como bíblico castigo para desregramentos de costumes, devem ser assumidos lucidamente como coerente contrapartida à inestrutura característica do edifício tecnológico erigido nos últimos 150 anos.  Este resultou mais de interesses industriais do que de quaisquer outros, deixando lacunas feitas de assincronias e desarmonias. 
            Assim, se, por um lado, males como tais parecem inoportunos nesta altura da civilização, por outro,  devem ser considerados plausíveis e até inerentes ao desarranjo vertical do aparato tecnológicos de que dispomos.  A horizontalidade do quadro nosológico da AIDS, por exemplo, surpreendeu em trajes sumários os perfilados subespecialistas, deixando-os incapazes de qualquer abordagem inteligente, desmoralizando-os em sombrio fiasco imobilista.  De fato, o desafio nela inscrito transecciona nossa frágil capacidade de enfrentá-lo, através de um corte veloz  e desnorteador que vai da dermatologia à urologia, da ginecologia à neurologia, da imunologia à gastrenterologia, da hematologia à pneumologia, da infectologia à ecologia, da religião à sexologia, do direito à indústria, da pesquisa à toxicologia, da epidemiologia à burocracia, da informática ao preconceito, das universidades aos bordéis. 
            Como a morte negra pela peste bubônica na Idade Média foi a dura pedagogia preparatória do despertar renascentista, esperemos que o aparente apocalipse das novas pestes passe a ser exemplarmente pedagógico para a desejada renascença pós-industrial do século 21. É possível, então, que uma epidemia de lucidez acometa toda a humanidade.


                                   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. ALLISON, AC: Protection afforded by sickle-cell trait against subtertian malarial     infection. Brit M J 1: 200, 1954.
  2. AMADO, J: Teresa Batista cansada de guerra. 20 e.  Rio.Record, 1983.
  3. BALENA, A: Desordens reflexas do rytmo cardiaco na uncinariose. An Fac Med UMG           1: 23, 1929.
  4. BANDEIRA, M: Antologia poética. 12 e. Rio. J Olympio, 1981.
  5. BOCCACCIO, G: Decamerão. 2v. Tradução. S Paulo. Abril, 1981.
  6. BRINK, A: A muralha da peste. Tradução. S Paulo. B Seller, sd.
  7. BURGDORFER, W e col : Lyme disease - a tick borne spirochetosis? Science 216: 1317, 1982.
  8. CAMÕES, L: Os lusíadas. Rio. Tecnoprint, sd.
  9. CAMUS,A: A peste. Tradução. 3 ed. Rio.  Record, sd.
10. CARRARA, S: Tributo a Vênus. Rio. Fiocruz, 1996.
11. CARVALHO, LG: História clínica dos poetas brasileiros. B Horizonte. E autor, 1995.
12. CHAGAS, C: Estudos hematológicos no impaludismo. Tese.           Rio. P União, 1903.
13. CHALOUB, S: Febre na cidade. S Paulo. C das Letras, 1996.
14. COHEN, J: Is an old virus up to new tricks? Science 277: 312, 1997.
15. CORBIN, A: Saberes e odores - o olfato e o imaginário social         nos séculos XVIII e XIX. Tradução. S Paulo. C das Letras,                 1987.
16. DEFOE, D: Um diário do ano da peste. Tradução. P Alegre. L&pm, 1987.
17. DUMAS Fo, A: A dama das camélias. Tradução. Lisboa. Minerva, 1972.
18. FARID, MA: El programa antipalúdico - de la euforia a la anarquia. Foro Mundial de             la Salud 1: 11, 1980.
19. GIGON, F: A epopéia da Cruz Vermelha - a vida de Henri Dunant. Tradução. S Paulo.            Melhoramentos, sd.
20. GRMEK, M: Histoire du sida - début et origine d’une pandemie actuelle. 2e.  Paris. Payot, 1990.
21. GRMEK, M: Les maladies à l’aube de la civilization occidentale. 2e. Paris. Payot,    1994.
22. HIRSCH, M e col: L’affolante histoire de la vache folle. Paris. Balland, 1996.
23. IBSEN, H: Um inimigo do povo. Tradução. P Alegre. Globo, 1984.
24. LEWIS, S: Arrowsmith. 5 e.  N York. Pocket, 1949.
25. MANN, T: A morte em Veneza. Tradução. S Paulo. Flama, 1944.
26. MANN, T: A montanha mágica. Tradução. Rio. N Fronteira, 1980.
27. MARQUEZ, GG:  O amor em tempos de cólera. Tradução. Rio. Record, 1995.
28. MARTIUS, CFP: Natureza, doenças, medicina e remédios dos índios brasileiros (1844).         Tradução. S Paulo. Nacional, 1939.
29. McNEILL, WH: Plagues and peoples. N York. Anchor, 1976.
30. MONTAGNIER, L e col: A new type of retrovirus isolated from patients presenting                with lymphadenopathy and acquired immune deficiency syndrome - structural and            antigenic relatedness  with equine infectious anaemia virus. Ann Virol 135E: 119,            1984.
31. MONTENEGRO, TH: Tuberculose e literatura - notas de pesquisa. Rio. Ibge, 1949.
32. MUNTHE, A: O livro de San Michele.  Tradução. 15 e. P Alegre. Globo, 1984.
33. NAVA, P: Chão de ferro.  Rio. J Olympio, 1976.
34. NICHOLL, AM: The nontherapeutic use of psychoactive drugs - a modern epidemic. N          Engl J Med 308:925,1983.
35. OLIVEIRA, CA e col: Simulação clínico-radiológica da úlcera péptica duodenal pela              estrongiloidose.  Rev Bras Gartroenterol 16:11, 1964.
36. PIERUCCETTI, F: Em Minas, o início do ensino médico no Brasil. Rev Méd Minas Gerais 2: 191, 1992.
37. REGO, JL: O moleque Ricardo. 14 e. Rio. J Olympio, 1981.
38. ROSA, JG: Grande sertão - veredas. 13e. Rio. J Olympio, 1979.
39. ROSEN, G: Da polícia médica à medicina social - ensaios sobre a história da             assistência            médica. Tradução. Rio. Graal, 1980.
40. RUFFIÉ, J; SOURNIA, JC: Les épidémies dans l’histoire de l’homme - de la peste au             sida. 2e. Paris. Flammarion, 1993.
41. SALGADO, JA: O Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais. Rev Med Minas             Gerais 1: 106, 1991.
42. SÁNCHEZ, JL: Finlay - el hombre y la verdad científica. La Habana. E Científico-   Técnica, 1987.
43. SHAW, B: The doctor’s dilemma. A tragedy. London.      Longmans, 1957.
44. SNOW, J: Sobre a maneira de transmissão do cólera. Tradução. 2e. S Paulo.               Hucitec,1990.
45. THOMPSON, JD; GOLDIN, G: The hospital - a social and architectural history. New             Haven. Yale University P, 1975.
46. TUCÍDIDES: História da guerra do Peloponeso.  Tradução. 2e. Brasília. E da UnB, 1986.
47. VERGER, PF: Orixás - deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Tradução.2e.    Salvador. Corrupio, 1997.
48. VERGHESE, A: Minha terra - história de um médico nos tempos da AIDS. Tradução.
                S Paulo. C das Letras, 1995.
49. VIGARELLO, G: O limpo e o sujo. Tradução. S Paulo. M Fontes, 1996.
50. VOGELSANG, TM: Leprosy in Norway. Med Hist 9:29, 1965.
51. WARREN, JR: Unidentified curved bacillus on gastric epithelium in active chronic gastritis. Lancet 1:1273, 1983.
52. WOLFF, JA, LEDERBERG, J: An early history of gene transfer and therapy. Hum   Gene      Ther 5: 469, 1994.
53. ZINSSER, H: Rats, lice and history. New York. Bantam, 1965.

                (Ver bibliografia genérica na primeira edição)