OS MEIOS DE
VIDA, AS INFECÇÕES E O DESTINO DO HOMEM
João
Amílcar Salgado
INTRODUÇÃO
Nosso
objetivo não é resenhar aqui a história das doenças infecciosas, e sim
convencer o leitor de que vale a pena dedicar-se à fascinante leitura e busca
de seus diversificados aspectos, e não só para o deleite cultural pessoal, mas,
sobretudo, para benefício dos pacientes e da comunidade.
De
fato, a história das doenças infecciosas pode ser definida como apenas a
sucessão de suas descobertas pela medicina oficial. Mas pode incluir também a compreensão das
relações recíprocas entre o homem e as condições socio-ambientais de infecção,
ao longo dos tempos, inclusive antes do estabelecimento do homem nos diversos
ambientes. Por exemplo, a história da
doença de Chagas tem sido relatada a partir de sua descoberta no começo do
século 20, mas pode ser investigada em sua relação com a migração de animais
placentários e marsupiais ocorrida nas Américas, por efeito da deriva dos
continentes, há milhões de anos. Também
a tuberculose pode ser encontrada em múmias sudano-egípcias de 6000 anos atrás
ou em lesões vertebrais de macrópodos do plioceno.
Nesta
linha, pode ser de considerável interesse verificar comparativamente os
processos pelos quais as comunidades biológicas têm conseguido conviver com as
infecções, independentemente do homem.
Por exemplo, a humanidade, mesmo com a ajuda da medicina, tem tido
dificuldades, durante todo o tempo, para sobreviver a três ou quatro espécies
de protozoário causador da malária18, enquanto os macacos da Amazônia têm sobrevivido, com aparente
sucesso até agora, a quinze ou vinte espécies de causador semelhante29.
NEM TREVAS NEM EXCESSO DE
CONFIANÇA
Bastam
esses dados para evidenciar que a perspectiva histórica do conhecimento das
infecções envolve muito mais do que o antigo valor decorativo que se lhe
atribuia. Aliás, o menosprezo que alguns
especialistas tecnicistas dedicavam às “trevas” do passado era resultado tanto
da superficialidade de seu preparo, quanto de seu entusiasmo mais deslumbrado
que realista diante das “conquistas” modernas.
A melhor porção da geração recente se mostra madura, cautelosa e
crítica, evitando o excesso de confiança na tecnologia médica, inclusive porque
está cada vez mais consciente de que a maior parte desse entusiasmo é produzida
propositadamente para o consumo forçado de produtos, entre eles os
antimicrobianos.
Os
profissionais que se salientam como autoridade em determinado ramo de atividade
o fazem proporcionalmente ao domínio que demonstram de seus aspectos
evolutivos, inclusive como base para ampliar conhecimentos e para aplicá-los,
de acordo com as circunstâncias, em benefício da sociedade. No caso das doenças infecciosas isso é mais
verdade ainda. Os melhores clínicos e
pesquisadores há muito já não discutem que o saber referente à história das
infecções é maneira agradável de
aprofundar conhecimentos, consubstanciar condutas clínicas e alargar os
horizontes da investigação científica.
Aí a própria história dos cuidados
com a infecção é mestra para os clínicos, pois a humanidade descobriu
como prevenir (tabus, quarentena, imunização) muito tempo antes de saber
diagnosticar etiologicamente e tratar farmacoquimicamente as infecções.
Com
a maior velocidade, precisão e disponibilidade da informação histórica,
constitui hoje estimulante e esclarecedor exercício corrigir pontos de vista
tendenciosos veiculados apressadamente, quer para prestigiar países, pessoas ou
correntes de pensamento médico, quer por simples desinformação. Eloqüente ilustração
deste jogo da verdade foi a cena impressionante, vista por milhões na
televisão, da retratação afinal havida pela falsificação da descoberta do virus
da imunodeficiência adquirida.
MEMÓRIA TECNOLÓGICA
Basta
ser inicialmente atraído pelos aspectos históricos de determinado assunto que o
indivíduo - seja ele cientista, professor, estudante ou qualquer cidadão -
passe daí em diante a ser zeloso preservador de objetos, documentos e
depoimentos. Os documentos e depoimentos
são hoje muito fáceis de gravar e reproduzir.
Já os objetos necessitam de cuidado especial, principalmente para que
constituam organizadamente o que denominamos memória tecnológica. Por
exemplo, os estudantes de medicina, odontologia e enfermagem, ao serem
treinados em hospital sofisticado, aprendem a manejar equipamentos automáticos
e até robóticos de esterilização, deixando de tomar conhecimento de
equipamentos em desuso, acionados eletricamente, a vapor ou ao fogão. Se eventualmente, em etapa posterior do curso
ou no exercício profissional, forem forçados pelas circunstâncias a regredir a
estes recursos obsoletos, mas no caso necessários e eficazes, deverão para isso
estarem preparados, por meio do contato com a memória tecnológica, propiciada
pela preservação não só de todos os exemplares possíveis desses equipamentos,
mas preservados em pleno
funcionamento. Os currículos dos cursos
na área da saúde devem, pois, dispor coerentemente de um centro de memória
geral, que deverá incluir a memória tecnológica a ser aproveitada, quando necessário,
em ambulatórios periféricos ou estágios rurais41.
A HISTÓRIA COMO MESTRA DOS
CLÍNICOS
A
crescente consciência da necessidade de preservação do patrimônio ecológico e
histórico das comunidades mostra que os currículos, os departamentos, as disciplinas
e as aulas nos quais não se valorize tal patrimônio estarão ultrapassados. Assim, os currículos na área da saúde não só
devem incluir disciplinas, pelo menos optativas, da história respectiva, mas
devem incluir os aspectos históricos entre os objetivos educacionais em cada
disciplina, reciclando-se se necessário os docentes para isso. Cada unidade e a universidade devem ter um
acervo sempre em expansão, inclusive porque com ele se evitam aulas expositivas
desinteressantes, que serão então substituídas pela participação estudantil na
busca e preservação dos bens culturais.
No curso de História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) verificamos a admirada surpresa dos estudantes diante do convite para
participarem do grupo que investigava as relações entre a tuberculose da coluna
vertebral de que se supõe sofria o padre José de Anchieta e a saúde dos
brasileiros catequizados por ele: era um desafio para aprender clínica,
ecologia humana e uma História do Brasil com sabor oposto ao do insípido curso
colegial. A mesma tuberculose seria
retomada mais tarde quando se tratou de relacionar a fundação da Faculdade de
Medicina da UFMG e o prestígio
terapêutico do clima de Belo Horizonte, o qual atraia pacientes, terapeutas e
também médicos acometidos pela infecção, entre eles fundadores da Faculdade41. Por sua vez, os manuais e tratados, gerais e
especializados, devem voltar a incluir capítulos e parágrafos de introdução
histórica.
MEMÓRIA CLÍNICA E CULTURA
Outra
saudável e fecunda prática que o cientificismo tecnicista tem impedido de ser
exercida é o encontro das doenças infecciosas na literatura e nas obras de
arte. O profissional de saúde e,
obrigatoriamente, o infectólogo devem ser estimulados a encontrar na criação
artística o impacto das infecções sobre o homem, desde o folclore, a mitologia
e a Bíblia, até a ficção, a escultura, a pintura, a música, o teatro e o cinema (exemplos de
filmes: A Dama das Camélias, Paixão dos Fortes, Se Todos os Homens do Mundo, Ben Hur, O Enigma de Andrômeda, Epidemia;
e, na televisão, Floradas na Serra).
De
fato, o futuro profissional terá melhor notícia de doenças não mais incidentes,
hoje raras ou menos graves ou, ainda, agora recrudescentes - não nos livros técnicos, mas ao apreciar
obras de arte, como, por exemplo, O Livro de San Michele de Axel Munthe32,
Montanha Mágica e Morte em Veneza ambos de Thomas Mann25,26, Grande Sertão -Veredas de Guimarães Rosa38 e Amor em Tempos de Cólera de Garcia
Marques27, ou então as peças teatrais Um Inimigo do Povo de Ibsen23 e O Dilema do Médico de Bernard Shaw43. O clima real de uma epidemia de varíola no
Brasil será melhor captado em Teresa Batista Cansada de Guerra de Jorge Amado2 ou o da pandemia gripal de
1918 em Chão de Ferro de Pedro Nava33. Nesse sentido, entretanto, a obra-prima
(mesmo competindo com os citados e ainda com Tucídides46, Bocácio5
e Defoe16) continuará sendo A
Peste de Albert Camus9, magistral descrição da peste bubônica
por autor não-médico.
Outra
relação pode ser buscada na própria biografia dos artistas, como no caso de
Ticiano, que pintou A Coroação de São
Marcos como ex-voto pela peste de 1510, ou como no caso do
Aleijadinho, para cujo aleijão causas infecciosas foram levantadas. Outro exemplo é o de Shakespeare, cuja carreira
de teatrólogo foi decisivamente influenciada pelo fechamento dos teatros
londrinos durante a peste de 1592-93.
Em
1976, no Seminário de Integração Vertical do Currículo de Medicina da UFMG, foi solicitado aos
participantes, entre eles cientistas do ciclo básico e vários com pós-graduação
nos EUA, responder se haviam lido o livro Arrowsmith
de Sinclair Lewis24. As
respostas foram negativas e apenas um professor de bioquímica tinha ouvido
falar desta obra, que, tendo como personagem central um pesquisador na área das
doenças infecciosas, analisa criticamente o cientista moderno e sua ética
ambivalente.
CONTRAMEMÓRIA DAS MEDICINAS
OFICIAL E COLONIAL
Representantes
da medicina oficial no Brasil chegaram a doutrinar que neste país não ocorria a
escarlatina. A razão do equívoco reside
no fato de que, em uma comunidade multirracial, a pessoa, para ficar escarlate
ao sofrer a escarlatina, tem de ter a pele branca, a menos que o médico seja
tão competente que diagnostique a infecção por outros sinais, ou pelo menos a posteriori, diante da descamação
cutânea em negros e mulatos.
Viezes
como esse explicam vários acontecimentos da história da medicina, como, por
exemplo, denominar de exótica a
chamada patologia tropical. Ela foi
assim considerada pelos países colonialistas, inclusive aquelas infecções que,
existentes lá e cá, desapareceram lá50 e persistiram cá por
persistir aqui a pobreza. Ainda no
século 15, quando os portugueses começaram a explorar os primeiros arquipélagos
do Atlântico, no contorno da África, alguém proposital ou ilusoriamente alegou
que o óleo de tartaruga era soberano contra a lepra. Com isso aconteceram três coisas: 1) a
metrópole exportou seus leprosos; 2) as
colônias infectaram-se nas condições imunitárias em que se achavam; e 3) as tartarugas
foram dizimadas.
Mesmo
com todos esses fatos podendo ser percebidos, as escolas médicas ainda insistem
em manter aqui cadeiras, disciplinas ou cursos de Medicina Tropical. É o mesmo que confessar que os cursos e
disciplinas restantes não tratam da
realidade local. O mais inacreditável
ocorre quando, para fielmente copiar a metrópole colonial, tais cursos ou
disciplinas se referem a pacientes adultos, e isso em países com grande
proporção de crianças, que, nesta idade
e por serem desnutridas, são alvo compreensível, como se verá, de infecções,
inclusive múltiplas.
HIATO ENTRE DESCOBERTA E
BENEFÍCIO
Outro
fator de consciência crítica que a história da medicina nos oferece é o
fenômeno da dissociação entre descoberta
e uso clínico. De fato, do modo
jornalístico como se costuma relatar o progresso médico fica parecendo que os
clínicos levaram poucos dias, em vez de séculos, para beneficiar seus pacientes
com, por exemplo, a descoberta da circulação do sangue. No caso das infecções, significativa foi a
afirmação do médico cubano Carlos Finlay42, em 1881, de que o
mosquito é o transmissor da febre amarela, confirmando observação anterior
feita na Venezuela, em 1854, por outro médico antilhano, Daniel Beauperthy29. Somente cerca de vinte anos depois, no início
do século 20, é que essa descoberta beneficiou as populações, inclusive no
Brasil, pois o esnobismo científico se
negava a admitir revelação tão importante feita por um simples clínico nativo. Em 1903, em sua tese inaugural, o doutorando
Carlos Chagas12 estampava o pensamento estabelecido: “Da febre
amarela a terapêutica é ainda uma utopia; está limitada a intervenção
médica nessa terrível moléstia ao
combate, o mais das vezes improfícuo, dos sintomas, e isso porque a
etiopatogenia dela é ainda completamente desconhecida”.
As
próprias verificações de Pasteur, ainda mais um não-médico, não tinham sido
universalmente aceitas após o início do século 20. Afonso Pavie, um ex-estudante de medicina
francês, ao desenvolver a planta da Santa Casa da cidade de Itamarandiba, Minas
Gerais, em 1910, alegava basear-se em Pasteur para provar que este tinha razão
quanto aos meios de se prevenirem as infecções.
Em Belo Horizonte, a 250 km de Lassance, onde foi
descoberta a doença de Chagas, e em 1929, vinte anos após a descoberta, foi
publicado um artigo sobre as arritmias cardíacas em pacientes ancilostomóticos,
sem a menor suposição de que fossem chagásicos3. Como não se trata de incompetência, pois o
autor era dos maiores clínicos locais, a explicação pode ser encontrada na
campanha de descrédito que a medicina oficial desencadeara antes contra Carlos
Chagas, levando os clínicos a nem sequer pensar na tripanossomose entre
hipóteses diagnósticas. O silêncio assim
determinado levou os argentinos, por seu lado, a reivindicar para Salvador
Mazza uma segunda descoberta da
doença, na década de trinta. Foi, pois,
a tradicional rivalidade entre Brasil e Argentina, e não fatos científicos, que
aproximou nossos clínicos do diagnóstico da doença de Chagas, ou seja, nos
aproximou de nossa própria verdade nosológica.
Já
o caso do diagnóstico seletivo da estrongiloidose é da maior atualidade. Para ele, Morais, em 1948, criou a adaptação
do método de Baermann ao exame das fezes.
Vinte anos depois (e ainda até hoje, em geral), os clínicos continuaram
a encarar a infecção como rara, enquanto, a partir daquela inovação, sabe-se
que sua prevalência pode chegar a quase metade da maioria de nossa população,
equívoco que leva suas vítimas a serem tratadas como pacientes neuróticos ou
ulcerosos35.
Mais
três exemplos são o DDT, descoberto em 1875 e só usado depois de 1940, a sulfanilamida,
descoberta em 1908 e só usada clinicamente cerca de trinta anos depois, e a
bactéria relacionada à úlcera péptica, descoberta em 1906 e só levada a sério
em 1983.
A VERDADEIRA RELAÇÃO ENTRE
INFECÇÃO E SOCIEDADE
A
doença do sono constitui um dos exemplos mais interessantes da influência de
uma infecção sobre aspectos desde a ecologia até a cultura de determinado
povo. É que o parasita causador dessa
infecção permite a sobrevivência dos rebanhos de herbívoros selvagens, mas não
poupa o homem, impedindo que este dizimasse aqueles, como o fez onde não
ocorria a doença. Por outro lado, a
impotência diante da peculiar morbimortalidade dessa tripanossomose africana
provavelmente está relacionada com o sistema médico-religioso da cultura
Azande, caracteristicamente estruturado em bruxaria, oráculos e magia. Talvez o caso mais radical de impacto de uma
infecção sobre a população seja a seleção genética resultante da simbiose entre a malária e a
drepanocitose1.
Além
do plano ecológico e antropológico, podemos verificar interações entre fatos
econômico-sociais e infecção. Embora os
historiadores tradicionais tenham feito parecer que a história humana se
restringia à história das guerras entre os povos, hoje há a consciência da
determinação social desses e de todos os demais acontecimentos. Assim, os meios de sobrevivência, sejam eles
econômicos em senso estrito, sejam econômicos em senso lato, incluindo-se aí a
economia biológica, são hoje objeto da atenção mais lúcida e ampla dos
historiadores.
Tomemos
o caso das populações mais primitivas que habitavam a floresta úmida: o número
de indivíduos e o nível de sua organização social eram coerentes com a
sobrevida dos grupos, inclusive às infecções peculiares a seu ambiente e a sua
alimentação. Quando tiveram necessidade
econômica de partir da floresta para a savana, além da adaptação no plano
social, tiveram que se adaptar ao impacto de novas infecções decorrentes da
nova fonte alimentar. Quando, nesse
mesmo processo, foram levados a ambientes cada vez mais frios pela atração
econômica da caça aí abundante, exigiu-se a criação de procedimentos contra o
frio. Estes, a princípio, implicavam o
contato pele-a-pele, junto a
fogueiras noturnas, e depois, com a evolução do vestuário e da habitação,
decorrente inclusive da escassez progressiva de lenha, fizeram da aglomeração
dos micro-ambientes verdadeiro contato mucosa-a-mucosa. É possível que os próprios agentes
infecciosos tenham acompanhado o processo e curiosamente até dentro do mesmo
gênero. Por exemplo, uma micobactéria de
veiculação muco-cutânea (lepra) seria substituída por outra estritamente mucosa
(tuberculose), o mesmo ocorrendo com treponemas (respectivamente a bouba e a
sífilis)21,29.
Mesmo
no desfecho das guerras, ocorreram outros acontecimentos tão ou mais
importantes do que a potência de arcabuzes e canhões. Quando Cortez, apoiado em poucos espanhóis,
subjugou a evoluída civilização asteca, dotada de numeroso exército, o sucesso
se deveu menos à superioridade da arma de fogo em mãos européias e mais a uma
epidemia de varíola, devastadora para os indígenas e menos mórbida para
aqueles. Ironicamente, Cortez, mais
tarde, para tratar de sério ferimento na cabeça, provavelmente infectado,
sofrido na batalha de Otumba, teve de recorrer desesperadamente a um pajé de
Tlascala, que o curou com admirada rapidez.
A febre amarela da ilha de São Domingos pode ter levado Napoleão a
vender a Luisiana aos EUA e pode também ter enfraquecido seus recursos
militares, fazendo fracassar o coroamento de suas conquistas.
Não
se trata de ficarmos imaginando como seriam os EUA parcialmente franceses ou
Napoleão vitorioso sobre Moscou e Londres, caso a história humana tivesse sido
previamente autoclavada. Trata-se apenas
de afastar o ocultamento das verdades, quaisquer que sejam. Devemos reconhecer, no entanto, que erro
igual ao de censurar as pestes entre as guerras cometeríamos se nos deixássemos
contaminar pela paranóia de querer narrar o passado como se ele fosse uma
conspiração de micróbios contra o homem.
O
episódio de Cortez com os astecas mostra que os brancos devem ter aprendido
muito cedo a maneira biológica de praticar aquilo que viria a ser um dos maiores
genocídios da história e que resultou no extermínio de tribos e tribos, do Polo
Norte ao Polo Sul. Parece que o
extermínio por arma de fogo ocorrido na América do Norte e no cone sul da
América do Sul (inclusive por brasileiros na destruição das reduções
jesuíticas) foi feito quando a expropriação do espaço econômico era mais
urgente. Nos demais lugares bastou
incluir roupas de variolosos junto a presentes deixados no mato para serem
recolhidos pelos índios. E o
procedimento se prolonga a nossos dias na Amazônia, onde por avião é fácil
levar pessoas gripadas para matar tribos inteiras a cusparadas. E isso não só quanto a doenças epidêmicas,
pois também se disse que o Brasil se sifilizou antes de se civilizar (quando,
também, a primeira terapia da blenorragia era desvirginar meninas, passando
adiante o mal) - e mais ou menos assim ocorreu com as demais endemias.
Seria
errôneo pensar que importamos apenas os agentes infecciosos das diversas
doenças: vieram também os modismos de tratamento ou as atitudes substitutivas
frente à impotência terapêutica. No
século 19 acreditava-se que a humanidade estava chegando a um apogeu técnico
(de um modo mais ingênuo e menos proposital que aquele difundido
presentemente), o que culminou na
concepção vitoriana das coisas, na paz britânica, na era da certeza ou belle époque. Pois bem, tal cosmovisão contrastava com a
tuberculose endêmica, que não poupava a elite dirigente (século das luzes e da tuberculose).
Então foi necessário incluir aí a idéia de que a tuberculose não só era bela como afrodisíaca. E a
beauté phtisique da dama das camélias (na vida real Marie
Duplessis): magreza, palidez de fundo, rubor febril e cílios alongados - em vez
de conjunto de sinais mórbidos, passou a ser indicador estético, assim como o
orgasmo em estado febril passou a prazer desejado e precioso. A camélia (Camelia japonica) é flor caracteristicamente sem perfume, própria
para símbolo nesse culto a mulheres doentias.
Ficcionistas
e poetas brasileiros adotaram e viveram tais padrões11,31 (Castro
Alves, às voltas com a infecção,
ligou-se à própria intérprete de A
Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho17), inclusive
tardiamente (como se lê no romance O
Moleque Ricardo de Lins do Rego37, de 1935). O charme antinômico de eros e tanatos da
tuberculose foi celebrizado por Manuel Bandeira, às vésperas de ser salvo pela
estreptomicina, no poema Pneumotórax4,
que, por sinal, menciona o tango argentino, outra estética fundada na mesma
antinomia e provavelmente na mesma doença (ver também a versão operística do
tema cameliano na criação de Verdi, La
Traviata, de 1850).
Os
sanatórios para tuberculosos em clima de
altitude foram a primeira indústria de serviços médicos moderna, desde o final
do século 19, com seu auge entre as guerras mundiais e glamurizada na Suiça e também no Brasil (Belo Horizonte, Campos do
Jordão, Santos Dumont).
ANAMNESE DAS INFECÇÕES DA
HUMANIDADE
Como
foi dito, a cultura tradicional minimizou ou ignorou o significado da relação
ente as infecções e a história. Quem
primeiro chamou a atenção para a importância histórica delas foram os microbiologistas cultos, que, no
entanto, deixaram de fazer estudo mais abrangente, em virtude de não serem
historiadores. A obra clássica desse
tipo é a do patriarca da microbiologia norte-americana Hans Zinsser, intitulada
RATS, LICE AND HISTORY53, de 1935, sendo justo lembrar também
Charles Nicolle, que, em 1930, já falava de infecções inaparentes e profetizava as doenças do futuro. O estudo, também já clássico, do tema, feito
abrangentemente por historiador, é o livro de William H. McNeil, PLAGUES AND
PEOPLES29, publicado em 1976.
Nele o autor propõe cinco períodos da história, resultantes de mudanças
econômicas e ecológicas, das quais decorreram comportamentos característicos da
infecção humana: 1) antes de 500
aC; 2) de 500
aC a 1200; 3) de 1200 a 1500; 4) de 1500 a 1700; e de 1700 até o
presente.
ANTES DE 500 aC: O HOMEM SE DOMESTICA E ESTABILIZA A INFECÇÃO
Nesse
período, observam-se a crescente mobilidade do homem para diversificadas
paisagens e, ao mesmo tempo, progressiva urbanização. Ocorre a domesticação de plantas e animais,
bem como a correspondente fixação do contato peridoméstico e doméstico com os
predadores destes. Por causa da
crescente estocagem e abundância dos mesmos, dá-se a predação do homem pelo
homem. Todas essas condições trazem a
correspondente domesticação de infecções, até hoje incorporadas ao destino
humano. Na conquista da agricultura,
tivemos uma primeira etapa em que predominou o preparo da colheita pelo fogo e
que pode ser relacionado à intensificação da malária, inclusive o
desenvolvimento de mosquitos com preferência pelo homem. Posteriormente, o desenvolvimento da
irrigação, ligada às grandes civilizações dos vales de grandes rios, pode ser relacionado ao advento da
esquistossomose no Oriente e na África, inclusive atestado pela verificação
dessa parasitose em múmias datadas de mais de mil anos aC. Aqui, a institucionalização do parasitismo do
homem pelo homem (escravidão) pode ser relacionada a uma espécie de simbiose resultante de o homem parasitar
o homem parasitado pelo verme. É que a
infecção, debilitando a população de pés molhados, facilitava o domínio dela
por gente que mantinha secos seus pés e assim usufruía mais e melhor o trigo e o pão produzidos com aqueles
- tal como se lê na Bíblia no caso de hebreus escravizados no Egito, sendo,
inclusive, simbólico que seu libertador, Moisés, tenha sido recolhido do rio.
Aqui
vale lembrar que o impacto das terapias modernas pode levar-nos a esquecer que
o convívio inicial do homem e de seus antepassados com as infecções se deu
concomitantemente ao desenvolvimento de diversos modos de proteção contra elas,
alguns dos quais até hoje de grande validade.
As
repulsas olfativa, gustativa e visual do homem a determinados odores,
principalmente putrefativos, e sabores, bem como a determinados objetos,
principalmente fezes e cadáveres (de cor amarela), não ocorrem evidentemente
entre os abutres e as hienas, os quais sobrevivem exatamente graças à atração
que sentem pelo aspecto, o paladar e o
odor da carniça. Embora o homem possa
ter sido comensal desses animais, quando ainda não desenvolvera suas
habilidades de caça e com o fogo, sua evolução posterior se deu no sentido da
ingestão de carne fresca crua ou assada, deixando de ser adaptado ao consumo de
carne putrefata. Assim a repulsa a
objetos ou ambientes ofensivos ao olfato, ao paladar e à visão parece ter sido
um dos elementos primordiais da prevenção de infecções no homem. Ela inclui o reflexo da náusea e está
inscrita nas expressões asco, cheiro nauseabundo e aspecto
disforme, desfigurante ou asqueroso de objetos e ambientes. O próprio termo infeccionar, ou,
anteriormente, inficcionar, está relacionado a mau cheiro, como atesta o
próprio poeta Camões (morto durante a peste de 1579-81, em Lisboa), aludindo à
lesão das gengivas numa doença, por sinal, não infecciosa, o escorbuto, em “Os
Lusíadas” (canto V-82)8:
“Apodrecia
c’um fétido e bruto
Cheiro
que o ar vizinho inficcionava.”
Essa
deve ter sido a base primitiva da teoria miasmática, que relaciona as infecções
a miasmas - transmissores aéreos de doenças emanados de putrefações. Também é a base para o uso de substâncias
aromáticas e/ou coloridas para neutralizar infecções, o que veio revelar-se
nada contraditório, do ponto de vista microbiológico, pois várias substâncias
aromáticas e vários corantes, ao longo do tempo, foram selecionados como
eficazes e usados até o presente na qualidade de germicidas ou quimioterápicos,
como os bálsamos, o enxofre (usado desde Hipócrates para “fumigar” contra
miasmas), a cal, o iodo, o azul de metileno, a violeta de genciana, o
mercúrio-cromo, o oxigênio nascente (água oxigenada, permanganato) e os
derivados de azocorantes (sulfas). Estes
últimos fizeram da indústria farmacêutica um prolongamento da indústria de
cores para tecidos. Colateralmente veio o uso dos odorantes com outros fins (de
unção, eróticos), como o incenso e a mirra, os perfumes modernos e os
desodorantes atuais. Nossos índios já
sabiam disso há muito, pois colorir o corpo com urucum (vermelho) e genipapo
(preto), além de enfeite, era e é arma contra ectoparasitas, principalmente
mosquitos - assim como as plantas cheirosas são anti-pragas vegetais. Os elementos da história dos perfumes,
levantados por Corbin15 (e
levados polemicamente para a ficção) não podem ser dissociados da história das
infecções, especialmente por camuflarem a fronteira entre o limpo e o sujo49.
No
lado do aspecto repulsivo, vamos encontrar no panteon afrobrasileiro47
um dos orixás mais significativos, que é Omulu, uma das formas de Xampaná,
divindade primitiva, que rege as doenças, principalmente epidêmicas (Cf13).
No
Daomé (Benin), origem do culto a Omulu, a varíola era temida, mas provavelmente
com tendência a aí endemizar-se e infantilizar-se. É ilustrativo que Omulu-jovem, chamado
Obaluaê, seja também caracterizado como o orixá da varíola, a qual, além da
repulsa das pústulas, trazia cicatrizes cutâneas definitivas. Omulu ou Obaluaê sempre aparece nos terreiros
coberto de palha-da-costa, sendo vedado ver-se principalmente seu rosto, e sua
dança mimetiza comportamento febril, astênico ou convulsivo. Omulu e outras divindades análogas (Sacapatá,
Sapatói, Quicongo, Iximbó, Igui) de outras culturas africanas, além da cultura
iorubá (que o incorporou) e a daomeana original, é o arquétipo da vítima de
pestes e do correspondente abandono desta pelos poderes superiores, e que,
apesar disso, sobrevive mesmo deformada.
No reino de Benin havia o infanticídio de crianças defeituosas, que eram
lançadas no lago. É interessante que uma
das lendas de Omulu diz que quando sua mãe Naná verificou ser o filho leproso
foi por ela abandonado. Este foi
recolhido por Iemanjá, mas Omulu, ao crescer, rejeitou a mãe adotiva, por causa
da irreversibilidade de sua desgraça - indicativo das bases da
institucionalização do isolamento sem ser necessário matar o doente. Tal superação do infanticídio, nos
grupamentos mais estáveis, guarda semelhança com o episódio de Isaac na Bíblia,
coincidentemente numa família conviva de escrava africana.
Entre
as substâncias antiinfecciosas, das mais primitivas são o vinho, o vinagre e o
calcáreo, já que a Bíblia prescreve o reboco contra a “lepra” das casas (Lev
14: 33-48). Antigas leis persas prescreviam vasilhame de cobre brilhante para a
água potável. Os índios da Flórida já dispunham há milhares de anos de um
remédio contra vírus, o podofílio mandraque. A descoberta da destilação pelo
alquimista árabe Jabir ibn Hayyan, no século 9, fez do álcool concentrado uma
panacéia cultivada até hoje. O cloro, substância aromática ainda em uso, foi a
arma histórica com que Semmelweiss, demonstrou, nos primórdios da era
microbiológica (1851), a transmissibilidade manual da febre puerperal. O fenol, derivado do alcatrão de madeira
(muito antes presente na defumação de alimentos), foi outro instrumento histórico, com o qual Lister, com
base em Pasteur, comprovou a eficácia da antissepsia cirúrgica, em 1867 (o
impacto desta levou Ogston a queimar o grande dístico que os pacientes liam ao
entrar na sala cirúrgica: Prepara-te para
encontrar Teu Deus) .
De
todos esses recursos, entretanto, a primeira arma realmente poderosa criada
pelo homem contra animais, inclusive os micróbios, é talvez a mais antiga,
datando de 750 000 anos atrás, quando foi descoberto o uso controlado do
fogo. Desde então, vários
desenvolvimentos podem ser encarados como domínio sobre agentes de
infecção. Há cerca de 10 000 anos,
quando o catador-caçador passou a produtor de alimentos, e mesmo antes,
surgiram técnicas de estocagem que supõem a ação contra macro- e microrganismos
predadores dos excedentes, bem como os tabus alimentares, associados a
determinadas doenças. O tabu alimentar
mais conhecido é a proibição religiosa da carne de porco, meio de prevenir a
infecção por triquinela e tênia.
Ao
lado de tabus, lendas e prescrições primitivas, e datando também de antes de 10
000 anos atrás, desenvolveram-se
técnicas de conservação de alimentos que constituem extraordinária vitória
antimicrobiana. Preservar carne imersa
em gordura é exemplo de hoje entre índios da Amazônia e de uso nas fazendas
brasileiras. Técnicas como essa e como a
dessecação, a defumação e a salgação de alimentos rapidamente perecíveis
representam enorme triunfo para os que com elas se libertaram da procura diária
do alimento, inclusive permitindo novo uso do tempo e novo tipo de mobilidade
das populações, antes impossíveis. O
mesmo pode ser dito dos ácidos contidos no vinho azedo, no leite azedo e no
próprio suor, cuja ação antimicrobiana se dá seja na preservação alimentar
(invenção da coalhada, do queijo, da manteiga, do picles e da carne conservada
em leite azedo), seja no uso médico do ácido undecilênico contra micoses. Tudo isso culminou com o advento dos alimentos
enlatados em 1809.
Entre
os líbios primitivos (célebres pelo
hábito de se banharem freqüentemente), os egípcios (lavagem externa e interna
do corpo) e os caldeus, desenvolveu-se a prática da circuncisão (provavelmente
profilática de infecções mutilantes, subseqüentes ao trauma do vento arenoso do
deserto, em meninos nus) - que, entre os judeus, passou de cirúrgica a
litúrgica.
Segundo
a Bíblia, o patriarca Abraão recebeu a seguinte prescrição (Gen 17: 10-14):
“...Todo varão entre vós será circuncidado.
Cortareis a carne de vosso prepúcio e isso será o sinal de minha aliança
entre mim e vós. Todo menino no oitavo
dia de seu nascimento será circuncidado entre vós nas gerações futuras, tanto o
que nascer em casa como o que comprardes a preço de dinheiro de um estrangeiro
qualquer e que não for de vossa raça.
Circuncidar-se-á tanto o varão nascido na casa como aquele que for
comprado a preço de dinheiro. Assim será
marcado em vossa carne o sinal de minha aliança perpétua. O varão incircunciso, do qual não se tenha
cortado a carne do prepúcio, será exterminado de seu povo, por ter violado
minha aliança.”
Além
da prevenção de infecções urogenitais no próprio varão e em sua parceira
sexual, a circuncisão tem sido apontada como preventiva de neoplasmas em ambos
os sexos, inclusive relacionados a virus. É digno de admiração que os dois
ritos batismais, do Velho e do Novo Testamento - a circuncisão e a imersão
n’água, administrados como sinal de aliança, penitência ou mudança de vida -
sejam armas (e não apenas símbolos sagrados) contra infecções.
Ainda
do Torah, que é o núcleo primitivo da Bíblia, constam quatro prescrições
mosáicas relativas às infecções: o holocausto, queima total do indivíduo
sacrificado, na verdade uma celebração do poder purificador do fogo (Lev 1:
1-17), a proibição alimentar, que envolve não só a carne de porco, mas a de
outros animais terrestres, aquáticos e aéreos, inclusive a carne de predadores
carnívoros, interpretáveis como fonte de infecções graves (Lev 1: 1-47) (Cf Isa 1: 17-18), o estigma da lepra, que é
tratada ao lado de outras duas infecções, a blenorragia e a tinha (Lev 13:
1-59, 14: 1-55, 15: 1-18) e os banhos.
O
banimento do leproso diz textualmente (Lev 13: 45-46): “Todo homem atingido da
lepra terá suas vestes rasgadas e a cabeça descoberta, cobrirá a barba e
clamará: Impuro! Enquanto durar o seu
mal ele será impuro. É impuro; habitará
só, e a sua habitação será fora do acampamento.” Como se observa, admitia-se sabiamente a
curabilidade, pois o diagnóstico e a eventual alta do paciente dependiam do
critério do levita a quem devia apresentar-se, o que foi obedecido inclusive
por Jesus, quando curou um leproso (Mat 8: 1-4). A prova de que o ostracismo bíblico era
rigoroso está na segregação de um dos reis de Israel, Josias (II Reis 15: 5-7,
II Crônicas 26: 16-21), vitimado pela infecção.
Está implícito que o banimento era um mal necessário, devendo incluir,
por segurança, casos de lesões falsamente hansenianas que, quando revertidas,
permitiam ao sacerdote anistiar o banido.
Tal dispositivo era mais sábio em sua origem, pois o nomadismo
ecologicamente confere melhor proteção contra infecções do que o sedentarismo,
impedindo a fixação de cadeias epidemiológicas e propiciando a imunização por
socialização dosada (outro meio era exibir o doente aos passantes para receber
sugestões terapêuticas). Quando os
judeus, de dominados passaram a aliados dos dominadores e se urbanizaram, com a
construção do templo de Salomão (1000 aC) - o resultado foi aglomerar os
segregados e os pacientes de falsa lepra
se contaminavam junto aos casos verdadeiros. Mais tarde os lazaretos medievais, ao
promiscuir, por exemplo, hansenianos e boubáticos, levaram à mútua contaminação
dos internos, de tal modo que um dos efeitos colaterais da Morte Negra no
século 14 foi o esvaziamento quase total dos leprosários, como uma espécie de
equivalente mais ou menos
involuntário de solução final, neste
caso contra os leprosos.
É
provável que do exame feito pelo sacerdote a cada sete dias, como chance para
ser feito o diagnóstico diferencial - por exemplo, explicitamente, entre a
lepra, a tinha de cabelo e barba e a calva vulgar (Lev 14: 29-44) - tenha
surgido, com o tempo, a observação de que seis
períodos de sete dias eram média segura e suficiente não só para esse
esclarecimento, mas, no caso de outras infecções, para a cura ou a morte dos
empestados - e daí a quarentena.
No
caso da blenorragia é dito expressamente: “A impureza está no fluxo: quer sua
carne deixe correr o fluxo, quer o retenha, há impureza. Qualquer cama em que se deitar aquele que tem
uma gonorréia, bem como qualquer cadeira em que ele se sentar será impura. Quem tocar sua cama, lavará suas vestes,
banhar-se-á em água, e ficará impuro até a tarde” (Lev 15: 3-5). “Todo recipiente de terra tocado por esse
homem será quebrado e todo vaso de madeira será lavado com água. Quando se tiver purificado ... contará sete
dias ... lavará suas vestes, banhar-se-á em água corrente e será puro” (Lev 15:
12-15). É digno de nota que as
estigmatizações seguintes no texto sagrado sobre o derramamento seminal e a menstruação podem ser encaradas como sábia
medida de segurança diante da natural dificuldade, entre aqueles a quem se
dirigia o livro, para diferençar fluxos fisiológicos de corrimentos infecciosos.
É
notável que a valorização do banho da pessoa, das vestes e dos utensílios,
entre um povo de país árido, sendo tão antiga e no próprio texto matricial do
cristianismo, não tenha impedido sua desvalorização na teocracia medieval. Daí o escândalo dos europeus que chegaram a
acusar de libidinosos os ameríndios só por causa de seu sadio hábito de banho
diário ou de até doze vezes ao dia entre as mulheres (em vez de semanal, mensal
ou anual, como chegou a ser a prática na Europa, inclusive gerando a já citada
indústria de perfumes).
Isso
mostra que, na mesma tradição religiosa, a infecção pode ser encarada de modo
distinto. Assim, as prescrições do Torah
representam provável confluência naturalística entre a mais primitiva medicina
popular mesopotâmica e egípcia - enquanto no próprio Torah e no resto da Bíblia
os fenômenos epidêmicos incontroláveis são interpretados mágica, messiânica ou
apocalipticamente. Vão das pragas de
Moisés contra o Faraó (Ex 8: 16-32, 9: 1- 35) e das advertências de Jeremias,
incluindo o nexo epidemiológico entre guerra, peste, fome e morte (Jer
34:17-22), e à retomada deste, representado nos quatro cavaleiros de João
Evangelista, dos quais o amarelo era aparentemente a peste (Apoc 6: 1-8).
Entre
as pestes bíblicas, pelo menos uma se repetiu historicamente no século 20. Em 701 aC, o rei assírio Senaqueribe sitiou
Jerusalém e em seu ultimato a Ezequias, rei dos judeus desarmados, alegou que o
Deus destes nada poderia contra suas armas.
O profeta Isaias tranqüilizou seus compatriotas e, no ataque à cidade,
os assírios amanheceram mortos (Isa 36: 1-38).
Em 1918, na época de Lawrence da Arábia, os soldados ingleses, após
conquistarem a região e acamparem nas margens do Jordão, subiram a Jerusalém e
também amanheceram mortos por malária, possivelmente falciparum, 26 séculos depois dos assírios. Outro ato médico de Isaias (Isa 38: 1-32) foi
curar Ezequias de grave ulceração cutânea (antraz?, leishmaniose?) com
cataplasma de figo.
De
qualquer modo, o banho higiênico primitivo, em água corrente ou não, como para
a gonorréia bíblica; a perda do hábito do banho, como na Europa; a
disponibilidade de água para beber e
lavar em centros de peregrinação, como Meca; ou o banho ritual, como no Ganges
- têm muito a ver com a endemização e com a epidemização de infecções. Em nossos dias, no Brasil, a chegada da
esquistossomose ao vale do Paraíba e ao sul de Minas Gerais está relacionada
não tanto à falta de redes sanitárias, mas às peregrinações ao santuário de
Aparecida do Norte, associadas à atração migratória das indústrias
vizinhas. Só mesmo a perspectiva
histórica poderia relacionar a descoberta milagrosa de uma imagem num rio com a
emergência, séculos depois, de determinada infecção ribeirinha. É quase certo que em futuro próximo a introdução
da moto-serra no Brasil, a partir de 1970 (no contexto da construção de
rodovias na Amazônia), terá mais importância do que qualquer outro fato na
interpretação epidemiológica de endemias
e epidemias recrudescentes, inclusive urbanizadas, como leishmanioses, malária,
doença de Chagas, dengue e febre amarela.
A malária urbana no Peru, o calazar urbano em Belo Horizonte e a
pandemia de dengue no Brasil são os arautos confirmatórios dessa previsão.
Não
é só na Bíblia ou nas mitologias elaboradas que se encontram procedimentos de
proteção direta ou indireta contra infecções.
Simples lendas aparentemente fantásticas podem ter justificativas
surpreendentes, por afastarem as pessoas de contaminações. Tal é o caso do lobisomem, que pode ser lenda
tão ou mais antiga que a domesticação do
cão, do cabrito e do carneiro, ocorrida a partir de 10 000 aC, ou antes. O
cão (domesticado provavelmente para proteger o gado contra lobos, cães
selvagens e outros predadores), ao contrair a hidrofobia, se tornava feroz como
o lobo e o mesmo sucedia com o homem (lobisomem), após serem atacados por
animal ou homem contaminados, principalmente ao se aproximarem, em noite de
luar, do refúgio das vítimas fotófobas dessa endemia mortal. Lendas de vampiros têm significado análogo,
sendo que, ainda hoje nos EUA, se registram quinze casos por ano de raiva
humana transmitida diretamente por
morcegos hematófagos, e que se podem urbanizar.
DE 500 aC
A 1200: A INFECÇÃO SE ENDEMIZA E SE INFANTILIZA POR CONFLUÊNCIA DAS
CIVILIZAÇÕES
Neste
período ocorre a confluência das infecções das principais civilizações da
Eurásia, com as conseqüentes endemização
e infantilização de doenças antes
epidêmicas e antes abrangentes de adultos e crianças. Até então, o ajustamento de cada civilização
às catástrofes pestilenciais tinha sido eficaz mas internamente, tanto que o
próprio conceito de civilização hoje deve incluir o de que o grau de
organização econômico-social era tal que mesmo a ruptura das produções
econômica, administrativa e cultural trazida por peste violenta não era
suficiente para destruí-las e até mesmo incapaz de impedir sua expansão. Ou seja, sendo civilização, se expandia; a
expansão produzia pestes, mas estas não eram suficientes para impedir sequer a
expansão, pelo menos com menor ritmo ou em outra direção. Por exemplo, o vale do rio Yangtze, na China,
era mais agricultável que o do rio Amarelo e, no entanto, foi neste que se
desenvolveu uma das mais antigas civilizações.
Esta, tendo-se tornado estável em 300 aC, levou cinco a seis séculos adicionais
para vencer a barreira da malária, da esquistossomose, do dengue e de outras
infecções e ir com elas conviver no cultivo do vale do Yangtze.
Esse
processo, que na Eurásia levou quase dois mil anos, fez com que o contato
crescente entre civilizações, por guerra e/ou comércio e/ou religião, inclusive
por e com crescente aumento populacional, trouxesse a universalização
nosológica, reduzindo a virgindade das comunidades, a qual ocorria não só
espacialmente, mas também temporalmente.
De fato, antes uma epidemia podia acometer não só uma região nunca
acometida, mas podia recair sobre uma região antes acometida, porém, tão
assolada, que os novos habitantes eram
igualmente virgens. Agora, os surtos
menos arrasadores e com freqüência menor que dez anos permitiam sempre a
existência de populações adultas sobreviventes e resistentes, ocorrendo então a
infantilização associada à endemização da nosologia confluída.
Foi
nesse período que surgiram as grandes religiões universalizantes da humanidade,
como o budismo, o cristianismo e o islamismo, e também a filosofia grega. Observe-se que as religiões substituídas por
estas, como o bramanismo, o judaismo, o confucionismo e a mitologia
greco-romana, representaram o respaldo moral para a estabilização interna dos
centros civilizatórios, enquanto as religiões substitutas eram coerentes com a
confluência destes, inclusive sendo instrumento da mesma. É notável como estas últimas têm em comum a
apologia da superação do sofrimento físico, considerada útil e até necessária
para que se passe à felicidade espiritual - tradução intuitiva da necessidade
de sofrer pestes e calamidades, inclusive freqüentemente, para se passar a uma
etapa mais segura para todos.
Nesse
período também surgiu a medicina hipocrática que, no contexto do pensamento
filosófico grego, coerentemente reconhecia as pestes não como imprevisíveis
maldições divinas, mas de causas naturais e evitáveis, suscetíveis até do
controle humano (antes, Empédocles acabou com uma praga de malária, e para tal,
em vez de recorrer ao oráculo ou mesmo de prescrever às vítimas, retificou o
leito de um rio). Por sinal, o conceito
hipocrático de epidemia não se superpõe ao atual, pois se refere basicamente a
doenças, não necessariamente agudas, reincidentes por razões sazonais ou outros
fatores ambientais recorrentes.
A
correlação primitiva entre mau cheiro e doenças, somada à longa experiência das
culturas africanas, mediterrâneas e orientais sob o peso da malária, levou à concepção miasmática de
transmissão, daí advindo os nomes desta peste (mal ar, febre palustre, paludismo, sezão pantanosa, doença
mefítica) e à ênfase hipocrática nas prescrições/restrições dietéticas, senso
lato, que abrangia alimentos, atividade física e ambientes. Assim, a teoria do miasma está
consubstanciada em sua compatibilidade com a epidemiologia de uma doença de
grande impacto social e transmissível pelo ar, embora se ignorasse que isso se
fazia pelas asas de um inseto. Nada mais
lógico que a teoria deixasse de ser compatível com a propagação de outra doença
- a peste bubônica medieval, de maior impacto - que, sendo transmitida também
por um inseto, mas sem asas, e dependendo do contato corpo-a-corpo, mostrou-se
suscetível, por isso, de ser evitada pela quarentena. Como os interesses comerciais europeus no
Mediterrâneo necessitavam de fundamento teórico para a legislação impositiva da
quarentena nos portos, substituiu-se a teoria miasmática (transmissão ambiental aérea) pela teoria do contágio (transmissão pelo contato
corporal), formulada por Fracastório, em 1546, e baseada na fácil evidência de
contágio na sífilis, então em expansão.
Outro
aspecto da relação entre a medicina hipocrática e as pestes consiste na ética
do papel do médico nas guerras. Relata-se que Hipócrates recusou debelar peste
entre soldados inimigos, alegando dever patriótico - o que seria contraditório
com as linhas morais do célebre juramento a ele atribuído. Ora, esta questão é de grande atualidade,
pois, embora tenha sido parcialmente resolvida a partir da criação da Cruz
Vermelha Internacional19 em 1863, o uso potencial e real de armas
radiativas, químicas e, principalmente, microbiológicas mostra-se mais
ameaçador em nossos dias do que no passado.
Segredos militares e a cobiça comercial secreta, trazidos parcialmente a
público, mostram que cientistas e médicos continuam a exercitar sua competência
de modo mercenário e sem qualquer escrúpulo, desde na experimentação em
sujeitos humanos, especialmente idosos, crianças e encarcerados, passando pela
execução farmacológica da pena de morte, até a preservação e a multiplicação de
bactérias, como a do antraz, de virus,
como o da varíola, e provavelmente de agentes infecciosos inventados pela engenharia genética. O risco de escape do virus selvagem da
varíola, mantido pelos EUA e pela Rússia, tem sido constante, capaz de inimaginável hecatombe sobre a humanidade,
que logo estará universalmente virgem. O clamor por sua destruição levou à
promessa de consumá-la antes do ano 2000, em 30/6/1999 - e os opositores argumentam,
por exemplo, com o risco de humanização da varíola de macacos (!)14.
Na
Grécia do século 5 aC,
bem antes de Hipócrates, já deveria haver condições para a peste moderna da
infecção hospitalar no asclepiéion de
Atenas ou de Epidauro, exemplo de precursores do hospital atual, onde clientes,
inclusive peregrinos ou prepostos, vinham obter prescrições, feitas pelo deus
Asclépio, por meio de sonhos sonhados por eles com tal objetivo45. Os leitos ali existentes se destinavam
precipuamente aos sonhos e não ao cumprimento das prescrições. Como entre os clientes devesse haver
portadores de infecção, assim como entre os próprios asclepíadas e
funcionários, ali deve ter ocorrido alguma relação entre infecções e o ambiente
dos asclepiéia. O mesmo pode ser dito das termas
hidroterápicas espalhadas por toda a Europa, inclusive em Portugal, mesmo antes
dos romanos, cujo uso foi reprimido como imoral na Idade Média. Nesta, os precursores do hospital tiveram
seqüência com o atendimento à movimentação de pessoas ligada às peregrinações
por mosteiros e santuários e às cruzadas.
Com
a queda do império romano, o que restou da medicina helenística foi preservado
nos mosteiros, os quais, de postos de hospedagem ou devoção a viajantes e
romeiros, passaram a ser demandados por doentes. A igreja, embora reprimindo os monges que
clinicavam (porém permitindo que guerreassem), estimulou a vertente de
assistência social, com base nas seis recomendações evangélicas denominadas
atos de misericórdia - matar a fome, saciar a sede, agasalhar o maltrapilho,
amparar na doença, receber o estrangeiro e visitar o prisioneiro (Mat 25:
35-36) - acrescidos no século 13 de um sétimo: sepultar os mortos, com base em
Tobias (1: 19-21). Por meio de doações
em vida ou testamentárias, o cumprimento
de tais atos canalizou formidável parcela econômica do comércio mediterrâneo,
arrebatado aos muçulmanos pelas cruzadas, a qual assim se imobilizou como
propriedade secular do clero. São
Crisóstomo dizia aos neo-burgueses: “Se não houvesse os pobres, a maior parte
de vossos pecados não seria removida, eles são os médicos de vossas
feridas”. Coincidentemente a
hospitalidade oferecida pelos monges obedecia explicita e contraditoriamente ao
princípio (que já prevalecia no código de Hamurabi, nos asclepiéia e ainda hoje): só
se consegue privacidade a troco de dinheiro. Exemplo característico de monastério que teve
de adaptar-se, inclusive em condições de pouca água, para hospedar romeiros
antes doentes ou que adoeciam na romaria foi o de Turmanin na Síria, à beira da
estrada entre Antióquia e a igreja-santuário onde São Simeão Estilita se fez
eremita e onde acolhia, para consolar, multidões no século 6.
A
hospedaria original criada para acolher peregrinos era chamada pandoquéion, mas as palavras albergaria,
asilo, hospício, hospedaria, hospital e hotel-Dieu
vieram a ser usadas sem limite de significado.
Em Portugal, por exemplo, usou-se o termo hospital para os primeiros
orfanatos de Lisboa e Santarém. E hospício era usado inicialmente para animais
abandonados.
Após
aquela institucionalização assumida pela igreja, as casas destinadas à prática
dos atos de misericórdia, não mais à beira dos caminhos das peregrinações, mas
já em condições urbanizadas, foram surgindo e crescendo por acréscimos, como o
Hospital de Santa Maria Nuova em Florença (1315), ou já todo planejado por um
arquiteto, como Filarete, que justificou cada pormenor de seu projeto da
Ospedale Maggiore de Milão, em 1456. Daí
se originaram as Santas Casas de Misericórdia brasileiras. De fato, a Misericórdia de Lisboa foi
fundada, com base no modelo florentino, dois anos antes de Cabral chegar ao
Brasil, e a primeira Santa Casa brasileira é a de Santos, criada em 1543 por
Brás Cubas. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que introduziu as misericórdias
no mundo lusitano, a rainha Leonor de Lencastre revitalizou as termas, ao criar
a de Caldas da Rainha.
Os
hospitais, cada vez maiores, inicialmente controlados pelo clero e depois com
participação governamental, aglomeravam doenças de toda a espécie. Devem ser distinguidos daqueles que permitiam
a privacidade em divisões menores: os destinados aos leprosos, aos dementes,
aos empestados, aos senis e aos ricos.
Assim, das cinco categorias, duas se referem a infecções, sendo que a
lepra já se isolava desde o Torah. O
concílio de Orleans, em 549, atribuiu aos bispos cuidar dos leprosos e o de
Lion, em 585, determinava a cada cidade ter um leprosário e, no século 8, este
estabelecimento multiplicou-se por toda a Europa, conseqüência da contaminação
dos bárbaros recém-chegados. Além de
obrigados a habitar fora dos muros das cidades, as restrições aos leprosos
variavam com o lugar, sendo drásticas na Europa central e oriental e brandas na
Península Ibérica, onde eles eram chamados gafos. A primeira gafaria peninsular pode ter sido
criada por El Cid, em 1037, em Valência. Nesta
época das cruzadas, a movimentação de pessoas para estas e outras guerras
recrudesceu a infecção na população confluída, valendo lembrar que, entre as
ordens de cruzados, como a de São João de Deus (importante na história do
hospital) e a dos célebres Templários, havia a de São Lázaro, supostamente
reservada aos cruzados que contraíssem a lepra, a qual não poupava nem as
cabeças coroadas, pois o próprio rei Afonso II de Portugal morreu leproso. Na Espanha a seqüestração dos leprosos só foi
decretada em 1284 por Sancho IV, o Bravo.
Já
os hospitais específicos para epidemias constituem grande fracasso,
prenunciando as dificuldades de isolamento até hoje vividas, mesmo com a mais
sofisticada tecnologia. Exemplo mais
característico foi o gigantesco Lazaretto
de Milão, de 1488, um quadrado de 288 células contíguas, em volta de um pátio
vazio, com uma igreja octogonal no centro, para todos presenciarem a
missa. Quando não havia peste, ele era
estrutura onerosa e, quando vinha a epidemia, como no início do século 17, 16
000 corpos, entre doentes, moribundos e mortos, compunham ali quadro
indescritível.
Problema
difícil nos hospitais medievais e renascentistas era conjugar aquecimento com
exaustão do ar. O mau cheiro, que
primitivamente era indicador de peste, agora paradoxalmente característico dos
hospitais e oriundo das próprias doenças, dos dejetos, dos medicamentos e dos
combustíveis, fazia com que as emanações dos domos de ventilação matassem até
os pássaros desavisados. Apesar da
experiência acumulada dos povos mediterrâneos quanto a hábitos de limpeza
(árabes e judeus), de drenagem de esgotos (sistema da cloaca máxima de Roma) e
de captação d’água (aquedutos)49, muita coisa se perdeu ou se
esqueceu, sem que escrúpulos maiores existissem até o século 19. No Hotel-Dieu de Paris não eram de estranhar
até seis doentes na mesma cama. O relato
de Florence Nightingale45 sobre as condições sanitárias do hospital
militar inglês de Scutari na Turquia, durante a guerra da Criméia (1854-55),
derrubou um governo e nele menciona ter descoberto que a pouca água de
suprimento banhava antes a carcaça em putrefação de um cavalo. Daí surgiu o hospital militar pré-fabricado
de Renkioi, que, antes de ser usado na Turquia, no final da guerra, foi o
primeiro a ser experimentalmente aperfeiçoado.
Enquanto o de Scutari, com 2500 pacientes, apresentava a mortalidade de
42,7%, no de Renkioi, com 2200, esta caiu para 3,0%.
Todos
esses dados mostram que as condições sanitárias prevalentes antes de 1200
resultaram não apenas de fatores como a separação entre os mundos cristão e
islâmico e a confluência de populações em estados imunitários diferentes,
causada pela ampliação de sua mobilidade por guerra, comércio e religião. É que o poder religioso, monoliticamente
espiritual e temporal, ao estimular gananciosamente os atos de misericórdia,
reprimia, ao mesmo tempo, e aí por oportunismo proselitista, aquelas sábias
práticas da medicina popular e clássica, inclusive bíblicas. Assim, a substituição de procedimentos
sadios, antes e longamente praticados, por orações, exorcismos, relíquias e
amuletos (de valor psicoterápico, desde que não exclusivos) tornou a pessoa
ainda mais indefesa diante das sucessivas agressões epidêmicas, até que viesse
a maior delas no século 14.
DE 1200 A
1500: AS CONTINGÊNCIAS E CONSEQÜÊNCIAS DA MORTE NEGRA
Neste
período, os equilíbrios em via de serem alcançados pela confluência das
infecções sofrem o impacto do império
mongol, cujo principal resultado foi a morte
negra, pandemia bubônica que devastou a Eurásia no século 14. Os canais econômico-administrativos e
militares, criados para o funcionamento desse primeiro império ecumênico
surgido após aquela confluência, foram
usados pelos ratos, pelas pulgas e pelo bacilo da peste bubônica para
disseminarem-se pandemicamente. Esses
canais permitiram alta velocidade, impossível antes, no transporte dos vetores
da doença, o que atropelou a tradicional formação de focos isolados e isoláveis,
surgidos em cadência.
Precipitou-se assim a contaminação abrupta de todos os
limites do império.
O
império mongol dispunha de dois canais de comunicação recém-desenvolvidos, logo
utilizados pelos vetores da doença: a ligação a cavalo através da estepe (no
lugar da ligação a camelo através do deserto) e os novos barcos a vela, de
longo curso, que navegavam durante todo o tempo (no lugar de embarcações de
pequeno alcance). Até então, a ligação
segura oriente-ocidente se fez milenarmente de oásis a oásis nos caravançarais
do deserto - a famosa estrada da seda,
ligando a Síria à China. Os mongóis
construíram ao norte desta a ligação regular a cavalo pelas estepes, em cujo
subsolo provavelmente se formou uma correspondente conexão subterrânea de
roedores capazes de atuar como reservatórios contínuos da propagação da
peste. Já no mar, até então os navios
eram pequenos e não ficavam permanentemente ao largo, principalmente no inverno
nórdico. Foi nesta época que o
rompimento do bloqueio muçulmano de Gibraltar levou ao aperfeiçoamento náutico
com a criação de navios maiores e mais rápidos, capazes de fazer a navegação
permanente entre o Mediterrâneo e o Atlântico Norte. A bordo dos novos navios, o rato negro da
Índia se disseminou por todos os portos e terras adentro. No caso da peste, o
número de roedores em cada navio, combinado com a velocidade destes, era
adequado à sobrevivência e ao desembarque de ratos ainda contaminados.
A
peste já se tinha estabilizado na África, no Mediterrâneo e no Oriente e é possível
que o foco inicial da pandemia, nos contrafortes indianos do Himalaia, tenha
surgido pela ruptura da estabilização aí ocorrida sob a forma de um tabu de
caça. Em locais no Oriente, onde
roedores silvestres (tabargãs, espécie de pequenas capivaras orientais) são
reservatórios de peste endêmica (estabilizada), é proibido caçar o animal vivo
ou matá-lo quando aparenta estar doente, sob pena de sobrevir castigo
divino. É possível que os civilizados
mongóis, recém-chegados, zombassem dessa ignorância
da medicina popular local.
Desrespeitando-a talvez, desencadearam o castigo de uma calamidade só
comparável às guerras mundiais. Há
evidência de que, no paroxismo pandêmico, a infecção tenha dispensado os
vetores, passando-se a uma epidemia dentro da pandemia, conseqüente à
transmissão de homem a homem, por via respiratória, da forma pneumônica da
peste, e neste caso quase sem sobreviventes.
O
despovoamento e o agravamento da infecção provavelmente fizeram parte de um
círculo vicioso que incluia a fome e a desnutrição, ligadas à desestruturação
econômica e ao caos social. A perda de
recursos humanos essenciais à organização economico-socio-cultural estabelecida
correspondeu a uma desculturação com
revisão dos valores vigentes - causa provável do declínio gótico e da abertura
rumo ao Renascimento e à Idade Moderna.
A diminuição dos que dominavam a língua oficial, o latim, deve ter
favorecido a emergência das línguas populares nacionais, transformadas em
idiomas cultos. Os judeus, menos
atingidos por seus hábitos de saúde, foram acusados de pacto demoníaco e judiados, com isso muitos se refugiaram
na Europa oriental e ocidentalizaram a Ucrânia e a Polônia.
A
endemização subseqüente da peste está relacionada à adaptação da infecção aos
roedores silvestres de cada região, onde permanecem até hoje (até 20 casos
anuais nos próprios EUA e muitos no Brasil) e onde não são ameaça temida,
porque se confia nos antibióticos (mas seu uso depende do diagnóstico). Convém lembrar que o desaparecimento das
sucessivas epidemias de peste ocorridas na Europa Ocidental, do século 14 ao
17, se relaciona também à substituição ecológica do rato negro dos navios
(doméstico) pelo rato cinza dos campos (peridoméstico). É que o uso de madeira como combustível levou
à escassez de material vegetal para a construção de casas, inclusive tetos, e sua substituição por alvenaria -
afastando o rato negro, grimpador, e suas pulgas. Tal mudança explica por que o
grande incêndio de Londres de 1666 queimou
a peste, com o advento das novas moradias.
Em
1346, quando começou a morte negra já
existia a quarentena. Ela deriva, como
foi dito, do ostracismo bíblico dos leprosos e da idéia de considerar os pestosos como leprosos temporários. Sua
prescrição, entretanto, se fez junto a numerosas medidas inócuas, consideradas
na época igualmente válidas e igualmente mal obedecidas, por isso só
institucionalizada muito tempo depois nos portos italianos do Adriático,
primeiro em Ragusa, em 1465, depois em Veneza, em 1485, e no resto do
Mediterrâneo só no século 16.
DE 1500 A
1700: A CONFLUÊNCIA PLANETÁRIA DAS INFECÇÕES
Neste
período, as infecções passam a dispor de um intercâmbio transoceânico. Se o cavalo
mongol levou a peste bubônica à Europa (coroando os mecanismos de estabilização
ecológica de toda a massa continental da Eurásia), as caravelas ibéricas
levaram as pestes da Europa ao resto do mundo (principalmente a terras
insulares), trocando-as por novas infecções.
As
terras insulares sofrem as pragas de modo peculiar, por sua característica de
fazer intercâmbios, sem deixar de preservar o isolamento e a
independência. Assim, o arquipélago
grego, no Mediterrâneo, o japonês, no Oriente, e o britânico, no Ocidente, são
modelos de grande interesse para a epidemiologia histórica, inclusive a
correlação entre aspectos ecológicos, econômicos, sociais e culturais. No impacto da chegada dos europeus às
Américas e à Austrália, estas, apesar de sua massa continental, apresentaram um
comportamento insular. Diante da
varíola, do sarampo, da malária e da febre amarela, entre outras infecções,
acometendo populações virgens, pode-se
espantar de ter havido sobreviventes.
Os
índios sobreviventes, em vez de heróis ecológicos ou bravos insubmissos, foram então taxados de preguiçosos,
justificativa usada para se lucrar com o tráfico de negros, que, por sua vez,
trouxeram novas infecções da África e vieram a sofrer tanto as raras aqui
pré-existentes como aquelas antes importadas (no estudo desse conjunto,
brasileiros e estrangeiros realizaram aqui importantes contribuições
científicas). Os negros de regiões
africanas com contato anterior com a Eurásia (muçulmanos) tinham maior
resistência que os índios. O certo é que
essa confluência planetária trouxe um morticínio também planetário, que,
incluiu, além dos ameríndios, os hotentotes (africanos), os polinésios e os
indígenas australianos.
Os
europeus, ao chegarem às Américas, ficaram impressionados com a saúde dos
índios28,29 e, mais que febres daqui, temiam serpentes, aracnídeos,
vespas, lacraias e taturanas. A baixa
densidade de populações (grande parte nômades), o baixo grau de domesticação de
animais, as raras doenças autóctones e as plantas nativas nutricionalmente
superiores às da Eurásia e da África dão objetividade à impressão paradisíaca
causada pelo continente americano. Mesmo
no caso das civilizações centro-americanas e andinas - nas quais houve
urbanização, maior densidade demográfica, a domesticação da lhama, da cobaia e
talvez do cão e do peru (e do pato entre tupis-guaranis), além de aves, macacos
e outros mamíferos de estimação (os
filhotes destes usados para fazer descer
o colostro), enfim, o favorecimento a doenças ligadas ao vestuário
(riquetsiose) e à habitação (treponematose, micose, tripanossomose), necessários contra o frio dos altiplanos -
não há evidência de que esses povos tenham sofrido pestes dizimadoras de origem
infecciosa, antes de Colombo. A falta de
rebanhos numerosos os protegia contra infecções oriundas dos mesmos
(leishmaniose, riquetsiose, miíase, tularemia, equinococose, micoses, arboviroses),
mas os colocava indefesos contra fracassos nas colheitas (suas verdadeiras
pestes), pois o gado e a caça na África e na Eurásia são tampões contra a fome
por perda de alimentos vegetais. Em
compensação não necessitavam de muita terra para a lavoura, pois seus vegetais
nativos são mais produtivos por área e mais ricos nutricionalmente que os do
velho mundo, exceto o arroz, tanto é que as batatas, o milho, a mandioca (o
manejo indígena da mandioca brava é obra-prima de bioquímica antropologicamente
seletiva), o amendoim, as castanhas, as abóboras, os cocos, o tomate, o
abacaxi, o abacate, o caju, o cacau, as pimentas, a baunilha e as mirtáceas das
Américas passaram a ser, desde então, cada vez mais indispensáveis à explosiva população mundial (além do amplo fornecimento
adotivo de açúcar, banana, trigo e café). E o consumo do tabaco, da cocaína, da
mescalina (e de outros produtos psicoativos) e do chicle nem sequer era vício
aqui.
Essa
maior e melhor nutrição para menos gente deve ter dificultado o acesso de
infecções do animal ao homem, que ingeria importante porção de peixe. Mesmo com facilidade de caça, não dependia
dela para fonte de vitaminas, encontráveis nas pimentas, no tomate e em outros
frutos, bem como no milho e na mandioca fermentados, e no mel. É, pois, inevitável a conclusão de que em
1500 os europeus nos trouxeram a infecção e nós lhes retribuímos com nutrição
(além de medicamentos revolucionários, algodão,
borracha, madeira, gemas e ouro).
Para
amenizar esta forte verdade foi feito igual esforço para provar que a sífilis
foi exportada das Américas e que a malária e a febre amarela pre-existiam
aqui. A única infecção de massa
indiscutivelmente americana, e sem similar fora, a doença de Chagas, nunca foi
exportada daqui, nunca se fez epidêmica, e aparentemente só se domiciliou junto
ao homem após a importação da sub-habitação ligada à desigualdade social. Por outro lado, uma infecção típica e
benquista, o bicho-de-pé, veio reaproximar os europeus aqui chegados do banho
diário, pelo menos do joelho para baixo, abrindo o surpreendente caminho, junto
com o piolho (iguaria indígena), para os prazeres do cafuné.
A
verdade é que, após o intercâmbio transoceânico, as infecções tiveram de
retomar suas estabilizações sob a enorme complexidade da confluência de todos
os povos da terra, inclusive novas condições demográficas, de urbanização, de
nutrição, de comportamento e de heterogeneidade
imunitária, donde passam a sobressair a sífilis (e outras doenças
venéreas), os tifos, a varíola, a tuberculose e a colera. O alívio da repressão sexual medieval, a
revelação de outras morais sexuais, a
urbanização burguesa e a necessidade
de rápida reprodução humana para ocupar espaços impuseram o tema das doenças
sexualmente transmitidas, antes cercado pelo pudor dos próprios médicos, e que
afinal fica ostensivo na obra de Astruc, De
morbis veneris, de 1736. A
importância delas se ilustra pelo recurso a
sedutoras jovens sifilíticas na estratégia militar (antecipando as armas
bacteriológicas e em contraponto à imunização dos soldados, a seguir).
DE 1700 A
NOSSOS DIAS: INFECÇÕES VERSUS
TECNOLOGIA
Em 1700 começa o impacto ecológico da ciência e da
organização médicas. Até esta data a
prática médica não teve influência significativa no surgimento, na trajetória
ou na interrupcão das infecções. Antes,
qualquer medida preventiva ou curativa tinha de ser justificada pelas teorias
de Galeno, entre cristãos, pelas de Avicena, entre muçulmanos, e pelas dos respectivos cânones na Índia e na
China. Só depois que a obediência cega à
medicina canônica foi progressivamente iluminada por questionamentos
contundentes, embora arriscados, é que medidas administrativas e clínicas
começaram a ter alguma influência na
ecologia das infecções.
O
impacto de mundos, medicinas e nosologias diferentes ou emergentes levou, por
exemplo, a que se argumentasse, com base na irreverência de Paracelso, que
doenças novas como a sífilis necessitavam remédios mais fortes a serem
desenvolvidos pela química (ainda indistinta da alquimia), em vez de buscados
em livros antigos. O dogmatismo então
foi sendo substituído pela retomada da observação criteriosa (inclusive com
base na estatística nascente) e pela comparação entre as condutas antigas e o
uso empírico de novas prescrições (culminando, porém, no exagero oposto, com
muitas mortes). Foi assim que a
quarentena se destacou do universo panacéico e teve reconhecida sua eficácia,
passando a ser melhor administrada. Depois dela, a imunização administrada coletivamente
mostrou seus efeitos. Para garantir as
eficácias verificadas, passou-se à formação de profissionais responsáveis por
sua continuidade e ao estímulo à respectiva carreira.
Logo
se percebeu a importância militar desse progresso, pois o exército e a marinha
protegidos contra epidemias, temidas e freqüentes conseqüências de
guerras, teria decisiva superioridade
sobre inimigos não protegidos. A saúde
pública moderna resultou, pois, da aplicação pelos novos estados nacionais de
novas técnicas médicas, em favor de seus interesses econômicos, políticos e
militares. Consistiram: na imunização clínica rural, feita durante a mudança
agrária britânica, precedente à revolução industrial; na imunização de membros
das casas reinantes, para garantir arranjos sucessórios; na profissionalização
do corpo médico militar francês e respectivo treinamento, desde 1770,
precedente aos triunfos napoleônicos; e
na concepção germânica da saúde como recurso político e militar,
expressa na obra, em seis volumes, Polícia Médica de Johann Peter Frank29,39,
publicada de 1779 a
1819. Por isso é que o ensino médico
criado pelos governos a partir daí se vinculava a hospitais militares, a
exemplo, no Brasil, do curso criado em 1801, em Vila Rica (Ouro Preto)36,
e dos de Salvador e do Rio de Janeiro, criados em 1808.
Convém,
no entanto, não exagerar o valor de cada fato. Assim como antes a quarentena
teve a ajuda da alvenaria para aplacar a peste, no período estudado deu-se a
diminuição da malária, não pelos progressos mencionados, mas pela expansão da pecuária,
quando o mosquito, preferindo picar o gado sem infectá-lo, afastou-se do homem.
A própria técnica administrativa teve também efeito genérico, desde que
a organização é irmã da limpeza49, isto é, da prevenção inespecífica
(higiene) e todas são filhas da prosperidade.
Outro fundamento da saúde sob drástica mudança
foi a nutrição, representada pela adoção da batata americana, tanto que passou
a ser batata inglesa (outro fator da revolução industrial) e pelo acesso à
carne, graças à pecuária mencionada, ambas sustentando e acelerando o aumento
populacional. Da melhora da alimentação
participam as especiarias e junto a elas, ou indistintos delas, medicamentos
longamente selecionados pela medicina popular de todos os povos, entre eles, os
que se revelaram agentes antinfecciosos, como a ipeca tupi-guarani (contra a
diarréia de sangue epidêmica causada por ameba) ou o quinino inca (contra a
malária - que assim alicerçou o poderio barroco dos jesuítas). A desconfiança
natural e as restrições religiosas contra tais adoções são vencidas não só por
seu respectivo resultado, nem sempre tão
evidente, mas com o entusiasmo trazido pelas demais adoções, como as da
bússola, da pólvora, do papel e da imprensa, e também das descobertas ópticas.
A
imunização deliberada com matéria pustular de variolosos (variolização) já era
praticada na Índia e foi daí introduzida na China no século 11, sendo conhecida
também na Pérsia, na Grécia, na Arábia e no norte da África. Só em 1721 foi levada à Europa pelos
ingleses. É que Lady Wortley Montagu, esposa do embaixador britânico na Turquia,
tendo seu belo rosto marcado pela varíola, ao saber que, como as turcas,
poderia tê-lo evitado, variolizou seu próprio filho de sete anos, em 1717, e
divulgou essa prática na Europa, abonada por médicos gregos, graduados em
Pádua, Itália. A adoção da idéia pelos
dirigentes britânicos foi facilitada por ter havido a morte de dois herdeiros,
um filho da rainha Ana, em 1700, e outro da linhagem Habsburgo, em 1711, ambos
de varíola - mortes que mudaram a história política do país no xadrez europeu,
onde se confrontavam os colonialismos espanhol, francês e britânico (fado igual
levou o irmão de D. João VI, que só assim foi rei luso). Mesmo diante disso, a variolização pegou na área rural e não nas cidades e
primeiramente nas ilhas britânicas e só depois no continente, onde inocular
doença em pessoa sadia era tido como contrário à Providência Divina (nesta
polêmica envolveu-se Voltaire).
A
resistência continental diminuiu quando Luis XV morreu de varíola em 1774,
sendo que antes, em 1768, Catarina da Rússia importou um médico inglês para
imunizá-la e sua corte, deixando o povo de lado. Já Frederico da Prússia, em 1775, mandou
ensinar a técnica aos médicos rurais, mas não aos da corte. Só depois de tudo isso ter acontecido é que,
em 1798, Edward Jenner, médico rural inglês comprovou e divulgou a verificação
popular de que a varíola vacum (vacina) imunizava contra a varíola humana. A difusão da variolização e depois da vacina,
com seus efeitos diretos e indiretos, representaram a primeira grande mudança resultante do
processo civilizatório, na história natural de uma doença, desde a origem da
humanidade29. Como nessa
época as forças militares, por exigência de quem as mantinha e delas dependia, eram
vanguarda na eficácia organizacional, é significativo que, ao contrário da
ambivalência dos monarcas absolutistas, George Washington mandasse variolizar
seu exército em 1776 e Napoleão vacinou
o seu em 1805, e neste caso sendo favorecido pela nova organização profissional
da medicina francesa. É quase certo que
as pessoas variolizadas na América do Norte (por George Washington) e na do Sul
(pelo matemático La
Condamine, no vale amazônico) e as vacinadas em colônias
espanholas (México, 1803), portuguesas e russas tenham servido de cobaias para
a plena adoção nas metrópoles. Francisco
de Melo Franco, um dos maiores médicos de nossa história, fracassou ao tentar introduzir a imunização
junto a seus colegas no Brasil.
Esses
dados mostram que o fato novo, talvez maior que a contribuição isolada de
Jenner (inspirada na iniciativa do camponês Benjamim Jesty), foi a conjunção,
de um lado, da velocidade só então possível na difusão de técnicas
pré-conhecidas e, de outro, o deslocamento da ação médica do plano clínico ao
administrativo, a serviço da economia e da política. Outro aspecto foi a imunização de áreas
rurais britânicas onde contribuiu, influindo na força de trabalho, na
preparação da revolução industrial (por sinal financiada pelo ouro das minas brasileiras),
que deu à Inglaterra a vanguarda européia.
Os britânicos já tinham antecipado esta vitória no sentido de que,
enquanto Napoleão decidia vacinar soldados, aqueles já haviam imunizado um novo
tipo de soldado - o operário.
A
partir daí iniciou-se uma aposta de corrida entre o aperfeiçoamento
técnico-científico e o surgimento ou o agravamento de infecções induzidas pela
revolução industrial e pelo imperialismo europeu. Assim, a revolução industrial, apesar de ser
irmã e filha da melhor saúde das populações e também de lucrar com ela - ao
mesmo tempo as constrange a condições de infecção, das minas de carvão aos
espaços artificiais confinados. Do mesmo
modo, o imperialismo, apesar de irmão e filho da nova administração sanitária e
também de se sustentar nela - ao mesmo tempo fez com que a tração a vapor de
navios e locomotivas desempenhasse papel análogo e com maior velocidade ao do
cavalo e das caravelas, ao romper estabilizações endemizantes, com alcance
inédito. De fato, a morte negra do
século 14 está para o império mongol assim como a pandemia de cólera no século 19 está para o
império britânico. E o esforço
técnico-científico não venceu também esta corrida, pois a cólera já tinha
conseguido dar a volta ao mundo, quando Koch, em seu encalço, descobriu seu
bacilo em 1883.
E,
apesar de toda a tecnologia, é provável que os aviões de hoje e as astronaves
do futuro continuem a repetir o símile indefinidamente. Entrevê-se isso quando habitantes próximos a
aeroportos da França e da Suiça sofrem malária após serem picados por mosquitos
trazidos por avião da África e mesmo quando passageiros são picados na cabine
durante escala nesse continente, inclusive adquirindo malária grave (há
evidência de que o mesmo ocorra no Brasil com a malária da Amazônia). Segundo McNeill, é possível que a corrida
entre skills and ills jamais tenha
fim29.
IMPACTO DA CHUVA DE PRODUTOS
ANTIINFECCIOSOS
Se
antes do século 19 já se preveniam e já se curavam as infecções, se já se
conheciam a imunização e a medicação antifebril, anti-séptica, antiparasitária,
antibacteriana e antivirótica, se já se havia descoberto o micróbio, o contágio
e a quarentena - em que consistiu o advento da era microbiológica? Consistiu
na utilização convergente da observação
experimental, de equipamentos
recém-disponíveis e de conhecimentos
acumulados, para começar a correlacionar tudo isso com os micróbios, fazendo aceleradamente, em décadas e anos, o
que a medicina popular já vinha fazendo lenta,
divergente e dispersamente em milênios, por meios intuitivos.
Mesmo
assim, os interesses econômico-político-religiosos criados, ao constituírem o establishment científico, notadamente
representado, logo no início, pela “Real Sociedade de Londres para a Melhora do
Conhecimento da Natureza” (1660) e pela “Academia de Ciências da França”
(1666), passaram a refrear a queda de diques de represamento tecnológico e
assim controlar a explosão de
descobertas. Jenner (um médico rural,
por sinal reprimido em seu estudo sobre o cuco), Semmelweiss (um médico estrangeiro
em Viena, logo demitido, acusado de revolucionário de 1848), Pasteur
(não-médico, criador de seu instituto fora da universidade - levado a cuidar de
infecções de insetos e carneiros e só depois do homem) e Florence Nightingale
(mulher, não-médica e enfermeira não-religiosa) são exemplos de que muito do
progresso de 1700 até hoje passou por entre os dedos do controle da ciência e
da medicina oficiais, conseguido por pessoas e meios à margem dos arquiatras da
corte. Doenças do vinho, da batata, do
bicho da seda e do gado, sempre economicamente mais importantes, foram então
usadas para a afirmação da causação microbiana dos mais antigos tormentos do
homem, abrindo caminho para a tecnologia das vacinas, dos anti-soros, dos
quimioterápicos e dos antibióticos. E o fenômeno prossegue, já que Prusiner
acaba de passar de herege (por contrariar conhecimentos
estabelecidos na químio-infectologia) a Prêmio Nobel de 1997.
A
convergência de desenvolvimentos antes paralelos deve ser sempre lembrada. Assim, o limite da microbiologia francesa
estava determinado pela assincronia de sua indústria óptica em relação a seus
naturalistas. A primazia de Pasteur
passou a Koch exatamente porque a indústria Zeiss de lentes desdobrou os
horizontes da microbiologia alemã.
Uma
das maneiras que as ciências oficiais, principalmente a mais poderosa delas, a
medicina, desenvolveram para refrear descobertas e inovações que ameaçassem
interesses estabelecidos, foi explicar as práticas empiricamente eficazes por
meio de teorias sistematizadoras fechadas, originalmente surgidas do controle
social feito pela religião, como as teorias citadas do miasma e do
contágio. Pois só em 1822, com a não
demonstração do contágio na febre amarela (veiculada miasmaticamente por inseto voador) de Barcelona, é que se chegou à
distinção entre o contágio imediato e
o mediado por vetor físico e animal. Para a transmissão física foi importante a
contribuição de Snow44 sobre a veiculação hídrica da contaminação
fecal na cólera em 1855, mas o vetor animal já havia sido levantado por Cardan,
em 1536, ao ser o primeiro a descrever o tifo (distinguindo-o do sarampo e
referindo-se, no caso, ao tifo murino, sem obviamente distingui-lo dos demais
tifos), denominando-o morbus pulicaris
(doença das pulgas). Mesmo assim tal
evidência só se firmaria com o fim de outra teoria oficial, a da geração espontânea, que caiu não só por
experimentalmente indemonstrável, graças a Pasteur em 1861, mas pelo uso da
própria microbiologia para apontar a razão ilusória de sua concepção. Tardiamente, em 1892, um apaixonado médico
conservador, na Alemanha, para provar o erro da teoria microbiana, ingeriu um frasco com bacilo da cólera e quase
convenceu os interlocutores, pois incrivelmente nada sofreu.
Passando
ao largo das resistências, prosseguiu o mapeamento de agentes e vetores,
vasculhados em toda a nosologia humana, animal e vegetal. Desse esforço, vale lembrar dois mártires,
Ricketts e Prowazeck, vítimas (um no México, em 1910, e outro na Alemanha, em
1915) do tifo que estudavam, sendo que o brasileiro Rocha Lima, que se
contaminou junto com o segundo e sobreviveu, ao descobrir o micróbio que
buscavam, deu-lhe o nome de Ricketsia
provazeckii em honra de ambos.
No
lado terapêutico, embora desde Pasteur já se observasse o fenômeno a que
Villemin (1868) deu o nome de antibiose (produtos de microrganismos que são
nocivos a seus semelhantes) as primeiras vitórias após os produtos empíricos já
citados ocorrem no âmbito da
quimioterapia. Neste caso houve, em
1912, extraordinária contribuição brasileira, quando o jovem e genial
patologista Gaspar Vianna (morto muito moço por infecção acidental em
necrópsia) introduziu o antimônio contra a leishmaniose (substância que fora
objeto de uma guerra médica no início
da idade moderna). Esta descoberta, a
primeira de um quimioterápico capaz de cura etiologicamente comprovável, e a do
uso dos arsenicais contra a sífilis, feita por Erlich (1910), inauguraram a era
atual dos antimicrobianos, em que o fluxo e refluxo de microrganismos
suscetíveis, resistentes, oportunistas e de comportamentos inesperados retratam
uma batalha sem desfecho.
A
esse respeito o grupo de doenças mais ilustrativo são as resultantes da nova
promiscuidade da cultura moderna. Tudo
começou após a última guerra mundial, quando - sob a chamada chuva
de penicilina e de outros antiinfecciosos emergentes, e também do
DDT e outros inseticidas - verificou-se o decréscimo surpreendente das doenças
sexualmente transmitidas, especialmente a sífilis e a blenorragia, além da
sarna e dos piolhos. É extraordinário
que o primeiro antibiótico disponível tenha sido fulminante exatamente contra
as duas principais venereopatias. É provável que o benefício tenha surgido não
da indicação correta dos produtos em casos específicos das infecções, e sim do
efeito profilático do abuso de antibióticos e inseticidas, usados então a
qualquer pretexto. Com a moderação no
uso dos mesmos, proveniente da divulgação de seus perigos imediatos, o efeito
preventivo deve ter sido suprimido.
Essa
prudência terapêutica coincidiu com o advento de novas realidades sociais e
culturais. As explosões demográfica,
industrial e urbana contribuíram para promiscuir
as populações, desestruturar a família e as comunidades, emancipar a mulher e
determinar a predominância quantitativa de jovens. A acessibilidade e rapidez dos transportes e
das comunicações levaram à homogeneização das culturas e subculturas, deram
grande mobilidade individual às pessoas e provocaram o relaxamento de restrições
até então poderosas exercidas pela família, pela religião e pela opinião
pública.
As
conquistas tecnológicas divulgadas pelos meios de comunicação de massa
induziram a uma confiança tal na capacidade técnica da medicina que dois
poderosos medos, o da doença e o da
gravidez, foram anulados com base respectivamente no poder dos medicamentos, em
geral, e no da pílula anticoncepcional, em particular. Com esta, decaiu, por outro
lado, o uso da camisinha, que é
profilático tanto de gravidez como de doenças.
A
própria medicina e outras tecnologias, propiciando a maturidade precoce dos
jovens e dando longevidade ativa aos maduros, estendeu a oportunidade de
atividade sexual do indivíduo. Assim,
estendeu-se individual e coletivamente a faixa de consumo do sexo. Faltava promovê-lo. Como já existia o mercado do sexo biológico, a prostituição, surgiu então
a mercadologia do sexo de consumo,
que são o erotismo e a pornografia, ocupando hoje o ciberespaço. Estes, aliados aos demais fatores que
concorrem à cultura permissiva,
acabou modificando os padrões estabelecidos em referência à mais antiga profissão, inclusive na
esfera legal. Na Suíça e na Alemanha foi
onde primeiro se reconheceu parcialmente a prostituição, desde que como encontros sem exploração, e a Inglaterra
foi a primeira a reconhecer o casamento homosexual. Nos Países Baixos, pelo menos 28% de casos de
sífilis recente correspondiam a homens casados que a haviam contraído de suas
esposas. .A indústria turística lucra com o turismo sexual e é complacente com
a prostituição infantil nos chamados terceiro e segundo mundos. Com isso, a prostituição clássica passa a ser
fração epidemiologicamente negligível do fator prostituição. Os homossexuais, sendo promíscuos em
diferentes níveis sociais constituem grupo de alto risco, especialmente os
também heterossexuais, pela capacidade de difusão e ocultamento das infecções.
Compõem
grupos de risco, além dos jovens, prostitutas e homossexuais, os migrantes
(especialmente trabalhadores migrantes) e os viajantes (turistas, tripulantes
de avião, motoristas de caminhão e de ônibus, marinheiros, soldados e viajantes
comerciais e culturais), que, pelas novas facilidades de locomoção, passam de círculos sexuais
fechados a abertos pelo anonimato e a permissividade.
O
fator desinformação talvez seja o mais importante, inclusive a desinformação
por perda da memória médica. A maioria
da população, nascida depois da última guerra mundial, não tem lembrança
pessoal de como era o atendimento médico na era pré-antibióticos e dentro em
pouco a maioria não saberá como era o mundo antes da AIDS. Essa desmemória
explica por que mesmo pessoas cultas e a explosiva população de estudantes
universitários apresentam alta prevalência de doenças sexualmente transmitidas,
e por que até a também explosiva população de jovens médicos contribuem menos
do que deveriam para sua prevenção. O
acometimento de não-marginais, no entanto, não deve marginalizar o cuidado com
os marginais, pois o barco promíscuo é um só.
A miopia para com grupos-problema, especialmente a população que mora
nas ruas e nas favelas (onde também mora uma das pontas do narcotráfico e da
delinqüência), seria suicida, pois eles são característicos das sociedades
hiperurbanizadas - mais nas pobres, mas também nas ricas, ambas atingidas pelo
desemprego em ondas ou crônico.
A
administração sanitária, mesmo dispondo de ação internacional aceita como de
interesse público, exercida pela cinqüentenária Organização Mundial de Saúde
(OMS), criada em 1948, mesmo dispondo hoje de recursos tecnológicos amplos,
inclusive para consolidação infinita de dados e para comunicação global
instantânea, parece impotente e enfraquecida, no tumulto da luta para ser
ouvida seriamente, em meio à estridência do marketing
consumista. Passados os anos, parece de
fato que ninguém, muito menos os governos, ouviu seu alarme geral começado em
1965 sobre o recrudescimento das velhas pestilências, como a sarna, o piolho, a
lepra, os males venéreos, a meningite e a malária - nesta passando-se da
euforia à anarquia18. De lá
para cá elas se somaram à cólera, ao dengue, à leptospirose, à tuberculose e a
infecções não ou pouco conhecidas, como as
subviroses pelos viróides príon
e vírion, as legioneloses, as
clamidioses (a exemplo da que atinge o sistema circulatório), a micoplasmose, o
herpes genital, as hepatites, a malária e a leishmaniose urbanizadas, outras
arboviroses, as gastrenterites viróticas, as iersinioses, as zigomicoses, as
infecções anaeróbias, as infecções microbianas e parasitárias disseminadas por
imunossupressão (da estrongiloidose difusa à endocardite por bacilo acidófilo),
as infecções por infecções internas de parasitas, a AIDS20,40,48 e
seu cortejo oportunista (inclusive a surpreendente micobacteriose cavitária avium), as viroses HTL-BL, a virose
condilomatosa oncogênica, as viroses de
roedores (especialmente a nefropatia hipertensiva epidêmica cosmopolita,
disseminável por inalação de restos fecais de ratos) e ainda a infecção
hospitalar em geral. A estas se associam as
pestes não-infecciosas34, como a fome endemo-epidêmica (denunciada
pelo brasileiro Josué de Castro e redescoberta pela televisão sensacionalista),
a marginalidade social e/ou racial, a violência cínica ou sofisticada e os
envenenamentos industrial, ambiental e individual (ora se dá uma epidemia de
tabaquismo na China, após sua abertura ao marketing
do cigarro ocidental). Convém aqui lembrar que a peste ideológica do nazismo é
que inspirou A Peste de Camus9,
assim como o apartheid evocou a mesma
analogia6. E as pestes
infecciosas e não-infecciosas se misturam, tendo sido dramáticos o encontro de
armas bacteriológicas em poder de terroristas neonazistas (e já ou breve em
mãos do crime organizado) e os casos de malária diagnosticada nos EUA, transmitida por seringa entre ex-soldados
toxicômanos, egressos do Vietnã, e entre marginalizados de guerra egressos do Sudeste Asiático.
A malária, neste caso, antecipou o que
sucederia com a AIDS, logo depois. Mais
trágicos, porém, que os drogados e
somando-se aos leprosos, aos loucos, aos aleijados, aos cegos e aos surdos
- lázaros de todos os tempos - os aidéticos chegam com um potencial de estigma
singular, pois são os primeiros lázaros recíprocos da história: são vistos como
ameaça e aprendem a ver os que os temem como fontes de contágio..
PARADOXOS DO FINAL DE MILÊNIO
Nas
duas últimas décadas do século 20, o confronto entre ills e skills vem-se
dando entre competidores surpreendentes: a revolução molecular da medicina versus o impacto das infecções inéditas.
A
revolução molecular oferece e promete métodos antes inimagináveis, permitindo o
imediato diagnóstico meta-específico dos micróbios, com isso revolucionando
também o rastreamento epidemiológico, da carga microbiana e da resposta
imunitária, e propiciando, por outro lado, a manipulação genética dos mesmos e
da respectiva resposta imunitária, desdobrando os horizontes da vacinação -
agora não só preventiva e também possível contra doenças não infecciosas. Com isso, oito anos apenas depois da primeira
transferência genética no homem52, em 1990, trinta indústrias de terapia genética e três
grandes periódicos especializados foram
criados, enquanto 200 projetos para ensaios foram aprovados, com dois
mil pacientes submetidos (o mesmo se dando em maior escala na veterinária e na
agronomia) - mas apenas uma dúzia de pessoas portadoras de doenças raras foram
de fato beneficiadas. Apesar do
arrefecimento do otimismo inicial, a luta contra os obstáculos encontrados
prossegue forte e promete vitórias reais a médio prazo, em virtude do resultado
potencial, sobretudo econômico.
Assim,
o otimismo molecular do final do século 20 poderia eqüivaler à euforia pastoriana do final do século
19, se não fosse a dura, irônica e paradoxal realidade da AIDS, e não só dela -
conferindo a esta idade a conotação de, em vez de belle époque, de triste
époque. De fato, os anos de 1982/83
ficarão como a data em que a medicina tomou conhecimento da bactéria ralacionada à úlcera péptica51, do
vírus causador da AIDS30 e da bactéria causadora da única mas
persistente infecção de importância transmitida por vetor nos EUA, a doença de
Lyme7 (as duas bactérias são espiroquetóides, longamente postos em
segundo plano pelo vedetismo hegemônico do espiroqueta da sífilis - quando os
clínicos foram treinados para pensar
sifiliticamente10).
Antes,
admitia-se que o simples desenvolvimento sócio-econômico dos países atrasados
os livraria das infecções, o que, convém não esquecer, continua válido em geral
para as pestilências clássicas, enquanto em seu comportamento tradicional. O slogan
da OMS de saúde para todos no ano 2000, desde 1978,
pressupunha que, mesmo sem o desenvolvimento, a chegada de cuidados primários a
todos anteciparia pelo menos um mínimo de igualdade sanitária mundial, o que,
inclusive, seria do interesse sanitário das próprias nações ricas. Ainda mais, se nos cuidados primários fossem
incluídas imunizações globalmente administradas, velhas companheiras do homem
seriam riscadas da nosologia, como de fato foi anunciado para a varíola e a
poliomielite e deve acontecer com outras infecções facilmente imunizáveis,
inclusive por meio de vacinas molecularmente aperfeiçoadas ou criadas.
Tais
expectativas foram modificadas pelo anúncio sucessivo de infecções
completamente novas, como as três citadas, e até de agentes infecciosos de nova
natureza, como o prion, que
caracteristicamente primam por desconhecer os limites entre ricos e pobres,
anulando aquela idéia de que as pestes eram problema secundário entre os ricos
(isso foi profetizado no episódio em que Ross, quando recepcionado na mansão de Osler,
mostrou que este tinha o mosquito da malária em seu quintal). Depois delas a
OMS reformulou seu programa de imunizações globais, abrindo-se inclusive à
cooperação interinstitucional mais ampla e ao financiamento adicional, mesmo
que implique riscos ligados à ética da pesquisa em sujeitos humanos. Os EUA, conscientes de ameaças não só
externas48, descentralizaram em rede sua vigilância, mesmo que assim
fiquem cada vez mais expostos a
episódios histéricos (envolvendo interesses econômicos), como o da gripe suína
do Fort Dix (New Jersey, 1976), ou os ligados às subviroses ebola e da vaca louca22, e à gripe do frango chinês.
Assim
como no final do século 19 e início do 20 toda a nosologia foi vasculhada à
procura da etiologia microbiana - a
comprovação da relação entre infecção e tumores e, principalmente, entre
infecção e úlcera péptica (doença em certa época admitida como peculiar a
intelectuais) desencadeou, exatos cem anos depois, nova busca sistemática,
desta vez facilitada por diagnósticos simplificados. O escrutínio incide, assim, sobre agentes
causadores ou aceleradores de afecções até então tidas como não infecciosas,
sobretudo as chamadas doenças degenerativas.
Ao mesmo tempo procura-se compreender a ecologia microbiológica
(inclusive de criptobiontes) própria dos canais internos, mas abertos, do corpo
(digestivo, respiratório e gênito-urinário) e da pele, especialmente seu
equilíbrio crítico nas respectivas cavidades ou canais de contato externo.
O
apagamento dos limites entre ricos e pobres, entre micróbios patogênicos e não
patogênicos e entre entidades infecciosas e não-infecciosas, acrescidos dos
fatos de que a medicina molecular, em um de seus procedimentos-meio, está
obrigada a dominar o ciclo biológico dos microorganismos e de que o vírus de
computador faz de um símile virtual uma insegurança real e doméstica, mostram
que a microbiologia retomou seu status
inaugural, o que deverá ser talvez uma
das características da medicina no início do novo milênio. Profunda decepção ocorrerá se tudo isso, além
de produzir lucros e fazer brilhar pessoas, grupos, instituições ou países, não
resultar no mínimo, ou seja, livrar as populações da cotidiana ameaça de
doenças sabida e completamente evitáveis.
Tal
novo posicionamento da infectologia na
medicina e na sociedade deveria ser absorvido logo. Seus aspectos mais traumáticos, em vez de
recebidos como bíblico castigo para desregramentos de costumes, devem ser
assumidos lucidamente como coerente contrapartida à inestrutura característica do edifício tecnológico erigido nos
últimos 150 anos. Este resultou mais de
interesses industriais do que de quaisquer outros, deixando lacunas feitas de
assincronias e desarmonias.
Assim,
se, por um lado, males como tais parecem inoportunos nesta altura da civilização,
por outro, devem ser considerados
plausíveis e até inerentes ao desarranjo vertical do aparato tecnológicos de
que dispomos. A horizontalidade do
quadro nosológico da AIDS, por exemplo, surpreendeu em trajes sumários os
perfilados subespecialistas, deixando-os incapazes de qualquer abordagem
inteligente, desmoralizando-os em sombrio fiasco imobilista. De fato, o desafio nela inscrito transecciona
nossa frágil capacidade de enfrentá-lo, através de um corte veloz e desnorteador que vai da dermatologia à
urologia, da ginecologia à neurologia, da imunologia à gastrenterologia, da
hematologia à pneumologia, da infectologia à ecologia, da religião à sexologia,
do direito à indústria, da pesquisa à toxicologia, da epidemiologia à
burocracia, da informática ao preconceito, das universidades aos bordéis.
Como
a morte negra pela peste bubônica na
Idade Média foi a dura pedagogia preparatória do despertar renascentista,
esperemos que o aparente apocalipse das novas pestes passe a ser exemplarmente
pedagógico para a desejada renascença pós-industrial do século 21. É possível,
então, que uma epidemia de lucidez acometa toda a humanidade.
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(Ver bibliografia genérica na
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