João Amílcar Salgado

quinta-feira, 10 de abril de 2014

DOMINGOS DA SILVA GANDRA
Foi o mais radicalmente autêntico em nosso grupo

João Amílcar Salgado
            Quando o reitor Marcelo Vasconcelos Coelho criou, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Núcleo de Assessoramento Pedagógico da Faculdade de Medicina, no final de 1971 (com trabalhos iniciados em março de 1972), ele não sabia que estava dando origem a uma realização histórica no ensino superior no Brasil e também singular no mundo. Domingos da Silva Gandra chegou ali, naquele grupo multidisciplinar, como representante do Departamento de Ciências Sociais da universidade e logo passou a ser admirado e respeitado entre os demais. Logo nos falou de sua pesquisa sobre o preconceito anti-lepra (dois anos antes defendera a tese A LEPRA – INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO FENÔNMEO SOCIAL DA ESTIGMATIZAÇÃO, 1970) e sobre o educador argentino Juan Cesar Garcia, seu amigo pessoal, apontado por ele como a maior autoridade mundial em ensino médico.
          Tal equipe contou com a participação, entre outros, do psicólogo Célio Garcia, do dentista Eugênio Vilaça Mendes, da psicóloga Marília Mata-Machado, da socióloga Celeste Carvalho, da pedagoga Ceres Ribeiro e do médico Aloisio Sales Cunha. A livre troca de idéias entre todos e o Domingos me fez concluir que seríamos um grupo original, capaz de transformar o ensino, mesmo sob a ditadura vigente. É claro que éramos vigiados pelos dedos-duros espalhados por toda a universidade, mas não tivemos maiores obstáculos por duas razões: fomos específicos na questão do ensino e contávamos com as costas largas do reitor Marcelo Coelho. Esse trabalho, do modo como foi desenvolvido, revelou-se único em vários aspectos e está bem documentado em livros: SITUAÇÃO DO ENSINO DA MEDICINA NA UFMG (levantamento inicial, 1972), DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO DO ENSINO DE MEDICINA  NA UFMG – RELATO DE PESQUISA (1973), O PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO CURRICULAR EM EDUCAÇÃO MÉDICA NA UFMG (1976) e ENSINO DA MEDICINA NO BRASIL E EM MINAS GERAIS (2013).
            A proposta era simples: 1) fazer um diagnóstico do ensino, usando metodologia que permitisse resultados comparáveis a investigações já realizadas ou em andamento, no Brasil e no mundo; e 2) manter total independência da reforma da educação superior, imposta em 1968 pela ditadura. Com os resultados concluídos até 1974, aprovou-se que, em vez de submetidos a órgãos decisórios, os dados subsidiariam mudança educacional decidida democraticamente. Para que a ditadura não inviabilizasse iniciativa tão ousada, Gandra, apoiado em suas relações com peritos da Organização Panamericana de Saúde, órgão da Organização Mundial de Saúde (OPAS-OMS), consultou-a sobre possíveis assessores desta agência para esse processo decisório. A OPAS aceitou enviar o peruano Carlos A. Vidal, competente, mas muito cauteloso diante das circunstâncias. Foi então que fomos claros: aceitamos também o Vidal, mas queríamos nada menos do que Juan César Garcia. Houve a tentativa de negar o pedido, mas advertimos que, se isso acontecesse, denunciaríamos a agencia por submissão à ditadura. E o que parecia impossível aconteceu. Garcia, vetado pela CIA, veio. Ele ponderou que a metodologia adotada pela OPAS-OMS era de seminário restrito e de caráter apenas consultivo. Respondemos que o seminário programado era irrestrito, aberto a docentes, estudantes e funcionários, além de paritário entre estes e de caráter decisório. Garcia, sendo quem era, concordou por conta própria. Disso resultaria a eleição direta e paritária para diretor da faculdade e a eleição direta e paritária para reitor, sendo que a primeira arrastou Tancredo Neves para a campanha das “diretas-já”.
            Vale ressaltar que a OPAS-OMS antes nos enviara o chileno Manuel Bobenrieth para um seminário realizado em 1969, preparatório da implantação do cuidado progressivo do paciente no hospital das clínicas da faculdade, de que resultou o primeiro CTI em modelo completo do país, em 1971. As discussões do seminário afinal subsidiaram a mudança educacional iniciada a seguir, de tal modo que foram duas presenças convergentes e felizes para a UFMG, a de Bobenrieth e a de César Garcia. Bobenrieth trabalhou também na Espanha e Vidal na Argentina. Garcia e Gandra faleceram demasiado cedo.
            No México, em convenção da ALAFEM, em 1979, indiquei aos cubanos Juan Cesar Garcia para assessorar a reforma de seu ensino médico, e este parece ter sido seu último trabalho. Nesse encontro, representantes de outros países me perguntaram por que não indiquei o Domingos Gandra. Respondi que a ditadura brasileira não o perdoaria. A seguir Gandra fez parte da banca examinadora de meu doutorado. Propus defender uma tese sem nenhuma referencia bibliográfica, intitulada CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DA RELAÇÃO ENTRE REALIDADE DE SAÚDE E ENSINO MÉDICO (1981). O colegiado da pós-graduação duvidou que fosse possível compor uma banca que concordasse com isso e seus membros ficaram na expectativa de que a tese fosse rejeitada. Mas a banca ficou composta por Domingos Gandra, Oder José dos Santos, José Geraldo Dângelo e Carlos Ribeiro Diniz, sendo orientador Luiz de Paula Castro. Nas últimas cadeiras do auditório, excepcionalmente repleto, viam-se componentes do Serviço Nacional de Informações da universidade. Uns eram notórios e outros causaram surpresa, como um docente que era coronel-médico da polícia militar e que compareceu de uniforme militar. E essa banca, desafiando o arbítrio, não só aprovou a tese, como aplaudiu sua originalidade e a classificou de histórica.
            A última mas não a menor participação de Domingos Gandra nesta audaciosa experiência pedagógica foi participar do ensino de semiologia médica do novo currículo. Vários de nossa equipe de inovadores esperavam  que ele fosse expulso do ambiente hospitalar, por se intrometer ali, onde insistia em questionar, junto a estudantes, docentes e funcionários, aspectos antropológicos da relação médico-paciente. Foi exatamente o contrário que aconteceu. Tornou-se acatado e admirado e, mais que isso, vários professores, funcionários e estudantes pediram-lhe marcar hora para conversa em separado, na qual ele acabava sendo uma espécie de guru ou conselheiro e até terapeuta.
            O professor João Galizzi vinha sendo desafiado a escrever um manual de SEMIOLOGIA MÉDICA, que tinha tudo para ser obra magna, segundo opinião unânime. Dizía-se que seria uma espécie de continuidade fiel ao livro clássico de Francisco de Castro. Infelizmente o livro não foi finalizado. De qualquer modo, naquele ambiente de inovação, sua equipe se entusiasmou com a obra e vários chegaram a esboçar os capítulos que escolheram. Não sei se Domingos Gandra chegou a rascunhar o seu. Só sei que seria um texto verdadeiramente original, admirável e permanente.
O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais


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