DOMINGOS
DA SILVA GANDRA
João Amílcar Salgado
Quando
o reitor Marcelo Vasconcelos Coelho criou, na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), o Núcleo de Assessoramento Pedagógico da Faculdade de Medicina,
no final de 1971 (com trabalhos iniciados em março de 1972), ele não sabia que
estava dando origem a uma realização histórica no ensino superior no Brasil e
também singular no mundo. Domingos da Silva Gandra chegou ali, naquele grupo
multidisciplinar, como representante do Departamento de Ciências Sociais da
universidade e logo passou a ser admirado e respeitado entre os demais. Logo
nos falou de sua pesquisa sobre o preconceito anti-lepra (dois anos antes
defendera a tese A LEPRA – INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO FENÔNMEO SOCIAL DA
ESTIGMATIZAÇÃO, 1970) e sobre o educador argentino Juan Cesar Garcia, seu amigo
pessoal, apontado por ele como a maior autoridade mundial em ensino médico.
Tal equipe contou com a participação,
entre outros, do psicólogo Célio Garcia, do dentista Eugênio Vilaça Mendes, da
psicóloga Marília Mata-Machado, da socióloga Celeste Carvalho, da pedagoga
Ceres Ribeiro e do médico Aloisio Sales Cunha. A livre troca de idéias entre todos
e o Domingos me fez concluir que seríamos um grupo original, capaz de
transformar o ensino, mesmo sob a ditadura vigente. É claro que éramos vigiados
pelos dedos-duros espalhados por toda a universidade, mas não tivemos maiores
obstáculos por duas razões: fomos específicos na questão do ensino e contávamos
com as costas largas do reitor Marcelo Coelho. Esse trabalho, do modo como foi
desenvolvido, revelou-se único em vários aspectos e está bem documentado em
livros: SITUAÇÃO DO ENSINO DA MEDICINA NA UFMG (levantamento inicial, 1972),
DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO DO ENSINO DE MEDICINA
NA UFMG – RELATO DE PESQUISA (1973), O PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO
CURRICULAR EM
EDUCAÇÃO MÉDICA NA UFMG (1976) e ENSINO DA MEDICINA NO BRASIL
E EM MINAS GERAIS
(2013).
A proposta era simples: 1) fazer um
diagnóstico do ensino, usando metodologia que permitisse resultados comparáveis
a investigações já realizadas ou em andamento, no Brasil e no mundo; e 2)
manter total independência da reforma da educação superior, imposta em 1968
pela ditadura. Com os resultados concluídos até 1974, aprovou-se que, em vez de
submetidos a órgãos decisórios, os dados subsidiariam mudança educacional decidida
democraticamente. Para que a ditadura não inviabilizasse iniciativa tão ousada,
Gandra, apoiado em suas relações com peritos da Organização Panamericana de
Saúde, órgão da Organização Mundial de Saúde (OPAS-OMS), consultou-a sobre
possíveis assessores desta agência para esse processo decisório. A OPAS aceitou
enviar o peruano Carlos A. Vidal, competente, mas muito cauteloso diante das
circunstâncias. Foi então que fomos claros: aceitamos também o Vidal, mas
queríamos nada menos do que Juan César Garcia. Houve a tentativa de negar o
pedido, mas advertimos que, se isso acontecesse, denunciaríamos a agencia por
submissão à ditadura. E o que parecia impossível aconteceu. Garcia, vetado pela
CIA, veio. Ele ponderou que a metodologia adotada pela OPAS-OMS era de
seminário restrito e de caráter apenas consultivo. Respondemos que o seminário
programado era irrestrito, aberto a docentes, estudantes e funcionários, além
de paritário entre estes e de caráter decisório. Garcia, sendo quem era,
concordou por conta própria. Disso resultaria a eleição direta e paritária para
diretor da faculdade e a eleição direta e paritária para reitor, sendo que a
primeira arrastou Tancredo Neves para a campanha das “diretas-já”.
Vale ressaltar que a OPAS-OMS antes
nos enviara o chileno Manuel Bobenrieth para um seminário realizado em 1969,
preparatório da implantação do cuidado progressivo do paciente no hospital das
clínicas da faculdade, de que resultou o primeiro CTI em modelo completo do
país, em 1971. As discussões do seminário afinal subsidiaram a mudança
educacional iniciada a seguir, de tal modo que foram duas presenças
convergentes e felizes para a UFMG, a de Bobenrieth e a de César Garcia.
Bobenrieth trabalhou também na Espanha e Vidal na Argentina. Garcia e Gandra
faleceram demasiado cedo.
No México, em convenção da ALAFEM,
em 1979, indiquei aos cubanos Juan Cesar Garcia para assessorar a reforma de
seu ensino médico, e este parece ter sido seu último trabalho. Nesse encontro,
representantes de outros países me perguntaram por que não indiquei o Domingos
Gandra. Respondi que a ditadura brasileira não o perdoaria. A seguir Gandra fez
parte da banca examinadora de meu doutorado. Propus defender uma tese sem
nenhuma referencia bibliográfica, intitulada CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DA RELAÇÃO
ENTRE REALIDADE DE SAÚDE E ENSINO MÉDICO (1981). O colegiado da pós-graduação
duvidou que fosse possível compor uma banca que concordasse com isso e seus
membros ficaram na expectativa de que a tese fosse rejeitada. Mas a banca ficou
composta por Domingos Gandra, Oder José dos Santos, José Geraldo Dângelo e
Carlos Ribeiro Diniz, sendo orientador Luiz de Paula Castro. Nas últimas
cadeiras do auditório, excepcionalmente repleto, viam-se componentes do Serviço
Nacional de Informações da universidade. Uns eram notórios e outros causaram
surpresa, como um docente que era coronel-médico da polícia militar e que
compareceu de uniforme militar. E essa banca, desafiando o arbítrio, não só
aprovou a tese, como aplaudiu sua originalidade e a classificou de histórica.
A última mas não a menor
participação de Domingos Gandra nesta audaciosa experiência pedagógica foi
participar do ensino de semiologia médica do novo currículo. Vários de nossa
equipe de inovadores esperavam que ele
fosse expulso do ambiente hospitalar, por se intrometer ali, onde insistia em
questionar, junto a estudantes, docentes e funcionários, aspectos
antropológicos da relação médico-paciente. Foi exatamente o contrário que
aconteceu. Tornou-se acatado e admirado e, mais que isso, vários professores,
funcionários e estudantes pediram-lhe marcar hora para conversa em separado, na
qual ele acabava sendo uma espécie de guru ou conselheiro e até terapeuta.
O
professor João Galizzi vinha sendo desafiado a escrever um manual de SEMIOLOGIA
MÉDICA, que tinha tudo para ser obra magna, segundo opinião unânime. Dizía-se
que seria uma espécie de continuidade fiel ao livro clássico de Francisco de
Castro. Infelizmente o livro não foi finalizado. De qualquer modo, naquele
ambiente de inovação, sua equipe se entusiasmou com a obra e vários chegaram a
esboçar os capítulos que escolheram. Não sei se Domingos Gandra chegou a
rascunhar o seu. Só sei que seria um texto verdadeiramente original, admirável
e permanente.
O autor é professor
titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade
Federal de Minas Gerais
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