João Amílcar Salgado

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

BIÓPSIA LÍQUIDA

A biópsia líquida seria uma revolução na medicina, não fosse a ameaça que agora surge, de que possa ser precipitadamente explorada, rendendo bilhões de dólares aos exploradores - à custa da boa fé de multidões de esperançosos. Trata-se de um exame tipo DNA feito em sangue colhido da maneira usual e esse sangue pode revelar a presença de algum tumor inicial, ainda sem sintomas. Os estudos atuais revelam que alguns tipos de tumores, como o do ovário,  podem ser revelados com grande precisão. Dentro de poucos anos tal tecnologia estará estabelecida com segurança. Antes disso, muita informação mal-intencionada deverá ser usada para imenso lucro de empresas comerciais. No momento, ainda se busca uma precisão bem determinada, com o fim de mínimo dano causado por resultados falsos-positivos, exames adicionais frustrantes, diagnóstico abusivo levando a tratamento abusivo, estigmatização e  superfaturamento de procedimentos. Figura apud Annals of Internal Medicina.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

90 ANOS DA UFMG
João Amílcar Salgado
PRÉ-HISTÓRIA DA UFMG 
A pré-história da UFMG pode ser demarcada pelas primeiras propostas de se criar uma universidade no Brasil. A elite brasileira devia saber que as demais colônias das Américas já possuíam universidades desde muito cedo: em São Domingos (1538), Lima (1551), México (1551 e 1562), Havard (1636) e Bogotá (1653). No Brasil, houve a proibição de cursos superiores, mas as escolas jesuíticas burlaram o veto quando seu ensino chegou ao nível superior, ainda no século 17, com diplomas da universidade lusa de Évora (1559). Nosso primeiro seminário católico é o de São José, criado no Rio, em 1739. Em Minas, o primeiro é o de Mariana, de 1750. Na segunda metade do século 18, jovens médicos, advogados, sacerdotes e letrados de várias áreas passaram a ser influenciados pelas ideias iluministas que desaguaram na Revolução Francesa e na Independência dos EUA. Estas eram reprimidas nas universidades europeias, mas as faculdades de medicina de Edimburgo (Escócia), Montpellier (em território que viria a ser francês) e Leiden (Holanda) não as reprimiam e até eram seus focos difusores.  José Vieira Couto médico diamantinense acompanhava de perto a modernidade de Leiden, Antônio Gonçalves Gomide, de Piranga, estudou em Edimburgo, Faustino Azevedo, de São Gonçalo do Sapucaí, estudou em Montpellier e foi um dos estudantes de medicina inconfidentes. Outros destes também alunos em Montpellier, foram Joaquim Seixas Brandão, de Vila Rica, Inácio Ferreira Câmara, de Mariana e Domingos Barbosa Lage, de Juiz de Fora. Francisco de Melo Franco em vez de estudar medicina fora de Portugal ficou na universidade de Coimbra e por suas divergências com o ensino vigente retratou-a, em um poema, em 1784, não como instituição sábia, mas como O REINO DA ESTUPIDEZ.
            Na constituinte de 1823, incluiu-se a primeira universidade brasileira. Foi inclusive proposta para ser localizada na cidade de Caeté, a poucos quilômetros da futura UFMG. O constituinte Acaiaba de Montezuma (médico negro baiano) defendeu que Minas merecia a instituição, por ser a província mais culta e por sua localização central. Se tivesse sido de fato criada, no início do século 19, Gomide teria sido seu organizador nos moldes de Edimburgo, na época talvez a melhor universidade do mundo.  Até o final desse século vários idealistas lutaram em vão pela mesma iniciativa. Em vez disso foram criados cursos oficiais não universitários de cirurgia em Minas (1801), em Salvador (1808), no Rio (1808) e outros que não prosperaram ou que eram desautorizados. Em 1827 surgem as faculdades de direito (Olinda e São Paulo) e, em 1832, os cursos de cirurgia de Salvador e do Rio são guindados a faculdades. Em Minas, em vez de ocorrer o mesmo com o mais antigo desses cursos, ele foi substituído pela Escola de Farmácia, em 1839. O ensino da engenharia no Brasil foi esboçado em 1792 como academia militar e se tornou faculdade civil em 1874. Em Minas, apesar de sua gigantesca riqueza mineral, houve obstáculos para a criação de uma faculdade politécnica de engenharia, como a citada do Rio e a de São Paulo (1893), permitindo-se apenas uma Escola de Minas (monotécnica), em 1876. Houve também obstáculos para criação da primeira faculdade de medicina mineira, que foi criada apenas depois de ocorrer a cobiça pelo minério mineiro, decorrente da divulgação das reservas em 1910. Tal divulgação causou quatro consequências diretas:  a mencionada escola de minas, a faculdade de medicina (1911, hoje da UFMG), o prolongamento da ferrovia Central do Brasil pelo sertão e a criação da companhia siderúrgica Belgo-Mineira - e duas indiretas: a descoberta da doença de Chagas, em 1909, o maior feito da ciência nacional, e a criação do Instituto do Radium.
            As universidades de Manaus (hoje Federal do Amazonas), em 1909, e a do Paraná (hoje Federal), em 1912, foram as primeiras instituídas efetivamente no Brasil. A Universidade do Rio de Janeiro (depois denominada Universidade do Brasil, hoje Federal do Rio de Janeiro) foi instituída em 1920 pelo presidente Epitácio Pessoa e teria sido providenciada  para que o rei Alberto I da Bélgica recebesse o título de doutor honoris causa. O rei veio ao Rio e a Minas em função da criação da referida companhia Belgo-Mineira, em 1921, tendo sido fundado aqui também o sobredito Instituto do Radium (tecnologia médica então monopólio belga), em 1922, este visitado por Marie e Irene Curie em 1926 -  e primeiro instituto do gênero nas Américas. A propósito desses visitantes, devemos lembrar outros que por Minas passaram ou para aí vieram e que completam, de certo modo, a pré-história da UFMG, como o pacificador Antônio de Albuquerque, o misterioso Antonil, os cirurgiões Luís Gomes Ferreira e Antônio Vieira Carvalho, os médicos Diogo Correa do Vale e José Rodrigues de Abreu e ainda Auguste Saint-Hilaire, Guido Marlière, Hermann Burmeister, Richard Burton e Peter Lund. Por outro lado, os intelectuais ligados à Inconfidência, o arqueólogo Basílio Furtado, o polímata Álvaro da Silveira, o inventor Santos Dumont, o descobridor Vital Brazil, os eruditos clássicos de Sabará, Caeté, São João del-Rei, Campanha,  Pouso Alegre, Baependi, Serro e Diamantina, os docentes de farmácia e de engenharia da fase áurea de Ouro Preto, são, em grande parte, fruto daquela universidade que existiu informalmente dentro das paredes de muitos lares, peculiar às raízes judaicas de Minas   O histórico das escolas superiores, que vieram a ser reunidas na UFMG, está no livro MINAS GERAIS EM 1925 (1926), editado por Victor Silveira. Cumpre sublinhar finalmente que Humberto Mauro, o primeiro cineasta brasileiro, foi aluno da escola de engenharia.
FUNDAÇÃO DA UFMG
A UFMG foi criada pelo governador Fernando de Melo Viana, em 1925 (Lei 895), mas só foi instituída pelo governador Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, em 1927 (Lei 956), reunindo as quatro escolas superiores privadas existentes em Belo Horizonte: Escola Livre de Direito, de 1892 e transferida de Ouro Preto em 1898, a Escola Livre de Odontologia e Farmácia (Odontologia de 1907, Farmácia de 1911), a Faculdade de Medicina de 1911, e a Escola de Engenharia de 1911. A universidade, no início estadual, denominada Universidade de Minas Gerais (UMG), foi federalizada em 1949 e desde 1965 é denominada Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao lado de Antônio Carlos Andrada, subscreveram a fundação os diretores das quatro escolas: Francisco Mendes Pimentel (Direito, eleito a seguir o primeiro reitor), Hugo Werneck (Medicina), Artur Guimarães (Engenharia) e Washington Ferreira Pires (Odontologia e Farmácia). Participaram ainda Estêvão Pinto e Francisco Campos. Minas Gerais contou e conta com excelentes historiadores e é paradoxal que o único livro sobre a história de sua primeira universidade tenha sido escrito por um abnegado e competente funcionário administrativo, Eduardo Affonso de Moraes – HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, de 1971. Quando se quis um livro crítico sobre a instituição, o reitor Tomaz Santos foi buscar na Universidade de Brasília um historiador, Fernando Correa Dias, que, embora ex-aluno da UFMG, não pertencia a seus quadros. Dias escreveu o livro UFMG – PROJETO INTELECTUAL E POLÍTICO, de 1997. Os estudos feitos posteriormente, em vez de complementos sistemáticos e exaustivos, são apontados como falhos e até controversos, seja quanto ao método, seja quanto à seriedade. Pedro Nava, que escreveu, em meio a suas memórias, riquíssima história da UFMG, sugeriu que os fatos polêmicos do início da instituição tenham amedrontado os historiadores mais sisudos. O principal desses incidentes foi o assassinato do estudante de medicina Jose Ferreira Viana, baleado pelo filho do primeiro reitor, em plena reunião do Conselho Universitário.  Outro episódio foi o veto do arcebispo Antônio Cabral ao financiamento oferecido pela Fundação Rockefeller à nascente universidade - e também o fator Vargas.
CONFLITO E MORTE EM 1930
A UFMG foi fundada três anos antes da Revolução de 30.  Um ano após a fundação, ou antes, o fundador governador Antônio Carlos já se engajava nessa revolução. Ele próprio tinha sido preterido para ser o novo presidente do país, sucedendo a Washington Luís, quebrando-se a alternância São Paulo / Minas Gerais no poder central. Essa alternância teria sido estabelecida pela BUCHA, termo corrente entre os estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo no final do século 19. É a corruptela de BURSCHENSCHAFT, designação de irmandade estudantil criada na Universidade de Iena, em 1815, em prol da unificação alemã. A burschenschaft brasileira lutava pela república e vários de seus integrantes eram parentes entre si, por troncos bandeirantes comuns a São Paulo e Minas Gerais. O ex-bucheiro Antônio Carlos passa a líder antibucha. Os estudantes apoiaram a revolução e obtiveram a abolição dos exames do final de 1930 (um dos que foram dispensados do exame foi o formando João Guimarães Rosa, por sinal orador da turma). O reitor Mendes Pimentel não quis subscrever a abolição e alegou a autonomia universitária. A reunião do Conselho Universitário, em 18 de novembro, que iria oficializar a negativa, foi tumultuada por estudantes e o filho do reitor assassinou um dos ativistas. Mendes Pimentel renunciou ao cargo e se afastou da universidade, mas escreveu o livreto O CONFLITO DE 18 DE NOVEMBRO NA UNIVERSIDADE DE MINAS GERAIS (1931).
OS FORMANDOS NAVA, JK E ROSA
O ano de 1927, da fundação da atual UFMG, coincidiu ser o da formatura em medicina da turma de Juscelino Kubitscheck (JK), o maior governante brasileiro, e Pedro Nava, o maior memorialista lusófono. Três anos depois se diplomaria outro médico, João Guimarães Rosa, o mais original escritor do mesmo idioma. No caso de JK e Nava, ocorreu a mudança do orador da turma que se esperava ser Nava. JK antecipou aí sua futura habilidade política. O diretor da Faculdade era o severíssimo Hugo Werneck, que, após um incidente na Santa Casa, expulsara Pedro Nava do hospital (então hospital-escola da UFMG) e só não o expulsou da Faculdade por apelo de Carlos Pinheiro Chagas e Lucas Machado. Na formatura era inevitável a presença do diretor Hugo. Se Nava fosse o orador, ele fatalmente incendiaria a solenidade, com consequência imprevisível.  JK então articulou eleger Odilon Behrens no lugar do decepcionadíssimo Nava. Imediatamente lhe disseram que a ele estava reservado algo mais alto. Iriam a palácio agradecer ao governador a criação da Universidade naquele ano, fazendo deles primogênitos da instituição. E para tão excepcional ocasião o orador só poderia ser Nava. Já na formatura de Rosa houve também hábil arranjo para que o orador não incendiasse a festa em função do citado incidente no Conselho Universitário, 20 dias antes. Assim, o orador Rosa e o paraninfo Samuel Libânio discursaram como se nada tivesse acontecido, omitindo totalmente o terrível acontecimento.
O VETO DO ARCEBISPO
       O sergipano Antônio de Santos Cabral, arcebispo de Belo Horizonte desde 1924, chegou da diocese de Natal, RN, onde enfrentara carências, e se entusiasmou ao encontrar católicos fervorosos e generosos na elite econômica de Minas.  Disso se valeu para crescente aquisição imobiliária em favor da arquidiocese. Em contrapartida se alarmou com o prestígio crescente dos educandários protestantes de Lavras, Juiz de Fora e da Capital, o qual desafiava o prestígio antes conquistado pelos educandários católicos do Estado. Esta preocupação era exacerbada por outra ameaça, representada pela educação pública reformada por Antônio Carlos, em favor da chamada ESCOLA NOVA, ainda mais com a forte influência da educadora Helena Antipoff, emigrada da Rússia. A determinação do arcebispo chegou à violência, quando fez com que fosse demolida a Igreja Metodista (hoje Edifício Acaiaca), para que deixasse de ficar defronte à Igreja São José. Fundada a UFMG, pelo mesmo Antônio Carlos, o arcebispo tratou de usar docentes fervorosos para que a universidade, mesmo pública, viesse a ser virtualmente católica. Três docentes-chaves podem ser lembrados, entre outros, como porta-vozes intramurais da Igreja: Hugo Werneck (medicina), Francisco Magalhães Gomes (engenharia) e Antônio de Melo Cançado (direito). Quando a Fundação Rockefeller fez a oferta de milhares de dólares para transformar a UFMG na melhor universidade do Brasil, Cabral e seus companheiros de fé não tiveram dúvida: era a conspiração protestante contra a mais católica província brasileira que estava culminando, a peso de dólares. Os ianques ficaram estarrecidos com o veto comandado pelo religioso e não tiveram dúvida: redirecionaram os dólares para a Universidade de São Paulo, fundada em 1934.
O FATOR VARGAS
       A universidade principiante, além de ficar sem os dólares, passou a penar sob manifestações negativas do governo federal. O novo poder começou em 24 de outubro por meio de uma junta militar provisória, que o passou a Getúlio Vargas em 3 de novembro.  Vargas deve ter tomado conhecimento da morte do estudante de medicina em Minas. A nova universidade fundada pelo mais importante aliado de Vargas deveria beneficiar-se do novo governo, mas o posicionamento do Conselho Universitário, contrário aos estudantes partidários da revolução, fez dela instituição hostil. Ao mesmo tempo, Vargas passou a fazer jogo duplo com os intelectuais que cercavam Antônio Carlos considerados brilhantes, mas vistos como insubmissos e contaminados por indisfarçáveis ambições diante do novo poder. Resultou um clima de ciúmes e intrigas, segundo alguns, semeados principalmente por Francisco Campos e Washington Pires. Com isso Vargas os dispersou com tarefas que pareciam nobilitantes mas eram exílios virtuais. São eles os advogados (além de Campos) Gustavo Capanema, Virgílio de Melo Franco e Francisco Negrão de Lima, o médico Carlos Pinheiro Chagas, outros profissionais liberais e alguns políticos veteranos.
            A relação entre Vargas e Minas foi desde cedo ambivalente, a começar, quando, ainda menino, estudou em Ouro Preto. Nessa época ele (ou seu irmão) assassinou um colega, de importante família. Fugiu da cidade, se escondeu numa fazenda em Lavras e voltou para seu Estado. Parece ter passado a vida a temer a vingança. Aparentemente via em qualquer desafeto mineiro ou paulista eventual agente do revide. Daí sua dificuldade em confiar em auxiliares que lhe eram sugeridos, o que explica ter inventado a figura desconhecida de Benedito Valadares, mesmo assim com a garantia de que se fizesse meio gaúcho, depois de casado com Odete Dorneles, prima dos Vargas. Com a fidelidade canina de Benedito, se livrou daqueles insistentes candidatos ao governo. Assim, a universidade iniciante passou a ter suas dificuldades agravadas, mais ainda quando Washington Pires, outro fiel comandado, passou a ministro da educação e saúde, em 1932. Pires, filho do pioneiro mundial no uso interiorano do raio-x, o formiguense José Carlos Pires, aproveitou o conflito constitucionalista para impressionar Getúlio, que o fez ministro. Nesta condição passou a alarmar seu chefe contra professores e estudantes constitucionalistas.  Embora sendo um dos fundadores da universidade, acabou sendo sabotador desta, na ânsia de bajular o caudilho. O decreto 22579 (27/3/33), que, em vez de redentor, garroteia o ensino superior e sufoca sua autonomia, é assinado por Getúlio e Pires.
            Curiosamente Valadares poderia ter tido carinho especial pela jovem universidade. Antes de ser advogado formou-se no curso de odontologia que existiu na faculdade de medicina e que diplomou apenas a sua turma. Este fato é referido por seu colega de turma, o cronista e censor Moacir Andrade, no livro DEPOIMENTO DE UM DENTISTA FRUSTRADO (1955).  Foi, contudo, como advogado que Benedito esteve no Túnel da Mantiqueira em arranjo de seu primo Francisco Campos. Ali conheceu seu futuro cunhado Ernesto Dorneles e outros que constituíram a chamada CONTRABUCHA PASSAQUATRENSE, grupo que, a partir dali, se organizou para assumir o poder. Dois se tornaram presidentes: Eurico Dutra e Juscelino Kubistschek (JK). Quatro governaram estados: Ernesto Dorneles, o Rio Grande do Sul, Benedito Valadares, Minas Gerais, Zacarias Assunção, o Pará, e o próprio JK, também Minas Gerais. Dois se tornaram reitores da Universidade de Minas Gerais: Otaviano de Almeida (este duas vezes) e Pedro Paulo Penido.   Almeida fez o contraponto de Washington Pires, por meio de melhores relações com Vargas, deixando um livreto:  A PROPÓSITO DO “CASO DA UNIVERSIDADE” (1934).

O PIVÔ BAETA VIANA
       Durante e após o movimento de 1930, dois docentes da recém-criada universidade teriam papel extraordinário: Carlos Pinheiro Chagas e Baeta Viana. Carlos Chagas, graças à descoberta da doença que traz seu nome, usou de seu prestígio junto à já referida Fundação Rockefeller para encaminhar seu primo, o médico patologista Carlos Pinheiro, e o amigo dileto deste, o médico bioquímico Baeta Viana, aos EUA. Até então o destino de jovens promissores era a Europa e o estágio destes retrata a guinada então iniciada pró-EUA. A revolução em andamento não escondia tal guinada. Carlos Pinheiro Chagas foi o orador no funeral de João Pessoa, rastilho revolucionário.  Por duas décadas, em qualquer torneio de oratória nas faculdades de direito, os disputantes sabiam recitar sua alocução, com seu admirável final: Agora, senhores, podereis levar o seu corpo para a morada derradeira, mas atendei: um homem como ele deveria ser enterrado de pé como sempre viveu, de pé, como não vivem muitos dos seus algozes, de pé como quis ser enterrado Clemenceau, com o coração acima do estômago e com a cabeça acima do coração.  Infelizmente faleceu logo depois.
Enquanto isso, Baeta Viana conflagrou os estudantes em prol dos constitucionalistas e veio a ordem governamental para esmagá-los. Foram salvos exatamente pela heroica ação pacificadora do médico do comando da polícia, exatamente o sobredito Otaviano de Almeida. Esta foi a principal razão para que este fosse a seguir eleito reitor por duas vezes, afastando a influência infeliz de Washington Pires. Viana prosseguiu em oposição a Vargas, com repercussão além de Minas, a ponto de se tornar reitor da Universidade do Distrito Federal. Esta foi criada em 1935,  pelo prefeito eleito do Distrito Federal, o recifense médico Pedro Ernesto Rego Batista, com a assessoria pedagógica do baiano Anísio Teixeira, e reuniu rara  seleção de notáveis de todo o país, em quase todos os ramos do saber. É fácil deduzir que a promissora universidade fosse fechada pelo golpe de estado de 1937. Baeta Viana prosseguiu na oposição em pleno Estado Novo e foi um dos inspiradores, embora sem assiná-lo, do Manifesto dos Mineiros, de 24/10/1943, início do fim da ditadura Vargas. E houve um episódio final de seu confronto com o ditador, quando da inauguração do Hospital da Baleia em Belo Horizonte, em 4/7/44. Os getulistas, supondo que no discurso de inauguração da então melhor edificação hospitalar do país, Baeta Viana provocaria a queda final de Vargas, fizeram com que este viesse a Minas para uma exposição pecuária. No momento da inauguração do hospital, Viana é surpreendido pela presença de Valadares e Vargas, e a única hostilidade acontecida foi que o cientista negou estender a mão ao ditador.
Um dos docentes da Universidade de Minas Gerais era primo de Valadares: o notável professor Osvaldo de Melo Campos, descobridor do escorpião amarelo. Compreensivelmente, era desafeto de Baeta Viana e sugeriu ao Benedito que a melhor maneira de enfrentar o Baeta seria trazer um cientista de igual brilho para fazer-lhe sombra. A ideia era boa, mas não deu certo, pois, depois de procurarem por toda a parte, trouxeram, em 1942, o farmacologista fluminense Santiago Americano Freire, que, ao contrário, tratou o outro até com certa reverência.
Baeta Viana teve o mérito de impor o prestígio da UFMG ao meio universitário paulista, quando discípulos seus fundaram a Escola Paulista de Medicina, hoje universidade, e assumiram o ensino e a pesquisa de bioquímica na Universidade de São Paulo (na Capital e em Ribeirão Preto). Seus discípulos se projetaram internacionalmente culminando com a bradicinina, descoberta por Wilson Beraldo, com o captopril, desenvolvido por discípulos de Carlos Diniz, e com a primeira fabricação da insulina no Hemisfério Sul, por Marcos de Mares Guia. Baeta equivocou-se, porém, com o veto ao Prêmio Nobel a Josué de Castro. Outro equívoco seu foi a respeito do projeto nuclear brasileiro: a UFMG estudaria o plutônio capixaba e a USP o urânio de Poços de Caldas.  Por causa disso, polemizou com Francisco Magalhães Gomes e a vantagem foi deste: para surpresa de Baeta, Francisco trouxe a esta Universidade, em 1948, ninguém menos do que Robert Oppenheimer, que, na ocasião, estava acossado pelo macartismo. Baeta, que enfrentara a ditadura Vargas, mais tarde desafiou o golpe de 1964. Viajou a São Paulo, onde conseguiu dar fuga a dois discípulos marcados para morrer: Sebastião Baeta Henriques e Olga Bohomoletz. Feliz por consegui-lo, voltou ao hotel e aí faleceu, em 1965.
SANTIAGO AMERICANO & ALUÍSIO PIMENTA
       Santiago  não deixou de marcar sua passagem pela UFMG:  1) revolucionou o ensino da farmacologia por meio do livro de Goodman & Gilman, e ainda trouxe este último em visita memorável; 2) por sua ligação pessoal com Albert Hofmann, descobridor do LSD, foi primeiro em experimentos com o fármaco; 3) foi acusado de sequestrar o pintor Guignard para tais experimentos; 4) levou o reitor Aluisio Pimenta, também farmacólogo, a publicar sua alegada descoberta de que a Última Ceia de DaVinci era mensagem astronômica cifrada. Tais fatos são narrados em meu  livro O RISO DOURADO DA VILA (2013). A publicação excessivamente luxuosa do livro de Santiago teria sido um dos motivos alegados, a posteriori, para a deposição de Aluísio da reitoria pelo golpe de 1964. Outra alegação foi o convite feito a Darcy Ribeiro (ministro do Gabinete Civil de Jango) para a aula magna de abertura do ano letivo de 64. O grupo paramilitar do golpe teria planejado matar Darcy em plena aula na Faculdade de Ciências Econômicas. Aluísio foi deposto e substituído por um mero coronel. Foi logo reempossado por ordem do ditador Castelo, mas foi cassado de fato pelo AI5, em 1968. Na história da UFMG houve então um momento em que seu reitor foi um coronel academicamente desqualificado.  Aluísio Pimenta estava a caminho de ser um grande reitor e sua maior obra seria realizar aquilo que estava apalavrado com Carlos Diniz: criar o campus sulmineiro da UFMG. Nele seria reunida a fina flor da ciência e do saber nacional, somados a convidados internacionais. Com o golpe, isso ficou de lado, mas a proposta foi aproveitada por colegas paulistas de Diniz e dela surgiu a UNICAMP, em 1966.
O LUGAR DA UFMG
       A UFMG, como seu nome inicial indicava, poderia estar presente em toda Minas Gerais. No preparo do governo nacional de Tancredo Neves e mesmo durante seu governo estadual, um grupo de estudiosos dos problemas de educação e saúde finalizou a proposta de fazer de Minas o maior complexo de ensino superior federal do Brasil, enquanto São Paulo já possuía o maior complexo de ensino superior estadual. Nessa altura não se propunha a multiplicação de campi da UFMG, mas a utilização da experiencia e demais recursos desta para aquele fim. Governos subsequentes retomaram a proposta, inclusive no plano nacional, mas com distorções, improvisações e resultado caótico.  Entre as análises feitas, ficou claro como a própria UFMG, desde cedo, não soube estabelecer uma política de ocupação de espaços urbanos e rurais na Capital e no interior.
            Na Capital planejada, foi previsto o campus universitário (hoje bairro Santo Agostinho). Consta que o fundador Antônio Carlos se deslocou ao alto onde seria a reitoria (hoje Assembléia) para se assegurar que esta não ficasse acima do palácio, do contrário seria mau precedente. Antes da reunião das faculdades na universidade, estas já ocupavam áreas valiosas. A da medicina foi, esta sim, um mau precedente, pois resultou da amputação de enorme parte do parque municipal.  Este avançava até a praça Hugo Werneck e atravessava o rio Arrudas. Assim como a medicina grilou o parque, sua área foi grilada pelas instituições em seu redor, culminando que a área esportiva de seus alunos foi inicialmente estádio de futebol, depois foi indevidamente vendida a uma rede de supermercados. A demolição dos prédios históricos das faculdades de medicina e direito foi criminosa. Na plataforma eleitoral do reitor Cid Veloso estava prevista a proibição de venda ou transferência de próprios do centro. O próprio Cid participara do impedimento de demolição do prédio do Instituto do Radium e atuou na incorporação do antigo Instituo Agronomico à UFMG. Mesmo assim a área deste, antes e depois, foi grandemente amputada.  Previa-se a criação do espaço Pedro Nava, um calçadão nas avenidas Alfredo Balena e Pasteur, incluindo a alameda Ezequiel Dias. Seria proibida também a alienação dos lotes ainda existentes no campus Santo Agostinho.
            Já a área original do campus da Pampulha, que devia chegar à lagoa, foi também criminosamente amputada. A avenida chamada ironicamente Antônio Carlos não poderia seccionar a área. O mesmo se deve dizer da avenida Catalão.  E várias instituições, inclusive militares, em adição a ocupantes privados, vieram diminuindo suas dimensões. O arbítrio mais escandaloso foi a edificação do Mineirão. Jorge Carone e Magalhães Pinto disputaram dar nome ao estádio e deviam, ao contrário, envergonhar-se do terrível mal-feito. Mesmo propriedades fora da Capital, como o campus regional de Montes Claros e a fazenda experimental de Igarapé vêm sendo ameaçados de fechamento ou alienação.
            Em 1978, entretanto, a UFMG criou o internato rural obrigatório na graduação, inicialmente no curso médico, mas estendendo-se por vários cursos. Era a presença da instituição por toda a Minas, propositalmente nos lugares mais carentes. Chegou a ocupar uma área equivalente à soma de Pernambuco e Sergipe. Esta experiencia inovadora foi imitada por outras instituições superiores e quase foi adotada no Canadá. Infelizmente, a partir de 1985, foi distorcida, sendo mantida nominalmente, em virtude do prestígio que a acompanha.

A UFMG PARALELA
            Outra proposta que não se concretizou foi a criação de um setor da universidade encarregado de trazer para dentro de seus muros todas aquelas figuras que absurdamente não pertenciam a universidade alguma. Ou seja, o conjunto dessas figuras constituem um corpo docente extramural, de igual ou maior qualificação que o corpo docente intramural. Essa ideia decorreu do conceito de aprendizagem paralela ou clandestina, muito bem ilustrada pela docência extramural exercida pelo notável cirurgião Wilson Abrantes e pelo título de doutor honoris causa ao bispo Tutu. Um dos entusiastas dela foi o professor João Batista Peret, que, por sinal, fora uma espécie de representante informal da UFMG em Paris, na agitação estudantil de maio de 1968. Quando faleceu precocemente, ele estava com a lista inicial dos componentes da UFMG PARALELA, que incluía gente de Minas, do Brasil e do mundo. Outro entusiasta desta proposta foi o notável professor José Nilo Tavares.
O FINANCIAMENTO DA UFMG
Se o governador temeu que a reitoria ficasse acima do palácio, todos os poderosos da história julgaram prudente negar salários justos aos professores. Quando se iniciou o ensino superior no Império, o catedrático tinha por lei o salário equiparado ao de um desembargador, paridade logo esquecida. Fundar uma universidade é fácil, difícil é custeá-la. Enquanto não se resolve esta dificuldade é melhor debater se ela é estadual, federal ou privada – foi o que aconteceu com a jovem UFMG. Se o arcebispo Cabral vetou a Rockefeller ele poderia ter indicado a Caritas Alemã ou a Opus-Dei para financiadora substituta. Por sinal a alemã Mannesmann (acusada de crimes nazistas) é que veio em 1952 para Belo Horizonte e, a troco de porções de ajuda financeira, passou a fazer ingerências na Escola de Engenharia. Outro exemplo é a indústria suíça Roche que financiou completo laboratório de animais experimentais, para ensaios de seus produtos, no prédio da Fafich da rua Carangola. Desde seu início, os departamentos de pediatria das universidades, inclusive da UFMG, foram promíscuos com a Nestlé, outra indústria suíça.  Em 1954, a própria Rockefeller financiou a construção dos laboratórios do futuro Instituto de Ciências Biológicas e também o primeiro bloco do Hospital das Clínicas – tudo isso era gerenciado com mão de ferro por Robert Briggs Watson, cujo mandonismo se estendia a São Paulo e a Ribeirão Preto. Ele determinou que as instalações financiadas se destinassem a apenas 60 alunos admitidos por ano e exigiu que as vagas no vestibular fossem reduzidas, no máximo, a este número. A congregação da medicina aceitou passivamente tudo isso, do contrário o financiamento seria desfeito, como ocorreu no Rio. O autor da presente resenha foi vestibulando ao primeiro vestibular rockefelleriano. Mais tarde, sua tese de doutorado, RELAÇÃO ENTRE REALIDADE DE SAÚDE E ENSINO MÉDICO (1981) veio a ser o primeiro estudo do impacto do consumismo no ensino superior e do uso do ensino como marketing consumista.
            Sobre os organismos que atuaram significativamente na UFMG devem ser salientados a fundação Rockefeller (que depois passou seu papel para a fundação Kellogg), a fundação Ford, que, depois de formular uma doutrina preventivista em saúde, se dedicou a criar os departamentos de Ciência Política em vários países, o Banco Mundial, que criou, via Fundação Getúlio Vargas, equipes de doutrinadores em favor da privatização das universidades públicas, e a faculdade Johns Hopkins, que, via BENFAM (Sociedade Bem Estar Familiar), financiou ações de controle populacional (auxiliados pela Rockefeller, encarregada de formar demógrafos nas faculdades de Ciências Econômicas). Entre estas ações, ocorreu o escândalo Dalkon Shield, sendo que as vítimas brasileiras não foram indenizadas.
Estas e outras informações foram levados em conta na citada proposta do frustrado governo federal de Tancredo, que propunha a remuneração em dedicação exclusiva de todos os docentes, no valor de 150% da remuneração em tempo parcial, estando esta previamente elevada. Ainda mais:  o regime de tempo parcial passaria a ser a exceção, no sistema educacional público. A má remuneração do tempo parcial antes induzira a busca pela complementação privada, agravando a degradação do ensino. Isso chegou a ponto de que, quando circulou a notícia da remuneração condigna, verificou-se pânico no sistema privado, que parasitava a má remuneração pública. Vale lembrar que a UFMG foi pioneira no Brasil no tempo integral.
A universidade pública é suspeitamente incapaz de demandar a si própria, ou seja, não consegue usufruir de sua potencialidade.  Ao mesmo tempo, é predada por interesses externos. Exemplo: a equipe do Centro de Memória da Medicina comunicou à reitora que já estava em contato com a faculdade de Arquitetura para que esta estudasse uma adequação do espaço do Centro. A reitora respondeu que tinha uma verba sobrando e pagaria a um seu amigo, que era arquiteto de renome, para se encarregar daquilo. Quando houve a expansão da pós-graduação, o pró-reitor disse que tinha de cuidar da saúde dos pós-graduandos e para isso adiantara entendimentos com um plano de saúde privado. Estava alegre, porque conseguira a promessa de preço camarada. O diretor do hospital das clinicas então perguntou por que este não poderia ficar com a tarefa. Ouviu que o ministério já disponibilizara verba especificada para pagar planos privados.
 A Comissão do Vestibular da UFMG, em seu início, ilustra como foram sendo esboçados os embriões de CAIXA-2 das universidades públicas. As finanças da comissão passaram a ser ignoradas pela administração universitária, enquanto seus membros passaram a ser permanentes, ou seja, um desenvolto nicho de poder intramural.   Não demorou muito e em 1974 foi criada a FUNDAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA (FUNDEP) e a justificativa para a novidade era proporcionar agilidade e competitividade na captação de recursos junto às agências de fomento, nomeadamente administrar convênios, repasses de verbas de qualquer origem, acordos, contratos e auxílios, provindos de parceiros externos. No mesmo ano foi criada a Fundação Christiano Ottoni para a engenharia. Já a Fundação Mendes Pimentel passou de associação criada em 1929 para fundação em 1973, enquanto a Fundação IPEAD (Instituto de Pesquisas Econômicas, Administrativas e Contábeis) passou de instituto criado em 1948 a fundação em 2003.   Logo se proliferaram tais fundações “de apoio”, consideradas um “jeitinho” cômodo para os reitores, hoje reunidas na CONFIES (Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica  e Tecnológica). E outros modelos de caixa-2, como cooperativa de consumo, cooperativa editora e até cooperativa de crédito surgiram. No Rio a comissão do vestibular se agigantou no CESGRANRIO (Centro de Seleção de Candidatos ao Ensino Superior do Grande Rio, 1971) e em São Paulo na FUVEST (Fundação Universitária para o Vestibular, 1976). Tudo isso faz parte do fenômeno maior de despudorada mercantilização da educação e da saúde, ambas ora degradadas ao infinito.


TRADIÇÃO ESTUDANTIL DA UFMG
       O índio brasileiro não castiga seu filho, tende a educá-lo pelo ridículo, ou seja, o filho teme mais a chacota que a palmada. Quando os lusos chegaram com a palmatória, ainda mais com a repressão medieval ao risinho e à gargalhada, restou aos descendentes dos índios o riso extracurricular, tradição especialmente em Ouro Preto e na UFMG. Infelizmente a memória desse riso não tem sido cuidada, inclusive a biografia de excelentes professores, alunos e funcionários humoristas. A tradição estudantil mineira sempre ligou o riso à irreverência. Há um nexo entre Francisco Melo Franco, os ativistas estudantis da Inconfidência, as repúblicas de Ouro Preto e Belo Horizonte, o apelidário de colegas e docentes e o teatro satírico.
O ativismo político estudantil iluminista se prolongou ao longo dos séculos. Na 1ª guerra mundial, os estudantes invadiram o colégio Arnaldo por suspeita de que os padres alemães estavam a serviço da Alemanha. Em 1920 aparece o 1º dos 6 números do tabloide estudantil RADIUM Em 1932, os estudantes se entrincheiraram na atual avenida Alfredo Balena, no supracitado apoio aos constitucionalistas. Em 1946, os formando de medicina homenagearam o candidato presidencial  Eduardo Gomes, em comemoração à queda do Estado Novo. No dia 3-5-1968 os estudantes desafiaram o golpe de 1964 e invadiram a faculdade de medicina. Este foi raro episódio em que o Brasil não imitou o 1º mundo, pois se deu no mesmo dia da invasão da Sorbonne por estudantes franceses. Para que a repressão iminente não massacrasse os estudantes, posicionaram-se entre estes três notáveis docentes: Amílcar Viana Martins, Carlos Ribeiro Diniz e José de Noronha Peres, enquanto os dirigentes se omitiam e o diretor da faculdade ordenava a desocupação pela violência. Este episódio coloca a UFMG em posição de honra, entre os acontecimentos mundiais que caracterizaram a agitação estudantil, em 1968: movimento, nos EUA e no resto do mundo, contra a guerra do Vietnã, a primavera de Praga em 5-1-1968, a luta pelos direitos civis dos negros , que culminou com a morte de Luther  King em 4-4-1968, o massacre de Tlatelolco no México, em 2-10-1968, o congresso clandestino da UNE em Ibiuna, em 13-10-1968, e outros.  Quase uma década após, a UFMG foi escolhida pela UNE para seu congresso e, em 4-7-1977, o campus da saúde foi cercado com a prisão de todos os estudantes. Nesta ditadura, de 64 a 84, muitos estudantes e docentes foram perseguidos, torturados e mortos, valendo lembrar, em nome de todos, o de Dôra (Maria Auxiliadora Lara Barcelos), levada ao suicídio no exílio.
Nas lutas mais importantes dos estudantes eles foram apoiados pela parte mais significativa dos docentes e dos funcionários. Nada melhor para ilustrar essa aliança do que a eleição, por voto paritário de docentes, estudantes e funcionários, do reitor Cid Veloso em 1985. Essa eleição paritária, única na universidade brasileira, teve sua paridade logo desfeita por poderosos interesses conservadores, sob a alegação de que era excessivamente democrática.

Texto comemorativo dos 90 anos da UFMG, em 2017. O autor é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais

















sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

CANONIZAÇÃO DOS LUTEROS
João Amílcar Salgado
Em 1992 o papa João Paulo 2º  pediu perdão, em nome da Igreja, pela condenação ao cientista Galileu. Na comissão que assessorou o papa atuaram dois homens de ciência ligados a Minas Gerais: Carlos Chagas Filho e Francisco Magalhães Gomes Filho. Este falou em nosso Centro de Memória da Medicina sobre o fato. Uma das perguntas que fiz a Magalhães foi se, em seguida, Galileu não seria canonizado. Ele considerou pouquíssimo provável.  Em reunião subsequente no mesmo Centro, foi feita a sugestão de um movimento pela canonização de Martinho Lutero, de Martin Luther King Jr e de Gandhi. A ideia não prosperou porque não houve consenso sobre o uso do termo canonização e foram apontados  nomes adicionais, todos bem aceitos, mas o número maior enfraqueceria o impacto da proposta. Quando foi eleito o Papa Francisco, em 2013, alguns lembraram que ele seria capaz de aceitar a proposta. Em 2017, os quinhentos anos da reforma protestante, trouxe às manchetes a figura do monge Lutero, enquanto o protagonismo de Trump, empossado presidente ianque também em 2017, nos fez relembrar o pastor Martin Luther King Jr. A propósito disso, assinalamos aqui frases atualíssimas do Lutero negro.
FRASES DE MARTIN LUTHER KING JR
- Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, rasteje.  Mas continue em frente, de qualquer jeito!
- Se um homem não descobriu nada pelo qual morreria, não está pronto para viver.
- Temos de aprender a viver todos como irmãos ou morreremos todos como loucos.
- Eu decidi ficar com o amor. O ódio é um fardo muito grande para suportar.
- Nunca se esqueça que tudo o que Hitler fez na Alemanha era legal.
- O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.
- Para criar inimigos não é necessário declarar guerra, basta dizer o que pensa.
- O amor é a única força capaz de transformar um inimigo em amigo.
- Aprendemos a voar como pássaros e a nadar como peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos.
- Mesmo se eu soubesse que amanhã o mundo se partiria em pedaços, eu ainda plantaria a minha macieira.
- Uma das coisas importantes da não-violência é que ela não busca destruir a pessoa, mas transformá-la.
- A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todos os lugares.
- Não há nada mais trágico neste mundo do que saber o que é certo e não fazê-lo.  Que tal mudarmos o mundo começando por nós mesmos?
- Eu tenho um sonho. O sonho de ver meus filhos julgados por sua personalidade, não pela cor de sua pele.



segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

O LIVRO O ÍNDIO BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO FRANCESA DE AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
80 ANOS DE SUA PUBLICAÇÃO

João Amílcar Salgado

INTRODUÇÃO

Em 1937 Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990) publicou O ÍNDIO BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO FRANCESA. Este livro talvez seja o golpe mais vigoroso jamais infligido ao  colonialismo cultural, no qual se comprometeu e ainda se compraz a maioria dos intelectuais brasileiros.  E é obra tanto mais notável quanto se sabe que o autor aparentemente nascera para se somar à galeria pedante de nossos aristocratas letrados, portador de todos os requisitos de um caudatário a mais do pensamento eurocêntrico. Felizmente, o contrário se deu. E afinal com nenhuma surpresa diante da nobilitante coerência exibida por gerações de sua  família. Ainda no século 18, o médico Francisco de Melo Franco afrontou a Universidade de Coimbra, apelidando-a de REINO DA ESTUPIDEZ, com o requinte de ser um libelo em versos clássicos.  Mais tarde, o primeiro Afonso Arinos, com o livro PELO SERTÃO, de 1898, foi eminente pioneiro no temário de nossa identidade nacional, prenunciando OS SERTÕES de Euclides da Cunha (1902) e o GRANDE SERTÃO: VEREDAS de Guimarães Rosa (1956).  E o próprio Afonso Arinos de Melo Franco, sobrinho do primeiro, já cuidara, antes de 1937, de temas semelhantes: INTRODUÇÃO À REALIDADE BRASILEIRA (1933), PREPARAÇÃO AO NACIONALISMO (1934) e CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA (1936). Mais tarde, tal coerência se estenderia à sua POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE, que começou a implantar como Ministro das Relações Exteriores, nos fugazes meses do governo Jânio Quadros e do regime parlamentarista. Demais, foi o primeiro investido nesse cargo a visitar o continente africano e ali foi saudado como o autor da primeira lei anti-racista de nosso país.

O LIVRO

            Em  O ÍNDIO BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO FRANCESA, Afonso Arinos procura documentar que o iluminismo francês se inspirou na cordialidade, na afabilidade e na docilidade do índio encontrado pelos europeus no Brasil, donde surgiu a concepção teórica da bondade natural.  O autor, inclusive, sentiu a necessidade de acrescentar um subtítulo ao livro: AS ORIGENS BRASILEIRAS DA TEORIA DA BONDADE NATURAL.  Esta teoria é uma das formulações iluministas que se contrapunham, de modo escandaloso, ao pensamento estabelecido até então.  Contrariava gritantemente a tendência de qualquer cultura para se considerar superior às demais. Os termos selvagem, selvageria, bárbaro e barbárie, bem como incivis, incivilizados, não-educados, brutos, estúpidos, ferozes, animalescos e bestiais, são adjetivos e substantivos preferidos para denotar de modo pejorativo os estrangeiros e seus costumes, principalmente quando se quer  demarcar a superioridade de quem os denigre. Para maior contraste, aqueles que empregam tais termos se autodenominam, em geral, civilizados ou educados. De fato, a bondade inesperada de nossos índios está registrada no próprio texto inaugural de Pero Vaz de Caminha: esta gente é boa e de bela simplicidade. ... Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons.  Segundo Arinos, há uma relação direta entre a idéia da bondade natural vinda do Brasil e a DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO proclamada pela Revolução Francesa e aprovada em 17 artigos pela Assembléia Nacional da França, em 1789, que tem por artigo 1o : Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais não podem ser fundadas senão sobre a utilidade comum.

CONTEXTO DA OBRA

            A notícia do livro deve ter impressionado os franceses, pois Afonso Arinos o publicou em português, em 1937, e, em 1939, já ministrava curso na Sorbonne sobre CULTURA BRASILEIRA. Justo nessa época, o mesmo Arinos era membro da célebre elite convocada pelo médico Pedro Ernesto para criar a UNIVERSIDADE DO DISTRITO FEDERAL, da qual fazia parte, entre outros, três outros mineiros influentes: Abgar Renault e os também médicos Silva Melo e Baeta Viana, este guindado a reitor. O grupo de fato era de notáveis, como Anísio Teixeira, Gilberto Freire, Mário de Andrade e Cecília Meireles. Tanta gente pensante e altiva, reunida sob o mesmo teto, deve ter atemorizado Getúlio Vargas, que, logo após o golpe de estado, fechou a Universidade em 1938, quando ela engatinhava e nem tinha três anos de vida. 
Antes, Afonso Arinos, como recém-formado em direito, viera ser promotor em Belo Horizonte e aqui entrou para a turma de Pedro Nava, Carlos Drummond, Emílio Moura, Abgar Renault, Gustavo Capanema e Milton Campos interessados em literatura e voltados para o modernismo de Mário de Andrade.  Outros intelectuais, ligados a esse grupo, porém mais  voltados para a política e engajados na trama da Revolução de 1930, eram Virgílio de Melo Franco (irmão de Afonso), os Pinheiro Chagas (dois dos quais médicos) e Francisco Campos. Podemos dizer que, assim como, entre os modernistas paulistas, surgiram o grupo nacionalista Pau Brasil e o subgrupo direitista do integralismo, no grupo de Belo Horizonte, surgiram o grupo de artistas (Drummond, Abgar, Emílio, Nava e outros), o grupo de políticos (Virgílio, Arinos, Capanema,  Campos e os Pinheiro Chagas).  Aqui houve semelhante subdivisão entre um nacionalista liberal (Afonso Arinos) e um direitista (Francisco Campos).  Por outro lado, na turma da referida Universidade, Arinos deve ser colocado ao lado de Gilberto Freire, sendo o mineiro a vertente política e o pernambucano a vertente sociológica da busca da identidade nacional.
É importante considerar a marginalização política do irmão Virgílio de Melo Franco, empreendida por Vargas, e seu efeito sobre a carreira de Afonso Arinos. Aqui é inevitável especular que se Virgílio tivesse ocupado o lugar de Valadares na direção de Minas, não teria havido o golpe de 1937 e a Universidade do Distrito Federal existiria até hoje, sendo outros o papel político de Afonso e sua contribuição ao desenvolvimento acelerado do Brasil, até mesmo na condição de nação-líder, como tentou fazer tardia e frustradamente depois.

ATUALIDADE DA TESE

          Fatos históricos conhecidos após 1937 não só reforçam a tese de Arinos, mas sugerem ter havido uma espécie de “má vontade européia” para esmiuçar o tema. O desinteresse estaria ligado também a protagonistas judeus da Península Ibérica, refugiados em locais hoje situados na França e nos Países Baixos.  Essa postura discriminatória pode ter sido adotada não só por historiadores em geral, mas, paradoxalmente, por historiadores judeus, neste último caso por causa da conhecida tendência entre cristãos-novos ibéricos e seus familiares em colocar sua sobrevivência acima da preservação da identidade judaica.   Com tal perspectiva, passamos a enumerar alguns subsídios não explícitos no texto de Arinos e que são notável confirmação de sua tese. Para corroborá-los, convém lembrar que especulações heurísticas indicam que o iluminismo seria a sequência imediata do renascentismo, mas a interceptação da contra-revolução barroca retardou por pelo menos um século esse decurso mais que lógico e natural.  Nessa perspectiva, cresce a importância de Montaigne e Descartes como iluministas antecipados.

O MEIO-LUSO MIGUEL DE MONTAIGNE

É inestimável o tributo que o iluminismo deve a Miguel Eyquem de Montaigne, nascido na região de Bordeus, França.  Afirmamos mesmo que o pessimismo de Montaigne, em relação ao progresso social é indissociável da idéia da bondade natural. Se é o caso, então qual seria a relação entre Montaigne e a notícia sobre os índios brasileiros?  Ora, a mãe de Montaigne era portuguesa, Antonieta Lopes, e seu secretário havia estado com Villegaignon no Rio de Janeiro. Bastam esses dois fatos para que seja feito estudo minucioso da correlação entre a ascendência lusitana do ensaísta, de um lado, e, de outro, a França Antártica, Jean de Léry (divulgador da bondade natural) e o conteúdo dos ENSAIOS.

FRANCISCO SANCHEZ E RENÉ DESCARTES

             O racionalismo peculiar ao iluminismo está diretamente relacionado a Descartes. Entretanto, é pouco conhecida a curiosa ligação entre o francês Descartes e o médico português Francisco Sanchez. Para os que sabem do pensamento de Sanchez há uma proximidade entre o CÓGITO de Descartes e o CÓGITO de Sanchez.  Como este precedeu aquele, há a suspeita de plágio ou no mínimo de espantosa coincidência.

O MISTERIOSO DOCTEUR SILVA

Sabe-se que o iluminista Voltaire, assim como Montaigne,  era avesso aos médicos. Havia, entretanto, um médico, Jean Baptiste Silva (1682-1744), no qual confiava e este era de origem portuguesa. Descendia de portugueses judiados em Portugal que se refugiaram em colônia próxima a Bordeus. Era perseguido pelos demais médicos, que o acusavam de judeu, e isso o fazia mais ainda assediado pelos clientes. O rei Luís 15, ao ser coagido a agir contra Silva, lembrou que, se o adversário dos médicos o tinha como competente, ele, o rei, o queria para si. E o fez médico da corte.

O PEDAGOGO JEAN JACQUES ROUSSEAU

Rousseau, suiço de origem judáica, foi o mais radical dos iluministas e aquele que fez a ligação mais direta entre a bondade natural e as propostas revolucionárias. E a mais revolucionária destas idéias é a proposta pedagógica contida em seu livro EMÍLIO. Nela ele defende que a criança seja criada como selvagem até os doze anos e só depois submetida à escola, estando esta coerente com a primeira etapa. Com isso todas as potencialidades psíquicas seriam preservadas contra qualquer inibição, de tal maneira que todos os homens assim educados seriam altamente inventivos, livres e insubmissos. Estariam, então, em condições de serem protagonistas de um progresso sem igual em uma  sociedade nova.

FRANÇOIS MAGENDIE – O  “EMÍLIO”  REAL

O pai de François Magendie era médico e também habitava próximo a Bordéus. Quando leu o EMÍLIO, decidiu que seu filho seria educado como um Emílio. De fato o próprio Magendie se imbuiu de tal maneira de seu modelo teórico que exerceu formidável papel na revolução científica causada pelo iluminismo. Deu início a uma linhagem de cientistas que mudariam a face não só da ciência mas da sociedade, a começar por seu igualmente revolucionário discípulo Claude Bernard.

CLAUDE BERNARD  - A CIÊNCIA MODERNA LEVADA À SOCIEDADE

              Claude Bernard está para Magendie assim como Napoleão está para Robespierre, ou seja,  se Magendie foi o Robespierre da ciência, Bernard foi seu Napoleão. Bernard não inventou a ciência nem sequer criou a ciência fisiológica ou a farmacologia. Seu papel foi estatuir em ideologia o método científico já utilizado desde Herófilo, Galileu, Vesálio, Harvey e Morgagni. Quando Emile Zola adota e propõe essa ideologia também para as artes (romance, música e pintura), toda uma revolução inventiva, semelhante à idéia de Rousseau, se põe a caminho e chega até o século 21.  Interessa acrescentar que, na obra científica de Bernard, há um dado a mais que diz respeito ao Brasil, pois algumas de suas pesquisas cruciais foram feitas com um produto indígena da Amazônia: o curare.

HELENA ANTIPOFF  E O RETORNO DE ROUSSEAU

            A vinda da russa Helena Antipoff para Minas Gerais, em 1929, estado natal de Afonso Arinos, representa um retorno apropriado do Emílio de Rousseau ao local de origem da bondade natural. Estando ela no Instituto Jean Jacques Rousseau, em Genebra, foi convidada para vir ao Brasil, onde foi a principal figura da revolução educacional operada em Minas Gerais. Ora, sendo Minas Gerais a terra de Afonso Arinos de Melo Franco, nada mais apropriado que esta notável educadora nos viesse retribuir com o fruto daquilo que seu ancestral pedagógico daqui extraiu: a idéia da bondade natural de nosso indígena.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRITO, A. M. R..Francisco Sanches, médico, professor e pedagogo. Braga : Bracara; 1952.
CAMINHA, P.V.. A carta de Pero Vaz de Caminha. São Paulo: Moderna; 1999.
DESCARTES, R.. Discurso sobre o método. Tradução. São Paulo: Atena, 1954.
FRANCO, A.A.M.. O índio brasileiro e a revolução francesa. Rio: José Olympio; 1937.
LERY, J.. História de uma viagem à terra do Brasil. Tradução. São Paulo: Nacional, 1926.
MONTAIGNE, M. E. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural; 1980.
OLMSTED, J.M. D.. Claude Bernard and the experimental method in medicine. Toronto: Schuman; 1952.
OLMSTED, J.M.D.. Francois Magendie: pioneer in experimental physiology and scientific medicine in
                nineteenth century France. Montana: Kessinger; 2007.
PECKER, A.. La médecine à Paris du XIIIe au XXe siècle. Paris: Hervas, 1984.
ROUSSEAU, J.J.. Emílio ou da educação. Tradução. São Paulo: Martins Fontes; 2005.



JOÃO AMÍLCAR SALGADO é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

MEDICINA DA NOITE: DA CRONOBIOLOGIA À PRÁTICA CLÍNICA
Por José Manoel Jansen,Agnaldo José Lopes,Ursula Jansen,Domenico Capone,Teresinha Yoshiko Maeda,Arnaldo Noronha,Gerson Magalhães
EDITORA FIOCRUZ
ESTE LIVRO ENCONTRA-SE GRATIS NO GOOGLE - books.scielo.org/id/3qp89/pdf/jansen-9788575413364.pdf

O CAPÍTULO DE MEDICINA DA NOITE DO PONTO DE VISTA GASTROENTEROLOGICO É DE AUTORIA DE CARLOS AMÍLCAR SALGADO, JOÃO AMÍLCAR SALGADO E LUIZ DE PAULA CASTRO

ANTÔNIO LEITE
Raríssimo exemplo de idealismo, coerência e implacável engajamento
João Amílcar Salgado

            Meu ex-aluno Antônio Leite acaba de falecer vítima da violência hoje crescente, resultado do descalabro geral no país. O caos da saúde faz parte nuclear disso e contra ele o Antônio Leite estava engajado com todas as forças de seu invejável idealismo, de que sou testemunha desde quando ele se matriculou na Faculdade. Ele teve a sorte de alcançar o auge da inovação curricular na medicina, que durou de 1975 a 1985. Sua personalidade e seu ideal social estavam pré-condicionados ao pleno aproveitamento em tão auspiciosa oportunidade.  E foi com alegria que flagramos a convergência entre sua aptidão e a proposta inovadora. 
            A partir de 1985, começaram os retrocessos.  Houve as mortes de Tancredo Neves, de Juan Cesar Garcia e de Domingos Gandra, houve o torpedeamento do reitorado de Cid Veloso, houve a suspensão da eleição direta paritária e, então, os carreiristas e/ou oportunistas puderam sair das sombras.  Percebemos que o Antônio Leite se entrincheirou na proposta do Internato Rural. Ele sabia dos desvios gerais e específicos, paulatinamente nele introduzidos, mas, até ser assassinado, achava que a parte restante ainda valia a pena.
            O controle da universidade passou a pessoas com viseiras flagrantemente retrógradas, cristalizadas na rotina colegialesca das áreas de educação e letras. Eram personagens sobretudo alheias à mudança na medicina. O caráter revolucionário de nossa inovação lhes parecia mistério insondável. Sucessivas reversões foram, então, arrogantemente impostas. Por exemplo, o endurecimento em itens ridículos, a abolição da disciplina de prática hospitalar, a supressão do ensino anti-consumo, o abandono das disciplinas optativas, bem como a renúncia a centros de memória e internatos rurais nas outras unidades.  A maior vítima seria o próprio Internato Rural. O Antônio Leite indagou junto a mim e a outros companheiros por eventuais opções diante de tal ameaça. Foi informado de que um pediatra de nosso grupo inicial, transbordante de ingenuidade, estava quase convencendo a reitora de que o Internato Rural era excelente marketing para a universidade. Restou a única alternativa, que seria eleger para reitor alguém do nosso lado. E isso não foi viável.
            Se o Internato Rural sobreviveu por décadas, o fato deve ser creditado a Antônio Leite e demais equipe remanescente. As notórias distorções, em comparação com a proposta inicial, são como cicatrizes da luta sem trégua, desde 1977. Ajudou nisso o Projeto Manuelzão que, com seu apelo ecológico, deu forças principalmente a este professor na defesa do direito à saúde.
 O Projeto Manuelzão foi inspirado pelo curso de plantas medicinais ministrado no Centro de Memória pelo agrônomo Camilo de Assis Fonseca, então o decano dos ecologistas mineiros. Constou de aulas, ao vivo, do notável professor, em vários ecossistemas. Luiz Eduardo Miranda Gonzaga, que era o supervisor do Internato Rural em Cordisburgo, trouxe o próprio Manuelzão, seu cliente, de Andrequicé para esta cidade, com o fim de nos instruir sobre as plantas medicinais do “Grande Sertão”. O professor Apolo Heringer Lisboa, membro do colegiado do Centro e aluno do curso, ao ouvir a exposição dos mestres Camilo e Manuelzão, teve a feliz ideia de criar o projeto.
Escrevi o capítulo HISTÓRIAS SUBMERSAS NO RIO QUE NÃO QUER MORRER, como abertura do livro NAVEGANDO O RIO DAS VELHAS DAS MINAS AOS GERAIS (2007), coroamento da viagem de caiaque evocativa de Burton e, ao mesmo tempo, requintado desfecho do projeto Manuelzão. Quando atualizar esse texto, deverei incluir a morte do Antonio Leite, defensor de todos os rios, ocorrida nos 40 anos do Internato Rural, como que submerso no rio de violência que nos quer levar a todos.

O autor é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais, criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais e um dos criadores do internato rural.

OBSERVAÇÃO: Quando faleceu o notável prof. Valênio Perez França, o diretor Francisco Pena proibiu que o velório fosse feito na Faculdade. Indignados, seus colegas de turma e amigos apelaram ao Centro de Memória, que desafiou o diretor e honradamente acolheu o corpo de seu membro. Já o velório de Antônio Leite foi feito na Faculdade, porque a diretoria desta não teve como impedi-lo e assim desobedeceu a proibição estatuída por aquele infeliz dirigente.
           

            
ZULMIRA VILELA TEIXEIRA
SACERDOTISA NA ARTE, NO HUMOR E NA ESPIRITUALIDADE

João Amílcar Salgado
            Minha primeira lembrança da Zulmira foi quando minha prima apareceu vestida de caipira no palco do teatrinho do Socônego. Era uma linda caipirinha que além de fazer a plateia gargalhar, no final, deixou todos enlevados, quando, com sua doce voz, cantou ROSA DE MAIO e LA LONGE NO SUL.
            Com a inauguração do ginásio, ela veio morar em nossa casa. Ela encheu de alegria nosso dia-a-dia, apesar de ter febre-tifo, que logo superou com a medicação de meu pai. Perguntei que mais se lembrava de nossa casa e ela disse que de nossa comida: tudo era gostoso e farto, cada vez uma coisa diferente e principalmente havia muita fruta e doces deliciosos de sobremesa. Enquanto na sua casa a tia Licínia obrigava as crianças a arrumar a casa, na nossa havia duas empregadas para arrumar tudo, enquanto a dona ficava lendo romances.
            A Zulmira começou a incendiar os corações da rapaziada. O mais apaixonado por ela foi o Nassif.  Ele era balconista na loja do cunhado Zé Sebastião e em vez de atender os fregueses ficava na porta esperando que a Zulmira chegasse ao alpendre. Ele me cercou e perguntou: você pode dar um recado pra sua prima? Eu disse que daria. E ele: diga que eu mandei dizer que ela é um anjo. Dei o recado e ela respondeu: diga a ele um muito obrigado, mas minha paixão é o Sinhô (o galã da Vila, filho do Afonso Felicori). O Nassif ficou deprimido e ainda foi demitido por desatenção ao serviço. Todavia se transformou num bancário de primeira linha.
            A Zulmira, filha do casal José Teixeira da Silva e Licínia Alves Vilela, se casou com o Rui, filho do casal formado pelo agente postal Soliveira (Antônio Peixoto) e de Alaíde Oliveira, exímia na confecção de pasteis inefáveis. Ela e o Rui tiveram os filhos Terezinha, Cleuza, Marize, Nelson, Evaldo e José Antônio, todos com notável inclinação pela música. Atribuo esse talento ao DNA da família Peixoto, toda musical, cujo maior astro é o inigualável Cauby. Inesquecível para mim ficou a voz celestial da Marize, que quando cantava parecia seguir um repertório evocado por mim. Já o talento do Rui era de radialista. Se tivesse seguido para um grande centro, teria sido nome nacional como animador de auditório. Isso o fez boêmio, obrigando a Zulmira a se fazer guerreira, na luta pelo bom encaminhamento dos filhos. Numa segunda união, a Zulmira teve a sorte de encontrar o Francisco Batista, raro exemplar de bondade e de romantismo.
            Quando desenvolveu seus dotes mediúnicos, a Zulmira surpreendeu-se a si mesma. Viu-se com extraordinária capacidade de conciliar diversas correntes espiritualístas, sem se submeter a qualquer delas, exceto a seu pendor espontâneo. E logo descobriu um meio de colocá-lo a serviço de muitos.  Desenvolveu uma prática específica para tratamento dos mais variados problemas mentais. Sua capacidade passou a ser testada até nos casos mais graves de distúrbios psicológicos e psiquiátricos. Acabou fazendo demonstrações terapêuticas até na Suíça.
            No programa de intercâmbio com estudantes estrangeiros da UFMG, vieram três estudantes de medicina francesas que trouxeram notícia do Chico Xavier e quiseram vê-lo. Em vez de levá-las a ele em Uberaba, levei-as à Zulmira, que as conquistou de pronto com uma bandeja de pão de queijo. Meia hora depois, elas estavam lá na cozinha recebendo uma aula prática de como manipular a iguaria mineira. A seguir, na Clínica Boa Esperança, do psiquiatra Armando Leite Naves, a família de um jovem em grave agitação autorizou que o atendimento da Zulmira fosse presenciado pelas francesas e por mim. A rapidez com que a agitação foi transformada em mansuetude nos deixou boquiabertos. O mais impressionante foi que, para isso, a Zulmira recebeu o espírito da mãe do paciente, estando esta bem viva lá na sua residência.
            Participei de outro episódio igualmente admirável. A Zulmira pediu que levasse meus meninos para saborearem o pão de queijo que já estava no forno. Quando chegamos, ela atendia alguém numa emergência. Seu trabalho era receber urgentemente o espírito do Joaquim.  Este veio, mas não foi reconhecido pela consulente. Era porque a Zulmira supôs tratar-se do Joaquim do tio Lela, na época auxiliar na farmácia do Spencer. Corrigido o engano, o caso foi resolvido, mas não para mim. Deixei os meninos ali e fui rápido para a farmácia. Lá estava o Joaquim atendendo alguém. Perguntei ao Spencer que sucedera ao Joaquim meia hora atrás. Ele respondeu com outra pergunta: “como você soube?, achei estranho, ele estava fazendo algo, sentiu-se meio zonzo e sentou-se ali”. Estava confirmado então que o espírito do Joaquim o deixara, para breve visita até a casa da Zulmira.
            Diante disso, dei à Zulmira uma tarefa de historiadora. Pedi que recebesse o espírito do Padre Vítor e lhe perguntasse se o Milton Nascimento era a reencarnação dele. Isso seria incluído em meu livro O RISO DOURADO DA VILA. A resposta veio positiva, mas um tanto evasiva. Anos depois estávamos na fazenda da Jaguara e meu grande amigo e colega Ajax fotografou a igreja local. Na foto apareceu inexplicavelmente um senhor vestido de bandeirante sentado na soleira. Pensei: só pode ser o espírito do Borba Gato. Pedi à Zulmira que recebesse a alma deste, para que ele próprio confirmasse minha hipótese.  Ela se recusou, alegando que eu não acreditava naquilo e estava apenas fazendo literatura. Confessei que sim e pedi desculpas. Dois dias depois, ela sonhou com o Borba Gato e este então lhe disse que a foto não era dele, mas do homem que ele matou naquele lugar, chamado Rodrigo Castelo Branco.
            Afinal, não posso deixar de mencionar o caso da própria Zulmira. Ela foi acometida de forma grave da síndrome de Guillain-Barré e fiquei consternado com sua ampla paralisia.  Dentro de poucos meses ela estava andando lépida. Seu neurologista me disse que nunca vira nada igual e eu disse o mesmo. Perguntei à ex-paciente qual era o segredo daquilo. Ela sorriu e falou: sei que você sabe muito bem...
            Na escolha do nome Zulmira para a filha, a tia Licínia estava interessada em beneficiar o lindo bebê com uma madrinha muito rica. O convite foi para a dona Zulmira Augusta de Barros, a tia-avó da criança, que não tivera filhos e, segundo o costume da época, cada afilhado seria herdeiro. A madrinha Zulmira tinha carinho único, verdadeiro xodó, para com a afilhada Zulmirinha.  Quando esta aprendeu a falar, a primeira coisa que pediu à dindinha foi tomar banho no imenso tacho de cobre da fazenda. A tia Zulmira permitiu o banho e acrescentou que a garotinha herdaria o tacho. Quando foi aberto o testamento, o tacho sequer foi mencionado. E mais nada foi deixado para a afilhada predileta. Isso reforçou os rumores de que, ainda no cartório, houve adulteração do testamento. Hoje a afilhada relembra o ocorrido sem qualquer mágoa e ainda o recheia com os floreados mais engraçados.