João Amílcar Salgado

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

ANTÔNIO LEITE
Raríssimo exemplo de idealismo, coerência e implacável engajamento
João Amílcar Salgado

            Meu ex-aluno Antônio Leite acaba de falecer vítima da violência hoje crescente, resultado do descalabro geral no país. O caos da saúde faz parte nuclear disso e contra ele o Antônio Leite estava engajado com todas as forças de seu invejável idealismo, de que sou testemunha desde quando ele se matriculou na Faculdade. Ele teve a sorte de alcançar o auge da inovação curricular na medicina, que durou de 1975 a 1985. Sua personalidade e seu ideal social estavam pré-condicionados ao pleno aproveitamento em tão auspiciosa oportunidade.  E foi com alegria que flagramos a convergência entre sua aptidão e a proposta inovadora. 
            A partir de 1985, começaram os retrocessos.  Houve as mortes de Tancredo Neves, de Juan Cesar Garcia e de Domingos Gandra, houve o torpedeamento do reitorado de Cid Veloso, houve a suspensão da eleição direta paritária e, então, os carreiristas e/ou oportunistas puderam sair das sombras.  Percebemos que o Antônio Leite se entrincheirou na proposta do Internato Rural. Ele sabia dos desvios gerais e específicos, paulatinamente nele introduzidos, mas, até ser assassinado, achava que a parte restante ainda valia a pena.
            O controle da universidade passou a pessoas com viseiras flagrantemente retrógradas, cristalizadas na rotina colegialesca das áreas de educação e letras. Eram personagens sobretudo alheias à mudança na medicina. O caráter revolucionário de nossa inovação lhes parecia mistério insondável. Sucessivas reversões foram, então, arrogantemente impostas. Por exemplo, o endurecimento em itens ridículos, a abolição da disciplina de prática hospitalar, a supressão do ensino anti-consumo, o abandono das disciplinas optativas, bem como a renúncia a centros de memória e internatos rurais nas outras unidades.  A maior vítima seria o próprio Internato Rural. O Antônio Leite indagou junto a mim e a outros companheiros por eventuais opções diante de tal ameaça. Foi informado de que um pediatra de nosso grupo inicial, transbordante de ingenuidade, estava quase convencendo a reitora de que o Internato Rural era excelente marketing para a universidade. Restou a única alternativa, que seria eleger para reitor alguém do nosso lado. E isso não foi viável.
            Se o Internato Rural sobreviveu por décadas, o fato deve ser creditado a Antônio Leite e demais equipe remanescente. As notórias distorções, em comparação com a proposta inicial, são como cicatrizes da luta sem trégua, desde 1977. Ajudou nisso o Projeto Manuelzão que, com seu apelo ecológico, deu forças principalmente a este professor na defesa do direito à saúde.
 O Projeto Manuelzão foi inspirado pelo curso de plantas medicinais ministrado no Centro de Memória pelo agrônomo Camilo de Assis Fonseca, então o decano dos ecologistas mineiros. Constou de aulas, ao vivo, do notável professor, em vários ecossistemas. Luiz Eduardo Miranda Gonzaga, que era o supervisor do Internato Rural em Cordisburgo, trouxe o próprio Manuelzão, seu cliente, de Andrequicé para esta cidade, com o fim de nos instruir sobre as plantas medicinais do “Grande Sertão”. O professor Apolo Heringer Lisboa, membro do colegiado do Centro e aluno do curso, ao ouvir a exposição dos mestres Camilo e Manuelzão, teve a feliz ideia de criar o projeto.
Escrevi o capítulo HISTÓRIAS SUBMERSAS NO RIO QUE NÃO QUER MORRER, como abertura do livro NAVEGANDO O RIO DAS VELHAS DAS MINAS AOS GERAIS (2007), coroamento da viagem de caiaque evocativa de Burton e, ao mesmo tempo, requintado desfecho do projeto Manuelzão. Quando atualizar esse texto, deverei incluir a morte do Antonio Leite, defensor de todos os rios, ocorrida nos 40 anos do Internato Rural, como que submerso no rio de violência que nos quer levar a todos.

O autor é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais, criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais e um dos criadores do internato rural.

OBSERVAÇÃO: Quando faleceu o notável prof. Valênio Perez França, o diretor Francisco Pena proibiu que o velório fosse feito na Faculdade. Indignados, seus colegas de turma e amigos apelaram ao Centro de Memória, que desafiou o diretor e honradamente acolheu o corpo de seu membro. Já o velório de Antônio Leite foi feito na Faculdade, porque a diretoria desta não teve como impedi-lo e assim desobedeceu a proibição estatuída por aquele infeliz dirigente.
           

            

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