ANTÔNIO
LEITE
Raríssimo exemplo
de idealismo, coerência e implacável engajamento
João Amílcar Salgado
Meu ex-aluno Antônio Leite acaba de falecer vítima da
violência hoje crescente, resultado do descalabro geral no país. O caos da
saúde faz parte nuclear disso e contra ele o Antônio Leite estava engajado com
todas as forças de seu invejável idealismo, de que sou testemunha desde quando
ele se matriculou na Faculdade. Ele teve a sorte de alcançar o auge da inovação
curricular na medicina, que durou de 1975 a 1985. Sua personalidade e seu ideal
social estavam pré-condicionados ao pleno aproveitamento em tão auspiciosa
oportunidade. E foi com alegria que flagramos
a convergência entre sua aptidão e a proposta inovadora.
A partir de 1985, começaram os retrocessos. Houve as mortes de Tancredo Neves, de Juan
Cesar Garcia e de Domingos Gandra, houve o torpedeamento do reitorado de Cid
Veloso, houve a suspensão da eleição direta paritária e, então, os carreiristas
e/ou oportunistas puderam sair das sombras.
Percebemos que o Antônio Leite se entrincheirou na proposta do Internato
Rural. Ele sabia dos desvios gerais e específicos, paulatinamente nele introduzidos,
mas, até ser assassinado, achava que a parte restante ainda valia a pena.
O controle da universidade passou a pessoas com viseiras flagrantemente
retrógradas, cristalizadas na rotina colegialesca das áreas de educação e
letras. Eram personagens sobretudo alheias à mudança na medicina. O caráter
revolucionário de nossa inovação lhes parecia mistério insondável. Sucessivas reversões
foram, então, arrogantemente impostas. Por exemplo, o endurecimento em itens
ridículos, a abolição da disciplina de prática hospitalar, a supressão do
ensino anti-consumo, o abandono das disciplinas optativas, bem como a renúncia
a centros de memória e internatos rurais nas outras unidades. A maior vítima seria o próprio Internato Rural.
O Antônio Leite indagou junto a mim e a outros companheiros por eventuais opções
diante de tal ameaça. Foi informado de que um pediatra de nosso grupo inicial,
transbordante de ingenuidade, estava quase convencendo a reitora de que o Internato
Rural era excelente marketing para a
universidade. Restou a única alternativa, que seria eleger para reitor alguém
do nosso lado. E isso não foi viável.
Se o Internato Rural sobreviveu por décadas, o fato deve
ser creditado a Antônio Leite e demais equipe remanescente. As notórias
distorções, em comparação com a proposta inicial, são como cicatrizes da luta
sem trégua, desde 1977. Ajudou nisso o Projeto Manuelzão que, com seu apelo
ecológico, deu forças principalmente a este professor na defesa do direito à
saúde.
O Projeto Manuelzão foi inspirado pelo curso
de plantas medicinais ministrado no Centro de Memória pelo agrônomo Camilo de
Assis Fonseca, então o decano dos ecologistas mineiros. Constou de aulas, ao
vivo, do notável professor, em vários ecossistemas. Luiz Eduardo Miranda
Gonzaga, que era o supervisor do Internato Rural em Cordisburgo, trouxe o
próprio Manuelzão, seu cliente, de Andrequicé para esta cidade, com o fim de nos
instruir sobre as plantas medicinais do “Grande Sertão”. O professor Apolo
Heringer Lisboa, membro do colegiado do Centro e aluno do curso, ao ouvir a
exposição dos mestres Camilo e Manuelzão, teve a feliz ideia de criar o
projeto.
Escrevi
o capítulo HISTÓRIAS SUBMERSAS NO RIO QUE NÃO QUER MORRER, como abertura
do livro NAVEGANDO O RIO DAS VELHAS DAS MINAS AOS GERAIS (2007), coroamento
da viagem de caiaque evocativa de Burton e, ao mesmo tempo, requintado desfecho
do projeto Manuelzão. Quando atualizar esse texto, deverei incluir a morte do
Antonio Leite, defensor de todos os rios, ocorrida nos 40 anos do Internato Rural,
como que submerso no rio de violência que nos quer levar a todos.
O autor é professor titular de Clínica Médica da
Universidade Federal de Minas Gerais, criador do Centro de Memória da Medicina
de Minas Gerais e um dos criadores do internato rural.
OBSERVAÇÃO: Quando faleceu o notável
prof. Valênio Perez França, o diretor Francisco Pena proibiu que o velório
fosse feito na Faculdade. Indignados, seus colegas de turma e amigos apelaram
ao Centro de Memória, que desafiou o diretor e honradamente acolheu o corpo de
seu membro. Já o velório de Antônio Leite foi feito na Faculdade, porque a
diretoria desta não teve como impedi-lo e assim desobedeceu a proibição estatuída
por aquele infeliz dirigente.
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