João Amílcar Salgado

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

O LIVRO O ÍNDIO BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO FRANCESA DE AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
80 ANOS DE SUA PUBLICAÇÃO

João Amílcar Salgado

INTRODUÇÃO

Em 1937 Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990) publicou O ÍNDIO BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO FRANCESA. Este livro talvez seja o golpe mais vigoroso jamais infligido ao  colonialismo cultural, no qual se comprometeu e ainda se compraz a maioria dos intelectuais brasileiros.  E é obra tanto mais notável quanto se sabe que o autor aparentemente nascera para se somar à galeria pedante de nossos aristocratas letrados, portador de todos os requisitos de um caudatário a mais do pensamento eurocêntrico. Felizmente, o contrário se deu. E afinal com nenhuma surpresa diante da nobilitante coerência exibida por gerações de sua  família. Ainda no século 18, o médico Francisco de Melo Franco afrontou a Universidade de Coimbra, apelidando-a de REINO DA ESTUPIDEZ, com o requinte de ser um libelo em versos clássicos.  Mais tarde, o primeiro Afonso Arinos, com o livro PELO SERTÃO, de 1898, foi eminente pioneiro no temário de nossa identidade nacional, prenunciando OS SERTÕES de Euclides da Cunha (1902) e o GRANDE SERTÃO: VEREDAS de Guimarães Rosa (1956).  E o próprio Afonso Arinos de Melo Franco, sobrinho do primeiro, já cuidara, antes de 1937, de temas semelhantes: INTRODUÇÃO À REALIDADE BRASILEIRA (1933), PREPARAÇÃO AO NACIONALISMO (1934) e CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA (1936). Mais tarde, tal coerência se estenderia à sua POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE, que começou a implantar como Ministro das Relações Exteriores, nos fugazes meses do governo Jânio Quadros e do regime parlamentarista. Demais, foi o primeiro investido nesse cargo a visitar o continente africano e ali foi saudado como o autor da primeira lei anti-racista de nosso país.

O LIVRO

            Em  O ÍNDIO BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO FRANCESA, Afonso Arinos procura documentar que o iluminismo francês se inspirou na cordialidade, na afabilidade e na docilidade do índio encontrado pelos europeus no Brasil, donde surgiu a concepção teórica da bondade natural.  O autor, inclusive, sentiu a necessidade de acrescentar um subtítulo ao livro: AS ORIGENS BRASILEIRAS DA TEORIA DA BONDADE NATURAL.  Esta teoria é uma das formulações iluministas que se contrapunham, de modo escandaloso, ao pensamento estabelecido até então.  Contrariava gritantemente a tendência de qualquer cultura para se considerar superior às demais. Os termos selvagem, selvageria, bárbaro e barbárie, bem como incivis, incivilizados, não-educados, brutos, estúpidos, ferozes, animalescos e bestiais, são adjetivos e substantivos preferidos para denotar de modo pejorativo os estrangeiros e seus costumes, principalmente quando se quer  demarcar a superioridade de quem os denigre. Para maior contraste, aqueles que empregam tais termos se autodenominam, em geral, civilizados ou educados. De fato, a bondade inesperada de nossos índios está registrada no próprio texto inaugural de Pero Vaz de Caminha: esta gente é boa e de bela simplicidade. ... Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons.  Segundo Arinos, há uma relação direta entre a idéia da bondade natural vinda do Brasil e a DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO proclamada pela Revolução Francesa e aprovada em 17 artigos pela Assembléia Nacional da França, em 1789, que tem por artigo 1o : Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais não podem ser fundadas senão sobre a utilidade comum.

CONTEXTO DA OBRA

            A notícia do livro deve ter impressionado os franceses, pois Afonso Arinos o publicou em português, em 1937, e, em 1939, já ministrava curso na Sorbonne sobre CULTURA BRASILEIRA. Justo nessa época, o mesmo Arinos era membro da célebre elite convocada pelo médico Pedro Ernesto para criar a UNIVERSIDADE DO DISTRITO FEDERAL, da qual fazia parte, entre outros, três outros mineiros influentes: Abgar Renault e os também médicos Silva Melo e Baeta Viana, este guindado a reitor. O grupo de fato era de notáveis, como Anísio Teixeira, Gilberto Freire, Mário de Andrade e Cecília Meireles. Tanta gente pensante e altiva, reunida sob o mesmo teto, deve ter atemorizado Getúlio Vargas, que, logo após o golpe de estado, fechou a Universidade em 1938, quando ela engatinhava e nem tinha três anos de vida. 
Antes, Afonso Arinos, como recém-formado em direito, viera ser promotor em Belo Horizonte e aqui entrou para a turma de Pedro Nava, Carlos Drummond, Emílio Moura, Abgar Renault, Gustavo Capanema e Milton Campos interessados em literatura e voltados para o modernismo de Mário de Andrade.  Outros intelectuais, ligados a esse grupo, porém mais  voltados para a política e engajados na trama da Revolução de 1930, eram Virgílio de Melo Franco (irmão de Afonso), os Pinheiro Chagas (dois dos quais médicos) e Francisco Campos. Podemos dizer que, assim como, entre os modernistas paulistas, surgiram o grupo nacionalista Pau Brasil e o subgrupo direitista do integralismo, no grupo de Belo Horizonte, surgiram o grupo de artistas (Drummond, Abgar, Emílio, Nava e outros), o grupo de políticos (Virgílio, Arinos, Capanema,  Campos e os Pinheiro Chagas).  Aqui houve semelhante subdivisão entre um nacionalista liberal (Afonso Arinos) e um direitista (Francisco Campos).  Por outro lado, na turma da referida Universidade, Arinos deve ser colocado ao lado de Gilberto Freire, sendo o mineiro a vertente política e o pernambucano a vertente sociológica da busca da identidade nacional.
É importante considerar a marginalização política do irmão Virgílio de Melo Franco, empreendida por Vargas, e seu efeito sobre a carreira de Afonso Arinos. Aqui é inevitável especular que se Virgílio tivesse ocupado o lugar de Valadares na direção de Minas, não teria havido o golpe de 1937 e a Universidade do Distrito Federal existiria até hoje, sendo outros o papel político de Afonso e sua contribuição ao desenvolvimento acelerado do Brasil, até mesmo na condição de nação-líder, como tentou fazer tardia e frustradamente depois.

ATUALIDADE DA TESE

          Fatos históricos conhecidos após 1937 não só reforçam a tese de Arinos, mas sugerem ter havido uma espécie de “má vontade européia” para esmiuçar o tema. O desinteresse estaria ligado também a protagonistas judeus da Península Ibérica, refugiados em locais hoje situados na França e nos Países Baixos.  Essa postura discriminatória pode ter sido adotada não só por historiadores em geral, mas, paradoxalmente, por historiadores judeus, neste último caso por causa da conhecida tendência entre cristãos-novos ibéricos e seus familiares em colocar sua sobrevivência acima da preservação da identidade judaica.   Com tal perspectiva, passamos a enumerar alguns subsídios não explícitos no texto de Arinos e que são notável confirmação de sua tese. Para corroborá-los, convém lembrar que especulações heurísticas indicam que o iluminismo seria a sequência imediata do renascentismo, mas a interceptação da contra-revolução barroca retardou por pelo menos um século esse decurso mais que lógico e natural.  Nessa perspectiva, cresce a importância de Montaigne e Descartes como iluministas antecipados.

O MEIO-LUSO MIGUEL DE MONTAIGNE

É inestimável o tributo que o iluminismo deve a Miguel Eyquem de Montaigne, nascido na região de Bordeus, França.  Afirmamos mesmo que o pessimismo de Montaigne, em relação ao progresso social é indissociável da idéia da bondade natural. Se é o caso, então qual seria a relação entre Montaigne e a notícia sobre os índios brasileiros?  Ora, a mãe de Montaigne era portuguesa, Antonieta Lopes, e seu secretário havia estado com Villegaignon no Rio de Janeiro. Bastam esses dois fatos para que seja feito estudo minucioso da correlação entre a ascendência lusitana do ensaísta, de um lado, e, de outro, a França Antártica, Jean de Léry (divulgador da bondade natural) e o conteúdo dos ENSAIOS.

FRANCISCO SANCHEZ E RENÉ DESCARTES

             O racionalismo peculiar ao iluminismo está diretamente relacionado a Descartes. Entretanto, é pouco conhecida a curiosa ligação entre o francês Descartes e o médico português Francisco Sanchez. Para os que sabem do pensamento de Sanchez há uma proximidade entre o CÓGITO de Descartes e o CÓGITO de Sanchez.  Como este precedeu aquele, há a suspeita de plágio ou no mínimo de espantosa coincidência.

O MISTERIOSO DOCTEUR SILVA

Sabe-se que o iluminista Voltaire, assim como Montaigne,  era avesso aos médicos. Havia, entretanto, um médico, Jean Baptiste Silva (1682-1744), no qual confiava e este era de origem portuguesa. Descendia de portugueses judiados em Portugal que se refugiaram em colônia próxima a Bordeus. Era perseguido pelos demais médicos, que o acusavam de judeu, e isso o fazia mais ainda assediado pelos clientes. O rei Luís 15, ao ser coagido a agir contra Silva, lembrou que, se o adversário dos médicos o tinha como competente, ele, o rei, o queria para si. E o fez médico da corte.

O PEDAGOGO JEAN JACQUES ROUSSEAU

Rousseau, suiço de origem judáica, foi o mais radical dos iluministas e aquele que fez a ligação mais direta entre a bondade natural e as propostas revolucionárias. E a mais revolucionária destas idéias é a proposta pedagógica contida em seu livro EMÍLIO. Nela ele defende que a criança seja criada como selvagem até os doze anos e só depois submetida à escola, estando esta coerente com a primeira etapa. Com isso todas as potencialidades psíquicas seriam preservadas contra qualquer inibição, de tal maneira que todos os homens assim educados seriam altamente inventivos, livres e insubmissos. Estariam, então, em condições de serem protagonistas de um progresso sem igual em uma  sociedade nova.

FRANÇOIS MAGENDIE – O  “EMÍLIO”  REAL

O pai de François Magendie era médico e também habitava próximo a Bordéus. Quando leu o EMÍLIO, decidiu que seu filho seria educado como um Emílio. De fato o próprio Magendie se imbuiu de tal maneira de seu modelo teórico que exerceu formidável papel na revolução científica causada pelo iluminismo. Deu início a uma linhagem de cientistas que mudariam a face não só da ciência mas da sociedade, a começar por seu igualmente revolucionário discípulo Claude Bernard.

CLAUDE BERNARD  - A CIÊNCIA MODERNA LEVADA À SOCIEDADE

              Claude Bernard está para Magendie assim como Napoleão está para Robespierre, ou seja,  se Magendie foi o Robespierre da ciência, Bernard foi seu Napoleão. Bernard não inventou a ciência nem sequer criou a ciência fisiológica ou a farmacologia. Seu papel foi estatuir em ideologia o método científico já utilizado desde Herófilo, Galileu, Vesálio, Harvey e Morgagni. Quando Emile Zola adota e propõe essa ideologia também para as artes (romance, música e pintura), toda uma revolução inventiva, semelhante à idéia de Rousseau, se põe a caminho e chega até o século 21.  Interessa acrescentar que, na obra científica de Bernard, há um dado a mais que diz respeito ao Brasil, pois algumas de suas pesquisas cruciais foram feitas com um produto indígena da Amazônia: o curare.

HELENA ANTIPOFF  E O RETORNO DE ROUSSEAU

            A vinda da russa Helena Antipoff para Minas Gerais, em 1929, estado natal de Afonso Arinos, representa um retorno apropriado do Emílio de Rousseau ao local de origem da bondade natural. Estando ela no Instituto Jean Jacques Rousseau, em Genebra, foi convidada para vir ao Brasil, onde foi a principal figura da revolução educacional operada em Minas Gerais. Ora, sendo Minas Gerais a terra de Afonso Arinos de Melo Franco, nada mais apropriado que esta notável educadora nos viesse retribuir com o fruto daquilo que seu ancestral pedagógico daqui extraiu: a idéia da bondade natural de nosso indígena.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRITO, A. M. R..Francisco Sanches, médico, professor e pedagogo. Braga : Bracara; 1952.
CAMINHA, P.V.. A carta de Pero Vaz de Caminha. São Paulo: Moderna; 1999.
DESCARTES, R.. Discurso sobre o método. Tradução. São Paulo: Atena, 1954.
FRANCO, A.A.M.. O índio brasileiro e a revolução francesa. Rio: José Olympio; 1937.
LERY, J.. História de uma viagem à terra do Brasil. Tradução. São Paulo: Nacional, 1926.
MONTAIGNE, M. E. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural; 1980.
OLMSTED, J.M. D.. Claude Bernard and the experimental method in medicine. Toronto: Schuman; 1952.
OLMSTED, J.M.D.. Francois Magendie: pioneer in experimental physiology and scientific medicine in
                nineteenth century France. Montana: Kessinger; 2007.
PECKER, A.. La médecine à Paris du XIIIe au XXe siècle. Paris: Hervas, 1984.
ROUSSEAU, J.J.. Emílio ou da educação. Tradução. São Paulo: Martins Fontes; 2005.



JOÃO AMÍLCAR SALGADO é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário