MEDICINA
NO EGITO ANTIGO
Obtive grande
sucesso com textos divulgados pelo periódico do Conselho Federal de Medicina. O
conselho estadual paulista então me convidou para escrever algo apropriado para
a edição de natal de 2002 de seu periódico. Pedi que sugerissem o tema e me
encomendaram uma síntese da medicina faraônica. Achei que ficou um belo resumo,
bastante substancial, com requintada ilustração. Recebi elogios de toda parte. Aconteceu,
entretanto, que um médico lhes enviou um protesto contra o trecho final. Ali declaro
que o episódio bíblico no qual Isaque escapa da morte é uma transposição de
escape similar de Obaluaê, na mitologia africana. Como uma das escravas de
Abrão era africana sugiro ser esta a circunstância da transposição religiosa. O
periódico disse que entre tantos aplausos houve apenas este protesto. Pediu que
eu respondesse e me limitei a sugerir que publicasse o protesto, deixando o
julgamento por conta dos leitores.
Eis o texto:
MEDICINA NO EGITO ANTIGO
João
Amílcar Salgado
O atendimento clínico
socializado, a vigilância sanitária, a puericultura, a cirurgia, a
farmacoterapia, o hospital e o ensino universitário encontrados hoje podem ser
identificados, em espantosa contemporaneidade, na medicina egípcia.
A história da medicina no Egito faraônico passa a sofrer hoje completa revisão,
que advém não da descoberta de novos registros, mas da correção dos vieses
eurocêntricos e até racistas verificados nos primeiros estudos arqueológicos e
históricos. A primeira retificação é geográfica, pois tudo indica que o Golfo
Pérsico e não o Mar Vermelho é o limite entre a África e o Oriente.
Os primeiros homens a saírem da África para os demais continentes provavelmente
migraram em fluxo descontínuo, de modo a permitir a diferenciação das raças. Ao
mesmo tempo, a raça negra, como tal, manteve fluxo relativamente contínuo para
além do Golfo Pérsico, antes da origem da civilização egípcia. De fato, o
deslocamento oriental de populações negras se deu, desde tempos imemoriais, ao
longo da faixa litorânea que bordeja o Oceano Índico até a Austrália ou até
mesmo a América. Isso significa que a chegada da cultura egípcia até o Cáucaso,
por terra ou pelo Mar Mediterrâneo, foi apenas mais uma, e não a única, entre
as contribuições africanas à evolução tecno-cultural da humanidade.
A domesticação de plantas e animais, em vários locais do mundo, levou à
divinização do sol, que então substitui a divindade panteísta dos
catadores-caçadores. No Egito, o sol, fecundante das cheias do Nilo, é Amon-Ra,
deus também da medicina. A Grécia, onde aquela domesticação não teve o mesmo
significado, copiou Amon-Ra como Hélios, por sua vez copiado pelos romanos como
Apolo. Em virtude da especialização requerida pela maior complexidade social,
um semideus, Inotepe, filho ou descendente de Amon-Ra, se torna o deus
específico da medicina. Inotepe é copiado na Grécia como Asclépio e em Roma
como Esculápio. O ensino médico, ao processar-se sigilosamente de pai para
filho, implica a vinculação genealógica de qualquer médico ao semideus e ao
próprio deus. Ela decorre da simbolização em que o deus encarnado Imotepe é
germinado pelo pai divino Amon-Ra, fecundador de sementes. Em outros termos,
Imotepe ressurge da mortalidade subterrânea para a imortalidade individual –
triunfo que é recorrente em todas as religiões e almejado pela medicina de
todos os tempos.
Um médico histórico eminente passa a ser identificado como a encarnação desse
deus da medicina. No caso egípcio, Imotepe, médico do rei Zoser (2980 aC), era
tão notável que foi pioneiro quer no uso da escrita, quer na arquitetura de
pirâmides. De fato, um dos estímulos à escrita foi o registro da crescente
farmacopéia, fruto da expansão civilizatória. Culturas ágrafas dominam
farmacopéias importantes, mas a escrita permite, sobretudo, a fusão delas. Já a
arquitetura traduz o papel da medicina como ponte entre a religião e o
desenvolvimento de todas as ciências, inclusive a matemática e a astronomia, na
qual Amon-Ra é o astro fundamental, regente de ciclos climáticos e de pragas
agrícolas e humanas. O papiro Ebers, de 1550aC (descoberto em Luxor, em 1873),
e os outros papiros médicos constituem, portanto, apenas o episódio final de
longa história daquela medicina conservada oralmente, com auxílio de rima,
música, lendas e tabus.
Sociologicamente, a cultura faraônica é profundamente médica, no sentido de que
persegue o sonho médico da imortalidade corpórea, não só de faraós, mas de
pessoas comuns e até de animais – daí seu politeísmo médico. A mumificação
compõe tal medicina e implica conhecimentos da anatomia à farmacologia e à
cosmética, referente ao homem e aos demais animais (com a respectiva
veterinária), especialmente da bacteriologia virtual implícita na vitória
contra a putrefação e no domínio da fermentação. Coerentes com isso e
diferentes de outros, são os primeiros a considerar vitais a respiração e o
batimento cardíaco.
A proximidade do deserto, da savana e da selva trouxe peculiaridades. A
valorização da água e os procedimentos mumificantes geram a teoria médica da
limpeza externa e interna do corpo. O banho do próprio médico devia repetir-se
duas vezes de dia e duas de noite, além da roupa branca e da cabeça raspada a
cada três dias, origem da ligação entre barbeiros e cirurgiões. O vento arenoso
do deserto induz à prática da circuncisão (desde 5000 aC), como profilaxia de
gangrena peniana - hábito que de cirúrgico passa a litúrgico. A biodiversidade
da savana e da selva permite correlacionar doença com peçonha e vermes,
originando desde produtos antissépticos, que se transformam em culinários, até
o consumo de subprodutos animais, como o mel, o leite e o sangue.
O atendimento clínico socializado, a vigilância sanitária, a puericultura, a
cirurgia (os bisturis de pedra e de bronze precedem o de ferro, este presente
em 1600 aC), a farmacoterapia, o hospital e o ensino universitário e médico encontrados
hoje podem ser identificados, em espantosa contemporaneidade, na medicina
egípcia. Essa verificação está patente no R modificado, ideograma do olho de
Hórus, que subsiste na folha atual de receituário.
Tanta conquista não mais pode ser atribuída a uma espécie de milagre
antropológico ocorrido às margens do Nilo. Por exemplo, seja a metalurgia, seja
a mumificação ou grande parte da medicina surgiram da cultura núbia. Os ritos
lustrais são predominantemente líbios (os líbios primitivos eram também negros,
tanto como os egípcios e os núbios). Para evidenciar a difusão de traços
culturais, exemplifiquemos com a superação do infanticídio economicamente
necessário. Todas as subculturas da África o superaram, quando a economia
tribal se desenvolveu a ponto de comportar a sobrevida de crianças defeituosas
(e também de idosos e de adultos incapacitados). No Brasil é conhecido o rito
do Omulu-Obaluaê, originário do lado Atlântico da África. Omulu é o orixá da
medicina e Obaluaê é Omulu jovem. Sendo criança defeituosa (aleijada, variolosa
ou leprosa), Obaluaê deveria ser lançado ao lago. Sobreviveu quando o orixá feminino
Nana o resgatou do infanticídio. Assim, não é nada surpreendente que Abraão,
que era negro e escravizava uma africana, resgate seu filho Isaque de morte
semelhante, no poético episódio bíblico que relatou aos membros de sua tribo.
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