MINERAR NA SERRA DO CURRAL SEMPRE FOI E
SEMPRE SERÁ IMORAL, EXECRÁVEL E CRIME MONSTRUOSO
João Amílcar Salgado
Minerar
na Serra do Curral sempre foi denunciado como criminoso. O movimento estudantil
já proclamava isso desde que dele participei na década de 50 do século 20.
Carlos Drummond, nosso maior poeta, lamentou tão abjeta destruição em
documentos célebres. Agora, nossa querida Serra está prestes a ser oferecida à
completa destruição pelo inacreditável vilipêndio que autoriza o chamado
projeto Tamisa da Taquaril Mineração. Esta empresa minerária, destinada a
predar a ecologia da Capital, foi criada em 2021 por Cristiano Pinto Caetano da
Cruz e Guilherme Augusto Goncalves Machado. A autorização despudorada está
sendo verdadeiramente arrancada, por meios obscuros, dos órgãos responsáveis
nas esferas municipal, estadual, federal, fiscal e judicial. Diante disso,
aponta-se suspeito silenciamento da imprensa e da comunicação coletiva em
geral. Para maior eloquência de meu
protesto, lembro Carlos Drummond. Num trecho
ele diz: “Esta manhã acordo e não [a] encontro [a montanha de
minério], britada em bilhões de lascas, deslizando em correia transportadora, entupindo
150 vagões, no trem-monstro de 5 locomotivas, – trem maior do mundo, tomem nota
– deixando no meu corpo a paisagem, mísero pó de ferro, e este não passa.” Noutro, ele fala: “O maior trem do mundo
/ Transporta a coisa mínima do mundo / Meu
coração itabirano / Lá vai o trem maior do mundo / Vai serpenteando, vai
sumindo / E um dia, eu sei não voltará / Pois nem terra nem coração existem
mais.” E, na mensagem definitiva, de 1976, quando recusa convite para
vir à Capital, fala no TRISTE HORIZONTE
que substitui o BELO HORIZONTE: “Sossega minha saudade.
Não me cicies outra vez o impróprio convite. Não quero mais, não quero ver-te,
meu Triste Horizonte e destroçado amor".
Rogo
que minha indignação seja compartilhada pelos nepomucenenses, pois a área
referida no projeto, Taquaril, é nome da fazenda antes propriedade do
nepomucenense Jonas Veiga, que abrangia enorme área. Alcançava o bairro Jonas
Veiga, o cemitério da Saudade, a Fazendinha Paiva, a favela do Taquaril, o
clube Country, o hospital Baleia, um hotel e a fazenda Ana da Cruz. O primeiro
romance escrito por um nepomucenense tem também o nome de TAQUARIL
(1961), de autoria do médico, professor da UFMG e escritor Oscar Negrão de
Lima, genro de Jonas Veiga.
A
orquestração destrutiva da Serra do Curral configura-se uma nódoa,
incrivelmente indecorosa e inapagável, na história de Minas.
ADENDO:
TRISTE HORIZONTE
Carlos
Drummond de Andrade+
“Por que não vais a Belo Horizonte? a saudade cicia e continua, branda: Volta
lá.
Tudo é belo e cantante na coleção de perfumes das avenidas que levam ao amor,
nos espelhos de luz e penumbra onde se projetam os puros jogos de viver. Anda!
Volta lá, volta já.
E eu respondo, carrancudo: Não.
Não voltarei para ver o que não merece ser visto, o que merece ser esquecido,
se revogado não pode ser.
Não o passado cor-de-cores fantásticas, Belo Horizonte sorrindo púber e núbil
sensual sem malícia, lugar de ler os clássicos e amar as artes novas, lugar
muito especial pela graça do clima e pelo gosto, que não tem preço, de falar
mal do Governo no lendário Bar do Ponto.
Cidade aberta aos estudantes do mundo inteiro, inclusive Alagoas, “maravilha de
milhares de brilhos vidrilhos”mariodeandrademente celebrada.
Não, Mário, Belo Horizonte não era uma tolice como as outras. Era uma
provinciana saudável, de carnes leves pesseguíneas. Era um remanso, era um
remansopara fugir às partes agitadas do Brasil, sorrindo do Rio de Janeiro e de
São Paulo: tão prafrentex, as duas! e nós lá: macio-amesendados na calma e na
verde brisa irônica…
Esquecer, quero esquecer é a brutal Belo Horizonte que se empavona sobre o
corpo crucificado da primeira. Quero não saber da traição de seus santos. Eles
a protegiam, agora protegem-se a si mesmos. São José, no centro mesmo da cidade,
explora estacionamento de automóveis. São José dendroclasta não deixa de pé
sequer um pé-de-pau onde amarrar o burrinho numa parada no caminho do Egito.
São José vai entrar feio no comércio de imóveis, vendendo seus jardins
reservados a Deus. São Pedro instala supermercado. Nossa Senhora das Dores,
amizade da gente na Floresta, (vi crescer sua igreja à sombra do Padre Artur)
abre caderneta de poupança, lojas de acessórios para carros, papelaria,
aviário, pães-de-queijo
Terão endoidecido esses meus santos e a dolorida mãe de Deus? Ou foi em nome
deles que pastores deixam de pastorear para faturar? Não escutem a voz de
Jeremias (e é o Senhor que fala por sua boca de vergasta): “Eu vos introduzi
numa terra fértil, e depois de lá entrardes a profanastes. Ai dos pastores que
perdem e despedaçam o rebanho da minha pastagem! Eis que os visitarei para
castigar a esperteza de seus desígnios”.
Fujo da ignóbil visão de tendas obstruindo as alamedas do Senhor. Tento fugir
da própria cidade, reconfortar-me em seu austero píncaro serrano. De lá verei
uma longínqua, purificada Belo Horizonte sem escutar o rumor dos negócios
abafando a litania dos fieis. Lá o imenso azul desenha ainda as mensagens de
esperança nos homens pacificados – os doces mineiros que teimam em existir no
caos e no tráfico. Em vão tento a escalada. Cassetetes e revólveres me barram a
subida que era alegria dominical de minha gente. Proibido escalar.
Proibido sentir o ar de liberdade destes cimos, proibido viver a selvagem
intimidade destas pedras que se vão desfazendo em forma de dinheiro. Esta serra
tem dono. Não mais a natureza a governa. Desfaz-se, com o minério, uma antiga
aliança, um rito da cidade. Desiste ou leva bala. Encurralados todos, a Serra
do Curral, os moradores cá embaixo.
Jeremias me avisa: “Foi assolada toda a serra; de improviso derrubaram minhas
tendas, abateram meus pavilhões. Vi os montes, e eis que tremiam. E todos os
outeiros estremeciam. Olhei terra, e eis que estava vazia, sem nada nada nada”.
Sossega minha saudade. Não me cicies outra vez o impróprio convite. Não quero
mais, não quero ver-te, meu Triste Horizonte e destroçado amor”.
A MONTANHA PULVERIZADA
Carlos Drummond de Andrade
Chego à sacada e vejo a minha serra,
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.
Era coisa de índios e a tomamos
para enfeitar e presidir a vida
neste vale soturno onde a riqueza
maior é a sua vista a contemplá-la.
De longe nos revela o perfil grave.
A cada volta de caminho aponta
uma forma de ser, em ferro, eterna,
e sopra eternidade na fluência.
Esta manhã acordo e não a encontro,
britada em bilhões de lascas,
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões,
no trem-monstro de 5 locomotivas
– trem maior do mundo, tomem nota –
adeixando no meu corpo a paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.