João Amílcar Salgado

quinta-feira, 30 de junho de 2022

 


MANOEL FIRMATO DE ALMEIDA

Aventuroso triunfador na vida e na arte

João Amílcar Salgado

            Manoel Firmato teve a sorte de nascer de um pai notável e de ter-se formado numa época em que o Brasil era feliz. Ele se graduou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais em 1957, ano de que me lembro bem. Eu era terceiranista e Kubitschek cumpria o terceiro ano de seu governo federal: estávamos nos anos dourados.

            Se Firmato se der o vagar de escrever suas memórias, teremos novo Nava, e um Nava cirurgião, o que nos falta. E, tal como aquele, começaria por nos dizer a saga de seu genitor. Antônio Firmato, pai de Manoel Firmato, é caso raríssimo de médico geral que enfrentou com alto brilho os desafios oferecidos por área endêmica de várias doenças chamadas tropicais. Em qualquer país adiantado, este patriota audaz já teria mais de uma biografia, com estudo detido de suas realizações. As notícias dele que nos chegam fazem parecer que ele decidiu desdizer o primeiro aforismo hipocrático: para tantas e tão extensas façanhas até que a vida não lhe foi tão breve assim.

Seu caso é mais extraordinário pelo fato de que, tendo um sem número de afazeres, achou tempo para a pesquisa científica de alta qualidade, como se pode ver pelo livro que publicou, em colaboração com César Pinto: SCHISTOSOMIASIS MANSONI NO BRASIL, 1948. Ao mesmo tempo propôs e ele próprio efetivou vários serviços na área do saneamento e da assistência médica, numa época em que o Vale do Mucuri era um sertão inacessível e desanimador.  Seu exemplo, como o de Carlos Chagas, mostra que o médico que o Brasil verdadeiro exigia para resolver seus verdadeiros problemas era o profissional versátil, capaz de devotada inclinação comunitária.

            O filho Manuel, ainda sextanista, partiu para o sertão em auxílio do pai, substituindo-o, com igual competência, nos compromissos com aquela gente. Com isso protagonizou um INTERNATO RURAL avant la lettre em 1958, vinte anos exatos antes da criação desta inovação educacional em sua Faculdade. Quando decidiu ir para os EUA, levava consigo a mesma flama paterna, que surpreendeu os ianques.

            Ali se submeteu ao internship rotatório, mas, após o primeiro ano, surgiu nova legislação que exigia do médico estrangeiro ser aprovado no exame preparado por The Educational Council For Foreign Medical Graduates. Nas palavras do Manuel, nossa Faculdade, por intermédio dele, se saiu muito bem nessa prova. A seguir submeteu-se a três anos de residência médica em cirurgia geral. Ao término, o professor Tague Chisholm, seu visível admirador, propôs que, se quisesse especializar-se em cirurgia pediátrica, o recomendaria aos chefes que escolhesse. Escolheu para mestre Mac Parland, a partir de quem recebeu do Boston Floating Hospital For Infants and Children o certificado de Fellow em Cirurgia Pediátrica (1963 e 64). Em seguida, fez ainda residência no St. Christopher´s Hospital for Children, pelo Departamento de Pediatria da Escola de Medicina  da Temple University de Philadelphia (1964-65).

            Com toda essa plenitude de qualificação, só poderia ser recebido de braços abertos em qualquer serviço médico e em qualquer parte do mundo. Pasmem, pois ao contrário, retornando a Minas, recebeu portas na cara. Os hospitais da Previdência Estadual, da Santa Casa e da Baleia não julgaram convincente o sobredito curriculum vitae. Que sumidades eram estas, para tão escandalosa esnobada ou para tão acintosa demonstração de despeito?

            Seu pai, contristado diante de tal provocação, deve ter pensado: essa gente só entende uma linguagem, a linguagem lá deles, então, não é meu hábito, mas vou falar e agir conforme o dialeto em que conversam. Logo o provedor Alkmin nomeia Manoel para a mesa diretora da Santa Casa - tapa de luva que significou: vai lá ser chefe dos que o vetaram. E o Hospital da Previdência recebeu - não de alguém do terceiro escalão do Estado -  mas do próprio Israel Pinheiro, sua designação para o corpo cirúrgico do Instituto. Em seguida, Lucas Machado o designa professor de cirurgia pediátrica na Faculdade de Ciências Médicas.

            Na aula comemorativa do centenário de sua Faculdade, para a qual foi convidado como ilustre ex-aluno para falar sobre sua vida e sua carreira, ele foi saudado por nada menos que Enio Leão. Era o maior de nossos pediatras clínicos a receber o maior de nossos cirurgiões pediátricos. Foi comovente ver ambos relembrarem a cooperação que tiveram no início de suas realizações, hoje memoráveis.

            Manoel Firmato, hoje se encontra consagrado como um artista, que é uma espécie de Miguel Ângelo às avessas. É campeão internacional em cirurgia de siameses e, em sua magna aula, fez úmidos ali muitos olhos, pela ternura - paradoxalmente aliada à dureza - com que optava por salvar pelo menos uma de duas crianças nascidas unidas. Um desses olhos úmidos era de seu querido colega da viagem de estudos aos EUA, Gilson Cota Barbosa, nosso primeiro cirurgião plástico a se especializar no exterior.

            Antônio e Manoel Firmato são belo exemplo de pai e filho médicos, em que o filho, em vez de seguir estritamente os passos do pai, ornou as notáveis realizações deste com suas próprias e inéditas realizações. Quando o Brasil aprender a reconhecer heróis de verdade, os Firmato serão dois incontestáveis nomes a serem reverenciados no panteão da medicina nacional.

 

            [Em 2015, Manoel Firmato aceitou minha sugestão e escreveu o livro O MENINO QUE VIROU GENTE. Estudo a provável ligação entre os Almeida e os Antunes sulmineiros e os do nordeste-norte mineiro e da Bahia]

quarta-feira, 29 de junho de 2022

 


INCÊNDIO NA SANTA CASA DE BH

João Amílcar Salgado

Em 1971, Delcides Baumgratz era dirigente do Hospital das Clínicas da UFMG e responsável pelo curso de administração hospitalar. Sugeriu para minha monografia final o tema salubridade hospitalar.  Na apresentação comecei dizendo que, por sua finalidade, cabia ao hospital ser a instituição mais salubre de todas. E não era bem isto o que ocorria. Esta monografia e meu discurso de orador da turma, segundo César Barros Vieira, estavam na vanguarda da abordagem ecológica da questão. Um aspecto que apontei foi o risco de incêndio e outras tragédias, na escolha da ocupação dos andares em hospitais verticais, principalmente em mega-edificações. Mostrei que em nosso hospital o critério para localização do CTI - o primeiro completo no Brasil - foi o prestígio do professor que exigiu o 4º andar, local de sua cátedra, em vez do andar aconselhável, que era o 2º. O pior é que o andar mais alto era ocupado pela ortopedia, em vez do 3º.  Os catedráticos respectivos, adeptos da ditadura (estávamos sob o arbítrio do ditador Médici), desaprovaram meu texto, tachado de inconveniente, o que causou seu abafamento, inclusive o veto à publicação em periódico.  Ontem, 27/6/22, ocorreu o incêndio do CTI de nossa Santa Casa, com trágicas cenas e três mortos. Encontra-se localizado no 10º andar do gigantesco edifício.

Entre alguns historiadores, consta que Ademar de Barros era governador de São Paulo e exigiu que o hospital da USP fosse a réplica da Charité de Berlim, onde estudou – e esta é o primeiro hospital universitário de clínicas do mundo. A Charité tinha sido a Santa Casa da cidade, fato indicado em seu nome. Daí que a Santa Casa de BH decidiu ser reerguida como outra réplica.  E a moda faraônica se estendeu à UFMG e à UFRJ (ilustração anexa). O maior arquiteto hospitalar do Brasil é o mineiro Jarbas Karman, que discorda de mega-edificações, sendo o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, exemplo de sua lavra.

 

 

sábado, 25 de junho de 2022

 


BAETA VIANA, O ZEBU, A SOJA E A FOME

João Amílcar Salgado

No auge do zebu o cientista Baeta Viana foi padrinho de casamento de um ex-aluno em Uberaba. Os pais do noivo lhe exibiram orgulhosos sua boiada campeã. Na conversa, elogiou tudo aquilo, mas observou que criar zebu era um erro bioquímico. Disse à perplexa fazendeirada que usar capim para obter carne pode ser substituído por um vegetal diretamente equivalente à carne. Perguntaram: e isso existe? Ele respondeu: a soja, então ainda quase desconhecida no país. Décadas depois os pastos foram ali substituídos por gigantescas lavouras de soja. Décadas depois os bois confinados eram engordados com soja. Hoje, muitas décadas a mais, a espezinhada, humilhada e abandonada maioria da população brasileira se encontra em fome endêmica, já também epidêmica, e faz fila pra comer osso de zebu.  Enquanto isso, a soja do Brasil, maior produtor mundial, é exportada para ração animal do mundo inteiro.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

 


FRANCIA MÁRQUEZ E A PEQUENA

João Amílcar Salgado

Tenho forte ligação afetiva com os quilombolas da Vila, principalmente os dos quilombos da Bacia, da Bárbara e do Retiro. Ainda muito criança, presenciei os preparativos do casamento da Tiana com o Lázaro do Justino e fiz birra para ver o pagode, no terreiro de chão batido, que finalizou o casório. No comecinho da dança, adormeci no colo da Pequena, que me levou dali. Raro casamento de rico teve os finíssimos comes e bebes que a tia Iracema preparou para essa festa. Ao ver a foto anexa de Francia Márquez, comemorando sua eleição para vice-presidente da Colômbia, tive um arrepio e, por dois segundos, supus estar vendo a Pequena, minha querida babá.

 

 

segunda-feira, 6 de junho de 2022

 


A INDÚSTRIA DAS ARMAS É IRMÃ DAS INDÚSTRIAS DOS CIGARROS E DOS REMÉDIOS

João Amílcar Salgado

Na Universidade Estadual da Pensilvânia, em 1986, fui convidado a apresentar nossa inovação em educação médica, quando falei do “marketing” embutido no ensino, marco de minha tese doutoral. Pedagogos locais comentaram que nunca tinham pensado nisso e manifestaram muito interesse em estudar o tema. Convidaram-me até para passar um “sabbatical” ali. Um deles, entretanto, ficou abalado com a ideia e perguntou se o raciocínio se aplicaria a áreas fora da educação. Citei o cinema, que desde seu início fez “marketing” de armas e de cigarros. O faroeste resultou disso. Coincidentemente, no dia de minha chegada, a tevê noticiava que o galã caubói Yul Brynner morreu do tabaco. O cartel de cigarros passou a pagar “autoridades” cientificas para “melar” a evidência. Finalmente a filha de Yul apareceu fumando e contestando aquela causa. Quase em seguida um repórter descobriu o quanto ela recebeu. Os cineastas, afinal, concordaram em abolir atores fumando. Abolir tiroteios na tela continua mais difícil porque a Associação Nacional de Rifles da América (NRA), sempre ligada a supremacistas, vem exibindo uma força espantosa, acima de qualquer poder da República, desde quando fundada em 1871. Mesmo assim os pacifistas esboçaram substituir o “bang-bang” por Kung Fu e Bruce Lee. E a venda de armas em cada esquina prossegue ali, com banhos de sangue quase semanais.

Hoje no Brasil algo parecido ocorre no combate às “fake news”, pois os publicitários mais inteligentes já perceberam que a coisa vai resvalar da questão eleitoral para a publicidade farmacêutica. Esta é célebre, nos EUA, com a Coca-Cola e, no Brasil, com o Rhum-Creosotado. A Abifarma e a Abrafarma não detêm o poder da NRA, mas podem melar esse combate, pelo menos até que alguém garanta que NÃO É “FAKE” A PROPAGANDA DAQUELE REMÉDIO QUE O PRÓPRIO FABRICANTE RECONHECE COMO INEFICAZ.