JOSÉ
RÓIS
O esporte mata, exceto andar e dançar
José Róis nasceu patafufo, portador de
nascença da síndrome do cérebro inquieto. Formou-se em medicina na hoje
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Sua mente especial o fez diferente da maioria dos humanos, causando de
muitos a admiração e de poucos a hostilidade. Ainda estudante de medicina, não
teve dúvida de que seria cientista e foi iniciar-se no laboratório de Paulo da
Silva Lacaz, enquanto absorvia o modo de pensar de Antônio da Silva Melo.
Corretamente, deduziu que só poderia ser bom médico se dominasse cabalmente o
conjunto maciço da fisiologia humana. Daí que, na faculdade, incomodou quanto
docente topava e depois, na clínica, todo colega com quem trocava idéia. Todos
esses negavam àquele peremptório debatedor tamanha cópia de conhecimentos sobre
o funcionamento orgânico. E não possuindo conhecimento igual, atribuíam ao José
Róis capacidade infinita para mentir. Carregou isso pela vida afora, até que
descobriu o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, onde encontrou
vários estudiosos que, somados, lhe configuraram um interlocutor à altura, ou
seja, não o taxaram de mentiroso e, para sua grande alegria, o levaram a sério.
De suas várias
façanhas, minha preferida é a denuncia que sofreu por entrevista dada ao Diário
da Tarde. Ele cuidou de vários pacientes diabéticos que antes tinham sido
tratados pelos melhores clínicos. Logo de início modificava-lhes as restrições
dietéticas. Todos os tratamentos de
diabete na época seguiam a orientação de Baeta Viana que era fanático por
Elliott Proctor Joslin, homem de Harvard e Yale, pioneiro e herói mundial do
auto-cuidado da diabete, desde 1898 até 1962. Os críticos posteriores de Joslin
espalharam a piada de que, com o Joslin, o paciente não morria de diabete, mas
de aterosclerose, que era acelerada pela dieta antidiabética do dogmático
diabetólogo. Pois bem, muito antes disso, Joslin já era criticado em Minas pelo
Róis. Os baetistas ficaram indignados com aquele “não-aluno” do Baeta, mas a
coisa culminou quando um jornalista, filho de uma cliente de Róis, observando a
melhora da mãe, julgou a doutrina deste digna de uma reportagem. Para azar do Róis, o repórter era
sensacionalista e não resistiu à tentação de estampar a seguinte manchete: DIABÉTICOS
– AÇÚCAR NELES!
Ora, o presidente do
Conselho Regional de Medicina era justamente o professor Oromar Moreira,
fanático ao mesmo tempo por Viana e por Joslin. Abriu incontinente o processo
contra o Róis. Este recebeu várias correspondências assinadas por Moreira,
pedindo que se defendesse por escrito. Róis sempre respondia que preferia
defender-se em plenário. Passaram-se meses e o Conselho acabou concordando em
ouvi-lo em plenário, tendo o cuidado de convocar dois endocrinologistas ad-hoc, para que a argüição fosse arrasadora. De seu
lado, Róis estava indo para o julgamento apenas com dois livros, o tratado de
Best & Taylor de fisiologia e o tratado de Goodman & Gilman de
farmacologia. Em meio ao trajeto, aproxima-se de uma banca de jornais, onde ao
acaso encontra o último número da revista Seleções. Para seu prazer, lê:
DIETA MAIS LIBERAL PARA DIABETE. Quase sorridente, Rois adquire a
revista e parte para enfrentar o tribunal.
O presidente do
Conselho mostra-lhe o jornal e pergunta se ele confirma ser autor daquela
entrevista. Róis confirma ser o entrevistado, mas diz que o título da mesma foi
colocado depois da entrevista, sendo que os dizeres da manchete não
correspondem ao conteúdo. Acrescenta que, se o Conselho quiser processar o
jornalista ou o jornal pela manchete infeliz, ele apóia a ação. Desconcertados
com esta posição e com a tranqüilidade mineiríssima do réu, os conselheiros
lançam uma última cartada: pedem que exponha oralmente o conteúdo. Róis diz que
ia falar longamente, mas resolvera à última hora apenas ler um resumo. E passa a ler, como se fosse seu, o texto da
revista Seleções. Lê alguns parágrafos e dá por finalizada sua
exposição. Um endocrinologista pergunta, exaltado, se ele sabe quantos
diabéticos morrerão em função de tal orientação? Róis responde com outra pergunta: quantos
seriam os leitores de minha entrevista?
- Que seja um, haverá crime!, disse, indignado o especialista.
Nosso herói então exibe a capa da revista e
diz: diante do que ouvi e diante da multidão de leitores desta revista que
está em minhas mãos, só aceito ser processado depois que os senhores abrirem
processo contra os tradutores brasileiros e contra os editores da matriz nos
EUA, e mais: desde já, delego minha defesa aos advogados do Reader´s Digest.
Róis foi um pesquisador
nato, sempre heterodoxo em relação aos
clichês estabelecidos. Escrevia bem e não tinha acesso às publicações
convencionais. Exercitava seu cérebro inquieto com o xadrez e era adepto do
esperanto. Admirava persistentemente o oftalmologista Zamenhof, que criou este
idioma maravilhosamente simples, para veículo de paz e educação. Por meio dele,
José Róis expunha a um público limitadíssimo suas ideias sempre originais,
veiculadas em revista médica
esperantista. Seu forte era o pensamento
lógico, mas tudo indica que, se tivesse tido acesso a laboratórios, teria tido
sucesso em colocar seus dons e seu conhecimento biológico a serviço de
significativa produção científica. Quantas pessoas desse tipo o Brasil
desperdiça em seu imenso território?
Conheci o Róis
tardiamente, quando meu amigo Gilberto Vasconcelos me telefonou de Juiz de Fora
e perguntou se eu lera um livro sensacional intitulado O ESPORTE MATA e
quis saber se eu o receberia junto com o autor do livro. Mais tarde Róis, o
autor, confessaria que sua chegada ao Centro de Memória da Medicina de Minas
Gerais foi grata surpresa, pois o recebemos de braços abertos, culminando com o
convite para uma aula de mesmo título no curso de história da medicina. Ele
supunha hostilidade da medicina acadêmica e nada disso aconteceu. O livro não
era novo, mas o Gilberto e eu o recolocamos em discussão pelo tablóide CAROS
AMIGOS e pelo canal esportivo de televisão ESPN BRASIL.
Com isso Róis foi entrevistado pelo Jô Soares,
quando, no palco, caminhou com o humorista, para que demonstrasse como era
mesmo caminhar sem correr.
Coincidiu que exatamente nesta ocasião morreu um jogador de futebol
diante de todo o público brasileiro adepto do futebol, em cenas fortes
flagradas pela televisão. Em entrevista
àquele canal eu disse que o alerta de Róis contrariava os interesses de milhões
de dólares investidos na crescente indústria esportiva, mas, em compensação, a
morte real desse jogador e de outros passaria a dar lucros aos fabricantes de
desfibriladores e outros equipamentos de socorro. Ver https://www.youtube.com/watch?v=fUZDmtSwcc4
Quase toda manhã, na
esquina do Colégio Arnaldo, eu via o Róis, de mãos dadas com sua esposa,
atravessar rumo ao Mercado Central. Ele e ela iam e voltavam a pé, sendo que
lá, de pé junto ao balcão do Comercial Sabiá, faziam o desjejum, na base do
café-com-leite e pão-com-manteiga – hábito dele de infância que cultivava aos
80 anos. À noite, o casal ia para a dança de salão. Assim ele próprio seguia sua prescrição de
que os únicos esportes sem risco são caminhar, sem correr, e dançar, desde que
dança de salão.