João Amílcar Salgado

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018


NOS 70 ANOS DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS,  COMO ESTÁ O DIREITO À SAÚDE?

João Amílcar Salgado


Tenho aqui comigo um livro preciosíssimo. É o TESOURO DOS POBRES, escrito em cerca de 1270 por Pedro Juliano Rabelo, cognominado Pedro Hispano e que chegou a papa como João 21. Era português, médico, alquimista e filósofo. Foi o único médico mencionado por Dante na Divina Comédia. Este sábio extraordinário julgava que a medicina de seu tempo já dispunha de recursos consideráveis, mas que eram disponíveis apenas para os ricos. Ele então escreve o Tesouro para que fossem acessíveis aos pobres. 500 anos depois, vários pensadores notáveis, chamados Iluministas, verificaram que a medicina tinha conquistado grande avanço com a anatomia, a fisiologia e a patologia e concluíram que qualquer ser humano tinha o direito de usufruir de tal progresso. Enquanto o Iluminismo francês era contrário aos médicos, o Iluminismo escocês foi construído pelos médicos. Essa diferença iria repercutir no século 20, quando os escandinavos, os britânicos e os canadenses construíram modelares sistemas estatais de saúde.
            A efetivação de mudanças iluministas na saúde encontrou duplo obstáculo religioso e militar. O atendimento de saúde estava limitado quer pela prática da caridade, quer pelo interesse militar, sendo que este se fez hegemônico com os militarismos napoleônico, prussiano e britânico do século 19. Em 1848 restaura-se a proposta iluminista simbolizada na frase do polonês Rudolf Virchow: A MEDICINA É UMA CIÊNCIA SOCIAL E A POLÍTICA NÃO É OUTRA COISA DO QUE MEDICINA EM LARGA ESCALA. A autoridade de Virchow advém do fato de que ele é o imortal cientista iniciador de nova era da ciência médica, a patologia celular.
            No final do século 19, os EUA elaboram modelos pragmáticos capazes de proporcionar o progresso médico acima e à frente das divergências europeias - a partir da Faculdade de Medicina de Johns Hopkins, sob a liderança de um clínico canadense William Osler e um cirurgião novaiorquino William Halsted.  Colocaram a América na vanguarda mundial, quando substituíram os antigos hospitais adaptados ao ensino pelo hospital universitário, estritamente projetado para o ensino, além de formular novo ensino médico. Infelizmente cometeram o erro de separar o ensino médico do ensino do que chamaram equivocadamente de Saúde Pública. Para isso criaram a Escola de Saúde Publica Johns Hopkins, separada da Faculdade médica.
Esta separação foi exportada pela Fundação Rockefeller ao Brasil e outros países. Aqui, como resultado, os sanitaristas brasileiros, por serem formados de acordo com tal modelo, só poderiam fracassar, ao tentar implantar um sistema único de saúde (SUS), que fosse coerente com os modelos escandinavo, britânico e canadense.  Curiosamente o Canadá tão próximo dos EUA adaptou o modelo britânico a suas peculiaridades, enquanto o Brasil, tão distante em vários aspectos, pretendeu copiar não as várias virtudes da medicina ianque, mas precisamente seus piores defeitos.
            Foi necessário que se elegesse o primeiro presidente negro dos EUA, Barak Obama, para que se aprovasse tímida reforma da saúde naquele país, em crise crescente desde 1970 - sendo o objetivo de seu partido, a médio prazo, adaptar o sistema canadense à complexa realidade estadunidense. Os parâmetros de Obama foram exatamente a Declaração dos Direitos Humanos aplicados à saúde. Esta Declaração foi estabelecida em 1948 pela ONU, de acordo com as referidas propostas de João 21, do século 13, e dos Iluministas, do século 18. Como sucessor de Obama, surge a figura sinistra do Trump, que defende exatamente o oposto, ou seja, a medicina tem de servir ao lucro e não à saúde.       

O autor é professor titular de Clínica Médica da UFMG e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais

terça-feira, 4 de dezembro de 2018


O PECADO DE MANIPULAR O GENOMA HUMANO – QUE NEPOMUCENO TEM A VER COM ISSO?
João Amílcar Salgado

Em 28-11-18 foi comunicado fato (a ser comprovado) destinado a ser passo revolucionário na História da Medicina. O pesquisador chinês He Jiankui anunciou duas bebês (Lulu e Nana), cujo genoma foi modificado por ele. A façanha foi vista como verdadeira ruptura na criação do homem e como impensável possibilidade de controlar a evolução das espécies. A tecnologia consiste na precisa manipulação do DNA da célula germinativa, por meio de nucleases programáveis (sistema CRISPR/Cas), capaz de corrigir ou introduzir mutações, trazendo a esperança de curas de doenças ou então o temor de inimagináveis maldades. O filho da nepomucenense Mariana Veiga, João Batista Veiga Sales, brilha na história dessa tecnologia. Nos EUA, ele colaborou com o asturiano Severo Ochoa, que, com Arthur Kornberg, recebeu o prêmio Nobel em Medicina de 1959, pela descoberta da síntese do DNA.
Em dezembro de 1969, o professor Aparício Silva de Assis realizou o primeiro transplante de órgãos, no caso o rim, em Minas, sendo o segundo do Brasil. Depois, o cirurgião me pediu para ser o co-orientador da tese, também pioneira, de meu fraternal amigo e ex-colega de república Francisco Ozeias de Carvalho, sobre a avaliação dos transplantes até então realizados. Os elogios que o mestrando recebeu foram tantos que o Aparício propôs um livro sobre ética dos transplantes e me pediu uma introdução histórica, a partir da ética da transfusão de sangue.
O Aparício vinha conversando comigo sobre isso, principalmente a propósito da publicação do Simpósio Ciba intitulado ETHICS IN MEDICAL PROGRESS: WITH SPECIAL REFERENCE TO TRANSPLANTATION, de 1966.  Ele convidou co-autores e a alguns deles assustou a abrangência corajosa do livro, com tópicos melindrosos: por exemplo, a possibilidade do comércio de órgãos, a interface com a religião ou o conflito entre especialistas. Daí que a obra ficou emperrada, mas, se fosse publicada, teria sido pioneira, mesmo fora do país. Minas Gerais, aliás, sempre teve responsabilidade histórica no trato da ética, desde a tese  ENSAIO SOBRE O ESTUDO DA VIDA,  defendida com brilho na Faculdade de Medicina de Paris, em 1837, pelo médico mulato mineiro Camilo Maria Ferreira Armond, mais conhecido como Conde de Prados. Foi um texto elaborado em momento crucial de guinada doutrinária da medicina e hoje pode ser lido em português, na tradução feita por meu distinto ex-aluno e abnegado historiador da medicina barbacenense, Paulo Maia Lopes. 
O abortamento daquele livro nos poupou de sermos transformados em bioeticistas, uma especialização que denunciei depois como espúria. Minha denúncia ocorreu depois de minha participação no Comitê de Ética da Pesquisa da UFMG e deriva das seguintes perguntas, que flagram o farisaísmo inerente a tais especialistas. Como explicar que aos hospitais, principalmente aos universitários, seja exigido rigoroso controle ético da pesquisa em sujeitos humanos, sem que igual exigência seja feita para os aspectos éticos do ensino e da atenção à saúde?  E por que o conselho nacional que trata da atenção à saúde deixa de cuidar da ética desta atenção para cuidar da ética da pesquisa? Por que o conselho nacional que trata da pesquisa não cuida da ética da pesquisa? Por que o conselho nacional que trata da educação não cuida da ética da educação? Por que as convenções sobre bioética são financiadas por corporações privadas, envolvidas no gigantesco lucro potencial da terapia genética?
O tumulto internacional causado por He Jiankui tem muito a ver com tais perguntas.


terça-feira, 27 de novembro de 2018


PASSATA E BERNARDO BERTOLUCCI

O falecimento do cineasta italiano Bernardo Bertolucci, em 26-11-18, é a oportunidade para que Nepomuceno faça uma homenagem a um de seus filhos mais carismáticos, o queridíssimo Edmilson Costa, conhecido mais como Zotinho, Zote,  Zote-do-Luiz-Barbeiro  ou Passata.  Qual é a relação entre ambos? Acontece que, quando os ex-estudantes nepomucenenses assistiram, em 1976, o filme O ÚLTIMO TANGO EM PARIS e viram o astro Marlon Brando em plena dança, não tiveram dúvidas: tratava-se de um plágio da performance de tango vivida pelo Passata, na década de 50 do século 20, no cabaré Montanhês, na Capital. Reunidos com o José Maria Ribeiro, o Antônio Baratti, o Carlos Manoel de Oliveira Lima e o Joaquim Carlos Salgado, discutimos iniciar um processo indenizatório, ideia que não prosperou. Bernardo poderia ter sabido da cena original por seus parentes de Lavras, possibilidade que não se confirmou. Talvez, na pesquisa sobre tango, os roteiristas tivessem sabido da coisa pelo maestro Castilho, que mais de uma vez trouxe sua orquestra à Vila, ou pelo musicista argentino Nievas, comparsa do Vinício Tiso. Nossa juventude ficou ainda mais confusa porque Brando era querido aqui como sósia do Luizinho Vilela Braga e do Samul e como consanguíneo de nossos Brandões. E não foi essa a única vez em que a Vila é plagiada no cinema. Quando os conterrâneos viram o astro Jack Nicholson catando risco em Nova Iorque, no filme MELHOR É IMPOSSÍVEL, houve a mesma revolta. E o Passata insistia que Marlon Brando saiu-se mal no tango e ainda deu vexame na cena da manteiga, enquanto o dele, este sim, foi verdadeiro e memorável show. De minha parte, atesto que o aplauso foi de fato unânime. Ver a cena no livro O RISO DOURADO DA VILA, breve em 2ª edição.
        

quarta-feira, 21 de novembro de 2018


NEPOMUCENO EM EVIDÊNCIA NA ACADEMIA

Um dos melhores sambas de Noel Rosa diz: “Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema / Ser estrela é bem fácil / Sair do Estácio é que é o X do problema”. Ele se aplica a Nepomuceno, que acaba de ficar em evidência na Academia Mineira de Medicina. Então, é como se nossa cidade cantasse: “Fui enaltecida na Academia / Ser assim enaltecida pode encher-me de glória / Deixar de ser a Vila-dos-Bundas-Vermelhas é que é o X do problema”. Para além da brincadeira, o lançamento, em 13-11-18, do livro NEPOMUCENO – SÍNTESE HISTÓRICA foi inesquecível festa. Um livro que conta a história de pequena, embora nobilíssima, cidade não era para atrair tantos e tão ilustres interessados. Demais, divulguei que a apresentação da obra teria por título UMA HISTÓRIA DE MINAS QUE QUASE NINGUÉM CONHECE, inspirada nos fatos que o livro revela. Estiveram presentes especialistas em nossa história que confirmaram o ineditismo ali apresentado. E bem mais que isso, o evento serviu a intenso congraçamento, que parecia longamente esperado, entre colegas, historiadores, ficcionistas, poetas, demais estudiosos, amigos e familiares. E, embutida na confraternização, ocorreu mais uma feliz VILELADA. Houve também a homenagem a João de Abreu Salgado e a João Salgado Filho, avô e pai do autor, pela qual, a cada livro sobre Nepomuceno, eram juntados de brinde os livros respectivos VIDA DO PADRE VÍTOR e OLHOS NEGROS - publicações assim também lançadas pela Academia.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018



LUZIA E VITAL BRAZIL VILIPENDIADOS E ULTRAJADOS

Criei um grande museu e assim tenho autoridade para falar sobre o criminoso incêndio do Museu Nacional. Em 1979, ao lado de meus filhos adolescentes, Carlos e João, percorri aquele palácio e jamais imaginaria vê-lo reduzido a cinzas. Ao ver as chamas devorando tudo, pensei que o Michel Temer, que teve várias fortes razões para renunciar, desta vez renunciaria.  E que os ministros da Cultura, da Educação e da Tecnologia, bem como o reitor da UFRJ e o diretor da casa, seriam presos incomunicáveis, antes de qualquer outra providência. Nada disso aconteceu e todos aparecem na tevê, com a cara mais limpa, para explicar o inexplicável - e prometer o que?
O fóssil da Luzia mostra bem a malandra irresponsabilidade dos que deveriam ser guardiães de nossos tesouros públicos. O fóssil foi descoberto em Minas, em 1975, e depois datado e reconstituído, em 1999. Foi então que nós, do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, entramos em contado com pesquisadores amigos, no intuito de trazê-lo para o Centro, onde faria parte do acervo referente aos médicos Lund, Burmeister e Basílio Furtado.   A resposta que nos deram foi que a Luzia sem dúvida era não só mineira, mas a primeira mineira conhecida - contudo, para resguardo de uma peça de tão alta preciosidade, seria difícil encontrar em Minas a segurança como a oferecida pelo Museu Nacional.
Essa mesma malandra irresponsabilidade encontra-se por todos os museus do Brasil, misturando mau-caráter, carreirismo, oportunismo, impunidade, cafajestagem e incompetência. Os museus de Londres, Paris, Nova Iorque, Berlim, México, Vaticano e outros parecem estar higienizados de tal fauna.  Tudo o que aconteceu, no dia 2-9-2018, no Museu Nacional, foi anunciado em outros incêndios de museus brasileiros, principalmente o ocorrido em 15-5-2010, no Instituto Butantã. Nessa ocasião, usei pesadas palavras contra os que se deviam responsabilizar pelo instituto, mostrando que aquilo era apenas a culminância dos desapreços de toda a ordem, sofridos por seu criador o sulmineiro Vital Brazil.
Luzia e Vital Brazil são vítimas mineiras do desleixo, da incúria, do desmazelo, do descaso, da omissão, da negligência e da desídia brasileira.



terça-feira, 14 de agosto de 2018


AS AGUAS-MARINHAS DA RAINHA ELISABETE


Quando fui fazer conferência na faculdade da USP de Ribeirão Preto, em 1979, tive a alegria de ali encontrar meu colega de turma Armando Gil de Almeida Neves. Astro da bioquímica da escola de Baeta Viana, ele examinava uma tese na mesma faculdade.  Ele então me propôs dispensar o carro que me levaria de volta. Era para eu voltar em seu avião. Perguntei: você conhece bem o piloto?, ele pilota bem? E ele: conheço até demais, porque o piloto será um tal de Armando Gil... Como se percebe ele integrou o grupo de colegas ricos que fingiam ser pobre. Sendo neto, é herdeiro do coronel pessedista Manuel de Almeida - o senhor das pedras azuis (águas-marinhas) -, responsável pelo nome de Pedra Azul dado à cidade de seu latifúndio, pleno de gemas. Ao Manuel coube o privilégio de lançar a candidatura Kubitschek a governador. Também foi ele quem dera um conjunto seleto de pedras de sua lavra a Getúlio Vargas. Ao saber disso, Assis Chateaubriand lhe encomendou um punhado de mesma pureza e beleza, de que fez um colar presenteado a Elisabete II. Pediu para escolher sem se preocupar com o preço e Manuel disse que seria grátis como o presente a Getúlio. Juscelino soube que a rainha admirava ciumentamente aquele regalo. Encomendou então uma tiara e Manuel também nada cobrou Com essas deslumbrantes jóias, a rainha aparece ainda hoje nas ocasiões mais nobres.
[Essa é a verdadeira origem de tais aguas marinhas. Na internete apareceram versões inverídicas.]

sábado, 7 de julho de 2018


JOSÉ AFRÂNIO VILELA – ILUSTRE DESEMBARGADOR DESCENDENTE DE TRADICIONAL FAMÍLIA NEPOMUCENENSE ASSUME A VICE PRESIDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS
João Amílcar Salgado
            O ilustre desembargador José Afrânio Vilela, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tomou posse como vice-presidente desta corte no dia 30-6-2018. Mineiro de Ibiá, descende de tradicional família fundadora de Nepomuceno.  Diplomado em direito pela Universidade Federal de Uberlândia, fez brilhante carreira na magistratura mineira. Em sua atividade jurídica tem demonstrado amplo domínio das mais variadas áreas e admirável equilíbrio nos julgamentos mais difíceis. Para isso tem-se valido de vasta cultura geral, atributo distintivo de vários membros eminentes da família Alves Vilela. São-lhe de especial interesse os aspectos históricos de cada assunto que lhe é apresentado, quer na atividade profissional, quer na social. Nesse terreno, aproveitando sua capacidade para o pensamento crítico, exibe insaciável curiosidade pela dinâmica circunstancial dos acontecimentos, notadamente no Brasil e em Minas e mais especificamente no Oeste e no Sul de Minas. De suas vivências e de seus estudos, seus admiradores aguardam um ou mais livros que sem dúvida enriquecerão nosso patrimônio intelectual com preciosa contribuição e até surpreendentes revelações. Já que estamos vivendo período critico de nossa vida politica, inclusive com importante protagonismo de magistrados, a atuação de José Afrânio Vilela, nos pleitos a que for chamado, será benvinda e benéfica, mercê de seu perfil conciliador, sua serenidade e sua liderança nata. Em tal sentido, ele será um dos que nos apontarão um caminho sem traumas, coerente com a tradição dos mais respeitados juristas mineiros.


FERNANDO MASSOTE - O HOMEM DE LA MANCHA DO PORTO DOS MENDES

João Amílcar Salgado
        A família Massote é de Campo Belo e é ligada a Nepomuceno porque dois de seus membros viveram certo tempo em Nepomuceno: o ex-pracinha e bancário Sílvio e o dentista Aloisio. Este e o Bedeu foram os personagens desencadeadores do famoso incidente do cabo de guarda-chuva, num animado baile no Clube de Xadrez. Outro é o médico Píndaro, muito amigo, além de colega de turma e patrício, do Maurício Sarquis -  célebre porque granjeou grande clínica depois que salvou um suicida perto de onde pescava. Mais outro é o jornalista Osvaldo Neves Massote sogro de meu amigo dileto, colega de docência na medicina e escritor Carlos Alberto de Barros Santos. Por fim, e não em menor relevo, verifica-se uma ligação adicional a Nepomuceno, pelo fraterno companheiro de Aprígio de Abreu Salgado, o sanitarista Aguinaldo Massote Monteiro. Ainda mais que é esposo da professora e deputada Marta Nair Monteiro, parente próxima dos numerosos co-munícipes da família Alves Vilela.
            Já o professor Fernando Massote foi figura de importância na luta contra o golpe de 1964. Exilou-se na Bélgica, onde estudou na Universidade de Louvain, e na Itália, onde fez doutorado na Universidade de Urbino, com a tese A EXPLOSÃO SOCIAL DO SERTÃO DE CANUDOS (1981). Docente na UFMG, foi ativo participante da eleição, por voto direto e paritário, do reitor Cid Veloso. Como escritor, é autor de A HISTORIA PELA METADE (2005) e VIAGEM AO SERTÃO (2016).
Fernando foi proclamado por dois de seus amigos nepomucenenses (Luiz Fernando Maia e eu), com o título de o Homem de la Mancha do Porto dos Mendes, onde, na margem campo-belense, foi proprietário de um sítio. Essa denominação é um tributo a sua invejável pugnacidade, em vários movimentos em favor de causas sociais e contra os desmandos de qualquer natureza.


MÁRCIA (ALVES VILELA) DE SOUZA ALMEIDA

João Amílcar Salgado
        Em 2006 recebi das mãos de uma senhora, às vésperas de seus 90 anos, um livro de belo título: SEMEANDO E COLHENDO, que acabara de escrever. Na capa estava estampado seu belo rosto, quando jovem, flagrado em cativante sorriso. Comparei a foto com o rosto ali defronte e me espantei de ver como tantas décadas não foram capazes de desfazer aqueles delicados traços de beleza. Na dedicatória ela escreveu: Ao emérito cientista e cultor das artes, com o carinho e a admiração da prima, Márcia.
            Essa extraordinária Márcia fez bem em deixar registrado o que o casal de educadores Márcia-Manoel Almeida SEMEOU e COLHEU pelo Estado de Minas Gerais inteiro. Admira-me como a Márcia fulgura com desembaraço na rica galeria de mulheres da família Alves Vilela, aclamadas como queridas educadoras: Marta Nair Monteiro, Iracema Vilela Lima, Climar Vilela Paiva, Maria Aparecida Salgado, Neusa Vilela Salgado, Ana Maria Salgado, Mariinha das Dores Lima e Zélia Sacramento Lima.
            Márcia é filha da Dona Micota (Maria Olímpia), uma mâezona da velha têmpera Alves Vilela. Foi a querida dama de Boa Esperança, que ajudou o alfaiate João Rosa, a bem educar seus quase vinte filhos, sendo ambos, por isso mesmo, também notáveis educadores. Ela, exímia na culinária e na costura e ele, na alfaiataria e na música, que obtiveram de cada filho dominar o canto e também um instrumento musical, dominando ele o saxofone, embora tirasse o sustento de tantos, segundo a Márcia, pelo menor instrumento de trabalho – a agulha – a amiga silenciosa e discreta. Dona Micota era filha de Joana Alves Vilela e do poeta Modestino Moreira, sendo Joana filha de Modesto Vilela e de Laura Alves Vilela  (ou seja, curiosamente, a filha do Modesto matrimoniou-se com o Modestino).
            Perguntei ao Carlos Netto, também musicista dorense, se, pelo pendor musical, havia a possibilidade de o saxofonista João Rosa ser parente do compositor Noel Rosa, que tinha parentes mineiros. Netto achou pouco provável. Mas hoje estou em busca de algo mais: o eventual parentesco entre dois Joões Rosas: o sulmineiro João Rosa e o sertanejo João Guimarães Rosa.
            A música é marca tão forte na Márcia que ela recheou seu livro com as letras e partituras das canções que ela (e eu) mais preza. A tradição musical de Boa Esperança, simbolizada em Nelson Freire, no próprio Carlos Netto  e em Afonso Figueiredo Felicori, passa necessariamente por esta família. Mas, nas páginas citadas, o que me encantou em especial é a foto saudosa de João e Micota com a filharada, que poderia ter por legenda: UMA FAMILIA SULMINEIRA TÍPICA E EXEMPLAR

segunda-feira, 14 de maio de 2018


ARNALDO ELIAN – INSIGNE PROPEDEUTA
joão amílcar salgado

            Em 1961, Arnaldo Elian integrava a equipe do professor João Galizzi, catedrático de Clínica Propedêutica Médica da então Universidade de Minas Gerais (hoje UFMG).  Sendo eu recém-chegado médico-bolsista (hoje R1), ele me convidou para ajudá-lo a converter uma fibrilação atrial recém-instalada.  Nessa época a conversão se fazia trabalhosamente, pois a monitorização era feita por registro gráfico num grande eletrocardiógrafo a válvula.  Percebendo minha admiração por sua tranquila destreza, explicou que, nos EUA, ele era o preferido do chefe para aquela tarefa. Naquele país o Arnaldo recebeu treinamento nas universidades de Georgetown e de West Virginia.
            Data daí nossa amizade e minha condição de seu eterno discípulo.  Demais, como estudioso da história da medicina, me entusiasmava estar tão próximo de quem carregava consigo as medicinas árabe e armênia.  Nestorianos, armênios, sírio-libaneses e, principalmente, abássidas cometeram a proeza de intermediar o nexo entre a tradição egipcio-sumério-helênica e a medicina renascentista. 
Sim, desde essa época me fiz genealogista  dos vínculos entre gerações de cientistas. Tanto assim que depois estimulei Luiz Savassi Rocha a documentar a aristocrática ascendência daqueles de nós que fomos aprendizes junto a Bogliolo, a qual nos faz remontar a Morgagni e a Galileu.  Fenômeno similar se encontra nos dados de Ênio Cardillo referentes a ancestrais científicos, como Lavoisier, Gay-Lussac e Liebig, aos quais nos remete Baeta Viana.                 
No caso de Elian, há outra vertente genealógica, esta norteamericana, muito honrosa para nós seus pupilos. Sendo ele discípulo e amigo de Procter Harvey, isso nos transforma em bisnetos científicos de Samuel Levine, trinetos de Paul White e tetranetos de William Osler. A pós-graduação ianque de Arnaldo Elian foi feita ao lado de outro brilhante mineiro, Adauto Barbosa Lima, que veio a ser o cardiologista da primeira cirurgia brasileira realizada com dispositivo circulatório extracorpóreo.  Mais tarde, em 1980, nos EUA, muito me emocionou estar diante do manequim revolucionário projetado pelo próprio Harvey, que simulava  qualquer quadro cardiológico, do qual, salvo engano, foram confeccionados apenas dois modelos experimentais. Ali, então, fomos convidados a testá-lo, o Antônio Dilson Fernandes e eu.  Coincidentemente,  Dilson era raro talento polivalente que Elian muito admirava, pois era fisiologista, clínico, cirurgião, músico e humorista, mas que cedo nos deixou.
Ainda em 1961 foi internada na Propedêutica  a histórica paciente Berenice, que ficou a meus cuidados, com a participação do Celso Afonso de Oliveira e do estudante Adailton de Campos Belo, sob a estreita supervisão do professor João Galizzi. Arnaldo Elian foi então solicitado a examinar e reexaminar os eletrocardiogramas dela, os quais exibiam enigmático PR curto, do qual ele sabiamente descartou origem chagásica. 
Em 1962 o Arnaldo internou, em leito aos meus cuidados, paciente que também se tornaria histórico, pois logo seria objeto de reportagens na revista O Cruzeiro e em todos os jornais,  como o primeiro paciente brasileiro a receber, com sucesso, um marcapasso cardíaco. Charles Hufnagel (primeiro no mundo em prótese de válvula aórtica), João Rezende Alves, Jesus Zerbini, Sebastião Rabelo e Arnaldo Elian estrelaram o acontecimento, acolitados por três colegas da mesma turma de 1960: Sérgio Almeida (que fez o pós-operatório), Gilberto Lino e eu.
Isto se deu no 18o Congresso Brasileiro de Cardiologia, que incluiu mais outro acontecimento histórico, desta vez político. O país vinha agitado pela renúncia, um ano antes, do presidente Jânio Quadros.  Os estudantes, liderados por Henrique Santillo (mais tarde governador de Goiás e ministro da saúde) aproveitaram o palco daquele encontro, sob holofotes nacionais e com convidados internacionais, e ocuparam o saguão da Faculdade, de modo a impedir a solene abertura na manhã seguinte. Arnaldo e Afonso Moreira (este em lágrimas) ouviram dos estudantes que, apesar de serem mestres muito queridos, não seriam atendidos. Restou a nosso Elian,  presidente do conclave, procurar a contragosto o governador Magalhães Pinto para que fizesse desocupar o local, mas o mandatário de Minas alegou que estava proibido, pelo presidente da republica João Goulart, de qualquer ação contra operários ou estudantes. Pinto sugeriu, entretanto, que apelasse ao comandante das tropas federais, insinuando que este desobedeceria a Goulart. Foi o que aconteceu.  Isso significa que, se a resposta desobediente a Jango, dada pelo comandante ao apelo desesperado de nosso Elian, tivesse sido interpretada corretamente pelos desatentos janguistas, talvez os vinte anos de ditadura tivessem sido evitados.
Desde então, bem conhecido grupo de asseclas do Elian veio sendo formado a partir de Antônio Moretzsohn, Celmo Porto, Edson Razuk e minha pessoa.  Depois vieram  Cid Veloso,  Carlos Alberto Barros Santos, Álvaro Piancastelli, Dilson Fernandes, Cláudio Sales, Antônio Cândido e outros tantos  discípulos-de-discípulos.  Além de aprendermos com  ele  medicina interna e cardiologia da melhor qualidade, a pouco fomos descobrindo seus segredos fora da medicina. Tremendo conhecedor de comida e bebida finas, freqüentador dos mais refinados restaurantes do primeiro mundo e do Brasil, poderia escrever livros sobre qualquer desses temas.  Foi, aliás, num restaurante refinado do Rio que sua semelhança crescente com o também árabe Jorge Amado (Ahmed de origem) teve momento célebre: a metade dos fãs tomou o verdadeiro Jorge por sósia e veio pedir autógrafos a nosso Arnaldo.
Outra faceta desse gentleman cumulado de mineirice foi revelada quando comandou o Colegiado de Curso Médico, em momento mais que turbulento da inovação curricular transcorrida na UFMG, entre 1975 e 85, infelizmente hoje abortada. Era então presidente do diretório estudantil o insurreto e destemido Jésus Fernandes. Nessa memorável cruzada, descobrimos então que o notável cardiologista escondia um coordenador hábil, um negociador inesgotável, enfim um Saladino redivivo em plena ditadura militar. Graças a ele, todos os ferozes adversários de então são hoje amigos sem mágoa.  Nisso ele não fazia mais que espelhar dois outros médicos-políticos de qualidades análogas, de que era fraternal amigo e conselheiro: o udenista Dario Faria Tavares e o pessedista Eduardo Levindo Coelho.
A antiga Clínica Propedêutica Médica, amenamente chefiada por João Galizzi, tornou-se legendária pelo equilíbrio entre habilidades, conhecimentos e, principalmente, atitudes - absorvidos pelos alunos no curto prazo de um ano, mas levados permanentes pela vida em fora. Galizzi, o reverenciado herdeiro da mais legítima tradição greco-latina, teve por grão-vizir Arnaldo Elian, esse insigne depositário da mais brilhante herança levantina, sem a qual não existiria a medicina ocidental moderna.


AJAX PINTO FERREIRA
Admirável perfil de médico completo
        Ajax Pinto Ferreira graduou-se em medicina pela atual Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1971.  Como estudante, foi ativista antiditadura e na formatura conseguiu, ao lado de outros líderes, impor o nome de Amílcar Viana Martins para paraninfo. Esse gosto pela política permanece até hoje, seja atuando nas relações de mando em sua cidade de Lagoa Santa (uma tradição de família), seja por seu prestígio na administração universitária, ou ainda por sua inapagável admiração ao médico-político Ernesto Guevara.  Outro atributo de sua cativante personalidade é a cultura humanística, absorvida do ambiente escolar e social de Ouro Preto e alimentada por seu costume de freqüentar os jornais diários com diatribes deliciosas, sob a forma de cartas-à-redação ou artigos ocasionais.
            No final da graduação e logo depois recebeu excelente treinamento, feito de propósito para que tivesse condições de enfrentar sozinho o interior.  Foi para Abaeté e lá se saiu muito bem, voltando para a Faculdade com o saldo de muitas e belas amizades e de invejável experiência em clínica geral de adulto e criança, cirurgia geral, obstetrícia e ortopedia.  Continua ligado a esta cidade e a Lagoa Santa, pois muita gente de seu convívio não tem nenhuma dúvida de que o Dr. Ajax é o melhor médico do mundo, além de infalível apoio em horas difíceis e preciosa referência a qualquer encaminhamento. Tudo isso coroado com saboroso modo de conversar sertanejo, que deixa logo à vontade o mais ressabiado dos interlocutores.  Assim, ele adquiriu o hábito de colecionar tipos humanos e causos de todo gênero, o que realimenta sua magia nas relações humanas.
            Seria, portanto, inevitável que tanto cabedal o lançasse nos braços acolhedores do Centro de Memória da Medicina, do qual logo se tornou um dos docentes e depois eficaz coordenador. Seu sucesso foi imediato quando, no curso de História da Medicina, relatou em aula – não como historiador, mas como protagonista e vítima - a invasão da Faculdade pelas forças da ditadura, no mesmo dia da invasão da Sorbonne, em 5 de maio de 1968. Disse que os invasores exigiram um pedido do diretor para a invasão e este o fez, mas transformou-se, ele mesmo, em vítima do próprio veneno, pois entrou em insuficiência respiratória pelo gás lacrimogêneo, que lhe chegou sob a porta da diretoria Foi levado ao 8º andar em busca de ar puro e ali ficou refém dos estudantes que ameaçaram jogá-lo pela janela. Enfim, foi resgatado por uma escada magirus e um poster do fato esteve por vários anos como troféu na entrada da Polícia Política (DOPS). Quando o Centro de Memória solicitou que viesse para seu acervo, a imagem foi irreversivelmente danificada.
            Ajax Pinto Ferreira ministrou outra aula memorável: Guevara e a medicina.  Todos ficamos admirados da profusão de dados apresentados, especialmente rara documentação sobre o assassinato do herói na Bolívia e algo totalmente desconhecido, que é sua fase de pesquisador científico no México. O Centro de Memória convidou o desenhista Alfred Kristus para figurar Ajax e Che, como velhos companheiros, e este encontro imaginário hoje é atração em nosso acervo.
            Em 1991, a professora Ceres Pinheiro defendeu tese na Universidade de Campiras intitulada DE ESTUDANTE DE MEDICINA A MÉDICO DO INTERIOR, em que são estudados 22 médicos que foram clinicar isoladamente em cidades do interior, sem a ajuda local de colegas e sem ter feito residência médica. Essa tese alcançou enorme repercussão, fazendo do ensino médico da UFMG, de 1975 a 1985, referência definitiva em pedagogia do ensino superior. A tese foi reprografada centenas de vezes, mas infelizmente não foi transformada em livro.
            Estamos preparando um estudo em que tais dados são aproveitados junto a estudos anteriores sobre a equipe mínima de três médicos, concebida, em 1968,  para alta resolubilidade em cidades que comportem mais de um médico. Também será incluída a experiência de médicos versáteis que clinicaram ao lado de colegas, mas sem atuarem em equipe, como é o caso de Ajax Pinto Ferreira. E também a experiência de médicos mais antigos que heroicamente enfrentaram o interior em variadas condições, mais que adversas. Alguns deles deixaram livros de memória, a exemplo de Pedro Nava, Manuel Campanário, Nelson Senise, Pedro Pesutti e Adami Vilela. O professor Ajax, que já provou que é bom escritor, não deixará de escrever o seu.
            A presença de um médico com o perfil de Ajax Pinto Ferreira no corpo docente de uma universidade da importância e da projeção da UFMG é estratégica para que se processe adequação do médico de vocação versátil à rápida evolução da tecnologia diagnóstica e  terapêutica.  Em discordância do que alguns apressadamente pensam,  o professor Ajax advoga o uso seletivo de novidades tecnológicas não para reforçar a especialização e a subespecialização. E sim para, inteligentemente, instrumentalizar, dar maior agilidade e abrir horizontes aos médicos que, como profissionais gerais e completos, insistem na integralidade da pessoa humana e na humanização do atendimento a suas necessidades de saúde.

O autor é professor titular de Clínica Médica  e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
           



sexta-feira, 9 de março de 2018


CASSINO DE SEVILHA NA VILA
em O RISO DOURADO DA VILA (2003)

João Amílcar Salgado
Quando o novo prédio do clube da Vila ficou pronto, foi anunciado que o baile de inauguração seria com a orquestra Cassino de Sevilha. Foi aquele alvoroço.  Gente, que nunca tinha dançado ao som de sua música, dizia maravilhas da orquestra.  Imaginavam a coisa e a descreviam como se o sonho fosse real.  As moças prometiam vestidos dignos do acontecimento.  Os cata-bailes das cidades vizinhas prometiam encher o novo salão de dança.  Correu a notícia de que o Dr. João Pereira, em reunião da diretoria, queria exigir rigorosa seleção dos frequentadores. 
            No dia marcado, a rua Direita estava dura de gente.  Os que não eram sócios se contentavam em aguardar para ouvir os números musicais do lado de fora.  Chega a hora: onze da noite. O salão já está repleto e num vozerio danado.  De repente, súbito silêncio corre o público. É o desfile dos músicos que vão chegando para ocupar seus lugares. Parece apresentação de toureiros, mas suas vestimentas são ainda mais bonitas, pois misturam a destes com os mais vistosos uniformes militares. Gala assim jamais foi vista, com tanto enfeite e tanto brilho! Completam o cortejo duas morenas andaluzas de vestido longo, com uma fenda até o meio das coxas.  Ao andar, suas pernas perfeitas se entremostram provocantemente. São duas lindas carmens que desencadeiam audível onda de suspiros na rapaziada, seguida de outra onda, esta de resmungos das mocinhas.
            Os músicos se sentam e ficam mexendo discretamente em seus instrumentos.  Ouve-se, então, leve rufo e eles se põem de pé.  É o instante em que começa aquela coisa inesquecível, ao mesmo tempo comovente e triunfal: são os acordes magníficos do Lamento Borincano, trinado na orquestração de Peres Prado.  A beleza esmagadora dos metais e violinos, se prolongam por deliciosas variações da melodia, pois, a cada vez, um naipe de instrumentos se ergue e a coisa se faz cada vez mais inebriante.
            Quando a música cessa sob a explosão de aplausos, os músicos apenas se curvam em agradecimento, pois de imediato mudam o ritmo e começa a rumba Quien Será.  É tocada num sincopado tão rebolante que o salão em peso começa a se mexer. E então as duas moças saem a dançar com dois dos rapazes da orquestra.  Depois de duas voltas de exibição, somos convidados pelos dois pares para iniciarmos o baile.  O Marcli e a Gigita são os primeiros a sair em rodopio.  E foi a primeira vez que este casal foi visto a começar um baile sem que a música fosse  Esmagando Rosas.
            Faço um esforço para recriar a seqüência das músicas desse baile:
Cachito, cachito / cachito mio /  pedazo de cielo / que Diós me dió ...;
Abrazame asi / que esta noche / yo quiero sentir /  ...;
Comprende lo que sufro yo / canto pues ya no puedo sollozar / ..
Tanto tiempo / disfrutamos de este amor / ... / pero tu lhevas tambien / sabor a mi / ...;
Que bonitos ojos tienes / debajo de esas dos ocejas / ... / malagueña salerosa / ...;
La puerta se cerró detrás de ti / y nunca más volviste a aparecer / ...;
Dicen que la distancia es el olvido / pero... / ... / hasta que tu decidas regresar /;
Usted es la culpable / de todas mis angustias / y todos mis quebrantos / ...;
No existe um momento del dia / ... / más allá de tus labios / ... / contigo a la distancia / ... ;
Bésame, bésame mucho / como si fuera esta la noche / la última vez / ..;
Noche de ronda / que triste pasas / ... / luna que se quiebra / sobre la tiniebla / ...;
Reloj no marques las horas / porque voy a enloquecer / ... / cuando amanezca otra vez / ...;
Aquellos ojos verdes / ... / de todas las dulzuras/ ... / serenos como um lago /...
Siempre que te pregunto / ... / tu siempre me respondes / quizás, quizás, quizás / ...;
Solamente una vez / amé en la vida / .. / y nada más / ...;
Quiéreme mucho / dulce amor mio / que amante siempre  / te adoraré / ...;
Ya no estás a mi lado corazón / en el alma solo tengo soledad / ...;
Atiéndeme / quiero decirte algo/ .. / escúchame / ... / yo necesito hablarte / ...;
Señor, eterno Dios / ante tu altar / hoy vengo suplicante / ...;
Yo sé que volverás / cuando amanesca / ....
Si llegó el momento ya de separarnos / en silencio el corazón dice y suspira /...;
            Depois do intervalo para descanso da orquestra, surge um cantor parecido com o Nelson Gonçalves e inicia:
Boemia / aqui me tens de regresso / e suplicante te peço/ ...;
Amor, eu me lembro ainda / que era linda, muito linda / ... / a camisola do dia /...;
Não, eu não posso lembrar que te amei / não, eu preciso esquecer que sofri / ...;
Eu sonhei que tu estavas tão linda / numa festa de raro esplendor / ...;
Dolores Sierra / vive em Barcelona na beira do cais / ...;
Fugindo da nostalgia / fui procurar alegria / na ilusão dos cabarés / ...;
Fica comigo esta noite / e não te arrependerás / ...;
Cansado de tanto amar / eu quis um dia criar / ... / uma mulher diferente / ...;
Eu amanheço pensando em ti / eu anoiteço pensando em ti / ...;
Minha vida era um palco iluminado / eu vivia vestido de dourado / ...;
Tu és divina e graciosa / estatua majestosa do amor / ...;
As estrelas tão serenas / ... / andam tontas ao luar / ...
A lua que procura diamantes / para seu lindo sonho ornamentar / ...;
Ela é tão rica e eu tão pobre / eu sou plebeu, ela é nobre / ...;
Minha linda suburbana / por trás da veneziana / vem sorrir nesta canção / ...;
Por ser do morro e moreno / é que eu soluço, é que eu peno / ...;
Boa noite, meu grande amor / contigo eu sonharei / ...


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

HISTÓRIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA UFJF
João Amílcar Salgado

Acaba de ser publicado o livro CRIAÇÃO DA FACULDADE DE MEDICINA DE JUIZ DE FORA E DA UFJF (2017), do eminente médico e professor José Carlos de Castro Barbosa. Muito nos desvanece que este livro tenha surgido por influência do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais. Quando criamos este Centro em 1977, o juiz-forano Pedro Nava comemorava cinquenta anos de formatura, ao lado de Pedro Sales, historiador maior da medicina mineira e brasileira. Da mesma turma, Juscelino Kubitschek (JK), o maior e mais democrático governante do país, não estava na festa, falecido um ano antes. Tive a honra de saudar a turma aniversariante, em nome de sua faculdade mater.  A ideia, discutida com Nava e Sales, nesse dia, não era nós mesmos nos encarregarmos da história da saúde de toda Minas, mas criar, em cada faculdade, um centro de memória e um curso de história da medicina. Foi criado o centro de memória Belisário Pena em Barbacena, em 2002, e o centro da Faculdade Federal de Juiz de Fora, em 2006. No 1º Congresso Mineiro de História da Medicina em Barbacena, em 2004, cada faculdade mineira foi convidada a expor sua própria história. Da exposição de José Carlos surgiu o livro que ora se edita.
O autor do livro guarda comigo aspectos comuns. Ele foi vestibulando da turma pioneira de sua faculdade e eu o fui da primeira turma rockefelleriana da UFMG, na mesma década de 50 do século 20. Ambos fomos oradores de nossas turmas, nos tornamos professores titulares, fundamos os respectivos centros de memória e escrevemos a história de nossas faculdades e universidades. Demais somos grandes amigos e casados com duas doces Leilas. Cumpre acrescentar que a Leila Barbosa, além de fundadora do hoje Museu Murilo Mendes, é sobrinha neta do poeta municipal Belmiro Braga, enquanto eu sou filho do poeta municipal João Salgado Filho. A proximidade geográfica entre Juiz de Fora e Nepomuceno traz também um vínculo familiar, pois João Ribeiro Vilaça, o diretor-fundador da faculdade juiz-forana, pertence à mesma tradicional família Ribeiro, migrada de Entre-Rios de Minas também ao sul do Estado, da qual sou membro.
Não bastasse tudo isso, me tornei amigo de Pedro Nava e sou co-editor de livros póstumos do polígrafo Antônio da Silva Melo, além de biógrafo de Carlos Chagas. Isso me faz admirador da fase áurea da medicina de Juiz de Fora, entre os séculos 19 e 20. Sebastião Gusmão afirmou que Hermenegildo Vilaça, Eduardo Borges da Costa (casado na família Halfeld) e Afonso Pavie colocaram a cirurgia mineira na vanguarda da cirurgia moderna do país, sendo que dos três o único nascido em Minas é Vilaça. José Carlos Resende Alves biografou Hermenegildo e mostrou sua fraterna amizade ao descobridor Carlos Chagas (também componente do clã Ribeiro), em vilegiaturas de caça -  fazendo trio com João Penido, outro gigante da medicina juiz-forana. Já Eduardo de Menezes foi adjetivado de médico imperial de Juiz de Fora por seu biógrafo José Sílvio Resende.  Assim, Vilaça, Menezes, Penido, Melo e Nava representam um conjunto dourado de médicos, que se completa com a proeminência do poeta universal Murilo Mendes e do genial empreendedor Francisco Batista de Oliveira (mais um Ribeiro).
Necessário se faz analisar as razões pelas quais Hermenegildo Vilaça e seus companheiros não conseguiram que a cidade tivesse sua faculdade de medicina antes da inauguração de Belo Horizonte e até mesmo antes da era JK. O livro de José Carlos Barbosa dá o primeiro passo nessa direção.  De fato, houve claro impedimento para que o esplêndido desenvolvimento de Juiz de Fora fosse levado a suas últimas consequências. Há várias indicações de que esta cidade e região se rivalizariam pari-passu com o boom paulista. O progressismo juiz-forano, contudo, ocorreu logo após um movimento separatista do sul de Minas. Isso causou dois efeitos. Os paulistas temeram que um sul de Minas que abrangesse Juiz de Fora seria contrário a suas pretensões hegemônicas. Por outro lado, os separatistas do sul queriam que a capital do novo Estado fosse a cidade de Campanha e procuraram descaracterizar Juiz de Fora como abrangida pelo sul. Tudo isso com ingerências ferroviárias e eclesiásticas. Assim, a separação do verdadeiro sul de Minas, entre Sul e Mata, cedo prejudicou não só o próprio Sul, como a própria Mata, e prejudicou mais especificamente Juiz de Fora.
Esse absurdo poderia ter sido revertido já no governo Vargas, pelo medo que este tinha do poderio paulista. Benedito Valadares, entretanto, se curvou aos interesses cariocas. Ele teria convencido Vargas de que o melhor golpe contra São Paulo seria favorecer o Rio, em vez de Minas. Com isso, a usina de Volta Redonda, em vez de ser erguida em Minas, que tinha o minério, foi erguida, em 1941, no Rio, que não tinha minério, mas era perto dos que queriam dirigi-la. Minas passou a ceder seu minério para fazer aço em Volta Redonda de modo a impedir que o progresso de Juiz de Fora ganhasse o trunfo siderúrgico contra o progresso paulista. Mas estes tanto exigiram que a usina paulista (Cosipa) veio em 1953 - e esta só poderia produzir aço, para os paulistas, se  recebesse o minério de Minas. A primeira em Minas, a Usiminas, só nasceu, a título de consolação, em 1956. A Faculdade de Medicina de juiz de Fora, nascida já na era JK, é, portanto, irmã da primeira grande siderúrgica de Minas, ambas postergadas em detrimento de Juiz de Fora.

O primeiro dos Diogo Vasconcelos foi o primeiro historiador de Minas e foi o primeiro a afrontar Juiz de Fora. Em seu livro BREVE DESCRIÇÃO GEOGRÁFICA, FÍSICA E POLÍTICA DA CAPITANIA DE MINAS GERAIS (1801), no capítulo que enumera as pessoas célebres da capitania, censurou a menção ao médico Domingos Vidal Barbosa Lage, que proponho para patrono de sua primeira faculdade médica. Juiz de Fora detém, antes de muitas glórias, a singularidade ilustre de ter tido, entre seus fundadores, este heroico republicano, de fato um mártir, morto no exílio depois de condenado como inconfidente.