NOS 70 ANOS DA
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS, COMO
ESTÁ O DIREITO À SAÚDE?
João Amílcar Salgado
Tenho aqui
comigo um livro preciosíssimo. É o TESOURO DOS POBRES, escrito em cerca
de 1270 por Pedro Juliano Rabelo, cognominado Pedro Hispano e que chegou a papa
como João 21. Era português, médico, alquimista e filósofo. Foi o único médico mencionado
por Dante na Divina Comédia. Este sábio extraordinário julgava que a
medicina de seu tempo já dispunha de recursos consideráveis, mas que eram
disponíveis apenas para os ricos. Ele então escreve o Tesouro para que fossem
acessíveis aos pobres. 500 anos depois, vários pensadores notáveis, chamados Iluministas,
verificaram que a medicina tinha conquistado grande avanço com a anatomia, a
fisiologia e a patologia e concluíram que qualquer ser humano tinha o direito
de usufruir de tal progresso. Enquanto o Iluminismo francês era contrário aos médicos,
o Iluminismo escocês foi construído pelos médicos. Essa diferença iria
repercutir no século 20, quando os escandinavos, os britânicos e os canadenses
construíram modelares sistemas estatais de saúde.
A
efetivação de mudanças iluministas na saúde encontrou duplo obstáculo religioso
e militar. O atendimento de saúde estava limitado quer pela prática da caridade,
quer pelo interesse militar, sendo que este se fez hegemônico com os
militarismos napoleônico, prussiano e britânico do século 19. Em 1848
restaura-se a proposta iluminista simbolizada na frase do polonês Rudolf
Virchow: A MEDICINA É UMA CIÊNCIA SOCIAL E A POLÍTICA NÃO É OUTRA COISA DO QUE
MEDICINA EM LARGA ESCALA. A autoridade de Virchow advém do fato de que ele é o
imortal cientista iniciador de nova era da ciência médica, a patologia celular.
No
final do século 19, os EUA elaboram modelos pragmáticos capazes de proporcionar
o progresso médico acima e à frente das divergências europeias - a partir da
Faculdade de Medicina de Johns Hopkins, sob a liderança de um clínico canadense
William Osler e um cirurgião novaiorquino William Halsted. Colocaram a América na vanguarda mundial,
quando substituíram os antigos hospitais adaptados
ao ensino pelo hospital universitário, estritamente projetado para o
ensino, além de formular novo ensino médico. Infelizmente cometeram o erro de
separar o ensino médico do ensino do que chamaram equivocadamente de Saúde Pública.
Para isso criaram a Escola de Saúde Publica Johns Hopkins, separada da
Faculdade médica.
Esta separação
foi exportada pela Fundação Rockefeller ao Brasil e outros países. Aqui, como
resultado, os sanitaristas brasileiros, por serem formados de acordo com tal
modelo, só poderiam fracassar, ao tentar implantar um sistema único de saúde
(SUS), que fosse coerente com os modelos escandinavo, britânico e canadense. Curiosamente o Canadá tão próximo dos EUA
adaptou o modelo britânico a suas peculiaridades, enquanto o Brasil, tão
distante em vários aspectos, pretendeu copiar não as várias virtudes da
medicina ianque, mas precisamente seus piores defeitos.
Foi
necessário que se elegesse o primeiro presidente negro dos EUA, Barak Obama, para
que se aprovasse tímida reforma da saúde naquele país, em crise crescente desde
1970 - sendo o objetivo de seu partido, a médio prazo, adaptar o sistema
canadense à complexa realidade estadunidense. Os parâmetros de Obama foram exatamente
a Declaração dos Direitos Humanos aplicados à saúde. Esta Declaração foi
estabelecida em 1948 pela ONU, de acordo com as referidas propostas de João 21,
do século 13, e dos Iluministas, do século 18. Como sucessor de Obama, surge a
figura sinistra do Trump, que defende exatamente o oposto, ou seja, a medicina
tem de servir ao lucro e não à saúde.
O autor
é professor titular de Clínica Médica da UFMG e criador do Centro de Memória da
Medicina de Minas Gerais