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NA INTERNETE, A
FILOSOFIA FICOU POPULAR
Diante disso, relembro aqui meu vestibular de filosofia.
A inscrição para a Ufmg ainda era no edificio Acaiaca. Meu colega de república
estava saindo para se inscrever em engenharia e um outro falou que, se eu
também fosse me inscrever, passaria em primeiro lugar. Eu disse que
aproveitaria a ideia para me inscrever não em engenharia, mas em filosofia - e
que, nesse sim, eu passaria em primeiro
lugar. E passei em primeiro. Era um desejo de desde quando fui aluno do Artur
Veloso no colégio estadual. E na banca da prova oral quem estava lá? O Veloso. Fui agüido também pelo Morse Belém
e pelo Eduardo Frieiro. O professor Luiz Andrés me processou na congregação da
medicina, com a alegação de que minha frequencia na filosofia violava minha
dedicação exclusiva. Quem deu parecer sobre isso foi Wilson Beraldo, que
considerou, ao contrário, digna dos maiores elogios aquela minha atividade.
Exemplos de contribuição, entre outras,
de minha formação filosófica à minha produção na área médica são o
estudo da cooperação versus competição, referente
à EQUIPE-MÍNIMA, e o estudo histórico da medicina, que resultou
no CENTRO DE MEMÓRIA da medicina, em Minas, com a consequente disseminação do
ensino da história da medicina pelo país.
Em 1962, estudar filosofia era escalafobético, termo da época.
Surpreende hoje a fauna que se jacta de autoridade em filosofia, pelas redes de
comunicação, entre a qual astrólogos, blogueiros e comediantes. Quando estudei,
fiz o levantamento de filósofos brasileiros. Nessa busca topei a frase de
Giovanni Papini: não há mais filósofos, todos foram mortos pelos professores de
filosofia. Os que encontrei eram padres: Leonel Franca, William Silva, Orlando Vilela
e Henrique Lima Vaz. Não-padres, apenas dois, mesmo assim católicos: Artur
Veloso e Mário Santos. Este, sentindo-se no fim, pediu que o pusessem de pé,
rezou o pai-nosso e faleceu. Suas traduções de Nietzsche são paradoxais. Já
Leonel fazia parte de minha biblioteca paterna, por suas NOÇÕES DE HISTÓRIA
DA FILOSOFIA (1918), mas me são preciosas duas de suas outras obras O
PROTESTANTISMO NO BRASIL (1938) e O MÉTODO PEDAGÓGICO DOS JESUITAS
(1952). O Orlando tinha todos os sintomas de ser meu parente, ainda mais que
nasceu em Ventania (Alpinópolis), autor do ótimo UM BURRO E SUA SOMBRA
(1965). Do Henrique Vaz cito ANTROPOLOGIA FILOSOFICA (1991), que Joaquim
Carlos Salgado e eu lemos ainda mimeografada. O avô de Vaz era médico, sósia de
Pedro 2º e revelou que a filariose tinha por vetor um pernilongo. Do Veloso,
cujas aulas no Colégio Estadual eram um refrigério na azáfama do vestibular e
assim me atraíram para a filosofia, cito A FILOSOFIA E SEU ESTUDO (1947)
e VIDA DE KANT (1956). Na primeira aula, quando citou Parmênides: o
ser é e o não-ser não é me causou misto de alegria e ciúme, pois
fui Parmênides, quando, no primeiro dia de escola primária, a Ìracema Lima me
testou: quem não é gordo é ... e respondi não é - e
ela me reprovou. Todos, menos Franca e Santos, foram meus professores. Na Vila,
quatro filósofos brilham: padre João Assunção, o citado Joaquim Carlos, padre Luís
Henrique Eloi e Guilherme Carvalho.
Nesta lembrança, devem ser incluídos o helenista Silvio Barata Vianna,
autor de O IDEALISMO EM PARMÊNIDES DE ELEIA (1973) e ENSAIOS DE
HISTORIA DA FILOSOFIA (1990)), o poeta e esteta Moacir Laterza, autor de CANTO
QUE AMANHECE (1955) e ROTEIRO ESTÉTICO DAS MINAS ENGANOSAS (2002) e
o notável latinista e devoto da música erudita Flávio Neves, autor de BACH,
BEETHOVEN E WAGNER (sd) e RESCALDO DE SAUDADES (1986)). O Sílvio
parecia ser o único que cotejava os conceitos filosóficos com as palavras
originais em grego e, na minha turma, ficou surpreso comigo e com o Luiz
Gonzaga de Carvalho, porque também éramos adeptos deste esporte - e em grego e
latim. De minha parte, fiquei surpreso de saber que ele não lia inglês. Numa
aula citei Bertrand Russel e ele indagou onde eu lera aquilo e respondi: no
livro A
HISTORY OF WESTERN PHILOSOPHY (1946). Ele, com certa inveja,
sorriu: então você lê filosofia em inglês? Ali os docentes mais
eruditos se limitavam a ler em francês. Exceção era um comparsa e amigo, o
filosofo bertrandista e matemático José Maria Pompeu Mémória. Um primo de
Bertrand Russel teria vindo para o Brasil e seu avô se desentendeu com Pedro
2º. Desse nosso grupo
participava a Soninha (Sônia Viegas), pioneira aqui como mulher filósofa.
O Laterza, juntamente com outros docentes e estudantes, parecia sempre
temeroso de ser preso, a qualquer momento, pela ditadura. Discordei de seu
existencialismo, mas logo nos tornamos amigos e se manifestou honrado de ter
sido meu mestre. Já o Flávio, quase foi colega de internato de meu pai no
colégio de São João del Rei e ambos quase foram ali colegas de Guimarães Rosa. Era
tio de meu querido colega de turma Armando Gil e encabeçava um grupo de médicos
aliciados pelo Baeta Viana, para ouvintes coletivos de Bach, Mozart, Beethoven
e Wagner. O Flávio passou a fazer em latim as atas dos encontros, aos quais
chamou de melofilia hipocrática. Nelas traduzia até nomes próprios, por exemplo
Clovis Salgado era Clodoveus Salsus e José Feldman era Josephus Agrigenta.
Outros melófilos eram o Galizzi, o Greco, o Nassim, o Santoro, adjuntos, assistentes,
estagiários e fâs. Flávio se
indignou quando, em Diamantina, ficou sabendo que um vereador havia proposto a
mudança do nome antigo de um beco, para bajular um figurão da cidade. Escreveu em latim uma carta de protesto
dirigida à câmara. O nome do beco era (ou é) Quebra-Bunda, que em latim
ficou mais elegante como “Cunem Frangentis”. Jà em Salvador, a ladeira
da rua Arlindo Fragoso, que faz a ligação entre a Rua do Sangradouro e os
Galés, foi batizada de Quebra Bunda. E
há também o morro do Quebra Cu na ilha baiana de Boipeba. Por fim, em Pitangui,
há o córrego Rala Cu.