João Amílcar Salgado

domingo, 16 de dezembro de 2012


JUSCELINO KUBITSCHEK E OSCAR NIEMEYER

Tropecei em seus calcanhares

João Amílcar Salgado
   Eu estava em meus 16 anos de idade quando conheci Belo Horizonte e vi de perto o Palácio da Liberdade.  O governador que dali governava Minas era o Juscelino (JK) e nem dele me lembrei naquele momento, pois  me interessou mais contemplar aquela majestosa e agradável praça. No ano seguinte (1954), ingressei no Colégio Estadual e ali cursei o final do curso colegial, enquanto JK cursava o final de seu governo. Esta dupla circunstância fez com que o encontrasse concretamente em meu caminho. 
       Os estrategistas que o queriam na presidência da república, decidiram que, na arrancada de sua campanha, seria ótimo que fosse anunciado como paraninfo da formatura do Colégio Estadual, exatamente naquele ano em que este completava cem anos.  O diretor do Colégio era o poeta Heli Menegale e nos reuniu para propor o paraninfo. Discordamos, pois já havíamos escolhido a Beatriz Alvarenga, nossa jovem e bela professora de física. Ele contrapropôs JK paraninfo e Beatriz uma espécie de co-paraninfa.  Não aceitamos e JK, ao seu estilo, mandou dizer que, se fosse paraninfo, ele brindaria o centenário do Colégio com novo prédio e o autor do projeto arquitetônico seria nada menos que Oscar Niemeyer.  Além disso o baile de formatura seria de gala, de padrão universitário, ou seja, no Cassino da Pampulha, também obra de Niemeyer.
          Não houve acordo e JK foi imposto paraninfo. Em conseqüência, JK não compareceu nem à solenidade nem ao baile, talvez temeroso de vaia, e a Beatriz foi homenageada numa solenidade paralela na churrascaria Camponesa. Nós também homenageamos o Gil Lemos, nosso professor de desenho e irmão da Sara Kubitschek, como uma espécie de co-paraninfo paralelo.  Eu, que vinha sendo orador em minhas formaturas, soube que o orador seria imposto também: alguém que não hostilizasse JK. Deduzimos que seria o Sérgio Vasconcelos, parente da Sara.  Tal dedução não foi confirmada por Lemos e o orador de fato foi o José Guilherme Vilela, mais tarde tragicamente assassinado.  Curiosamente, a Sara, o Gil, o Sérgio, o Zé Guilherme e eu,  todos éramos Vilelas.  
           De tudo isso acaricio o renitente pensamento de que sou co-responsável por uma das obras de Niemeyer: o prédio central do Colégio Estadual, impropriamente denominado Milton Campos.  Por sinal, quando ali entrou a primeira turma a inaugurá-lo, nela se incluía ninguém menos que meu irmão, o hoje engenheiro Antônio Lívio Salgado (cujo casamento, aliás, se fez justamente na igrejinha da Pampulha). De tempos em tempos lhe perguntava se o novo colégio o estava agradando e ele afinal me interpelou: por que tanto interesse nesse prédio? Respondi: é minha preocupação paternal com essa obra, que de certa maneira é minha também. 
                Em meu livro de memórias, O RISO DOURADO DA VILA, 2003, descrevo como prossegui na trincheira oposicionista a JK, inclusive como orador de minha turma em medicina. Só depois de ter-me transformado em historiador é que revi esse posicionamento, por influência de Paulo Pinheiro Chagas e de Pedro Nava. Relembro ali, a propósito, que, em 1958, o Diretório Acadêmico tinha feito o enterro simbólico de JK, gesto do qual eu fora um dos líderes, e então, ao ler as memórias de Pinheiro Chagas, concluí que erramos, pois aquela sátira equivalia a querer tirar de cena o maior dos democratas brasileiros.
           Minha percepção da figura de Oscar Niemeyer sofreu mudança semelhante. Antes associada à citada contenda da formatura, acabei sabendo da proibição pelo bispo dom Cabral ao culto na igrejinha da Pampulha, sua obra de 1945. Diante desta data, me dei conta de que Niemeyer tinha algo notável em comum com meu avô, pois este sofreu proibição análoga exatamente um ano depois.  Meu avô, João de Abreu Salgado, foi o primeiro biógrafo do Padre Vítor, o sacerdote negro do sul de Minas, cujos devotos lutam por sua canonização.  Acontece que a biografia, publicada em 1946, em Três Pontas, foi desautorizada pela mesma orientação eclesiástica que impugnara a igrejinha.  Se esta foi condenada sob a alegação de que os autores, Niemeyer, Portinari e Burle Marx, eram comunistas, o livro de meu avô foi anatematizado sob a alegação de que o biógrafo era espírita, mesmo que nada de espiritismo haja no texto, ora em reedição.  
            Minha admiração por Niemeyer vem do mesmo sentimento que domina a maioria das pessoas diante de sua arquitetura, mas implica algo adicional, em função do que aconteceu a meu avô.  Daí que passei a concentrar minha atenção estética em suas obras relacionadas à religião e à educação. É fácil entender a emoção com que entrei pela primeira vez na igrejinha da Pampulha e depois na universidade e na catedral de Brasília.  Hoje considero obras-primas de Niemeyer a universidade e a mesquita de Argel.  Nada mais grandioso para esse artista ateu do que exibir, como produtos máximos de seu talento, catedrais e mesquitas.  Em verdade, é, ao mesmo tempo, uma lição esmagadora de sublime tolerância e uma santa bofetada em quem nos proibiu de rezar em sua adorável igrejinha e nos proibiu de ler o livrinho de meu avô.
             O comunista Niemeyer foi coroinha e estudou em colégio de padre. Em Minas deu seqüência à obra de Aleijadinho com a igrejinha da Pampulha, prenúncio de seus templos espetaculares. Outra relação de Niemeyer com o Deus de sua juventude foi descoberta pelo ateu Eduardo Galeano quando disse: “É sabido que Oscar Niemeyer odeia o capitalismo e odeia o ângulo reto. Contra o ângulo reto, que ofende o espaço, ele tem feito uma arquitetura leve como as nuvens, livre, sensual, que é muito parecida com a paisagem das montanhas do Rio de Janeiro. São montanhas que parecem corpos de mulheres deitadas, desenhadas por Deus no dia em que Deus pensou que era Niemeyer”.



 


IVO PITANGUY
A mais requintada expressão da medicina mineira
 
João Amílcar Salgado
         Era julho de 1946, eu estava no 3º ano de primeiras letras e acompanhava a animação em minha casa por causa da formatura naquele final de ano de meu tio, Aprígio de Abreu Salgado (saneador da malária sulmineira, sem o que não haveria Furnas), que morava conosco. Na casa em frente residia a dona Sinhaninha, prima de minha mãe, e ali estavam dois outros formandos: o filho dela, Adauto Barbosa Lima (cardiologista de nossa primeira circulação extracorpórea), e o primo deste, Oscar Resende Lima (proeminente docente de psiquiatria da USP). E na cidade havia um quarto formando, filho de grande amigo de meu pai: Alberto Sarquis (admirável médico integral). Aquela cidadezinha, Nepomuceno, que raramente formava um médico, naquele ano formava nada menos do que quatro e numa das mais brilhantes turmas da Universidade. Lembro-me bem que o Adauto e o Oscarzinho orientavam o Aprígio e o Alberto  sobre a casimira que deviam vestir na festa.
          Em meus verdes nove anos, mal sabia que conviveria longamente com outros formandos daquele ano, em minha carreira docente na mesma Faculdade que os graduou. E mal sabia eu que estaria aqui hoje a saudar o astro insigne dessa turma de estrelas, o scollar Ivo Helcius Jardim de Campos Pitanguy.   Por este nome, que é um verso alexandrino, percebe-se que seus pais, o cirurgião Antônio Campos Pitanguy e a beletrista Maria Stael Jardim, eram poetas, e com poesia profetizaram a especialidade do filho, eis que a cirurgia plástica nada mais é que o ramo da medicina mais próximo da expressão estética.
          A medicina mineira tem bela história a dizer ao mundo. Esta afirmação eu a fiz nos 90 anos de nossa Faculdade Máter e a repeti em seu centenário, no ano passado. Não cabem aqui as páginas que listem as impressionantes primazias mineiras. Basta dizer que são mineiras as maiores contribuições brasileiras à ciência: a descoberta da doença de Chagas por Carlos Chagas e a da bradicinina por Wilson Beraldo, além de serem egressos desta mesmíssima Faculdade o maior presidente brasileiro: Juscelino Kubitschek, o maior memorialista lusófono: Pedro Nava,  e o mais original prosador do idioma: Guimarães Rosa. 
Cabe, contudo, acrescentar que Baeta Viana, paraninfo dessa formidável turma de 1946, se coloca ao lado desses cinco gigantes, não por alguma descoberta científica, mas por ter descoberto um conjunto harmonioso de cientistas pré-clínicos, um deles Beraldo, e outro conjunto, não menos esmerado e influente, de clínicos cientistas e cirurgiões cientistas, um destes, Ivo Pitanguy.
        E o apostolado científico desse paraninfo fez dele um engajado político, pois em 1946 ele era apontado como uma das alavancas que fendilharam a sólida ditadura Vargas. Então essa turma está na história do Brasil como aquela que celebrando a ciência em Viana, celebrou nele a democracia, que ele pregou irmã daquela. E mais, é a turma que, na memória deste país, realizou algo inédito: teve a audácia de, homenageando o herói Eduardo Gomes, projetá-lo como candidato à presidência da República.
Minas está bem presente na personalidade do maior cirurgião plástico do mundo. Sim, Ivo Pitanguy deve ser considerado uma das personalidades simbólicas do fenômeno antropológico muitas vezes chamado de “jeito mineiro de ser”.  Se seu jeito é este, impõe-se perguntar: que menino e que adolescente foi ele?
       De acordo com a tradição, infelizmente abandonada, na turma de 1946, cada formando foi retratado em soneto jocoso, assinado por autor incógnito, sendo Ivo Pitanguy assim descrito: Esse rapaz tem vocação “cortante” / Seu destino é pegar... no bisturi / Tem esse nome lírico e cantante: / Hélcio Jardim de Campos Pitanguy // O seu “campo” de estudo é a Anatomia / O seu esporte: tênis, natação / E encerra a vida nessa trilogia: / Uma raquete, um bisturi, um calção. // ... ... ... // 
      Em verdade, no humor do texto está resumida a admiração que causava. Trazendo, nos sobrenomes Jardim e Campos, heráldicas raízes coloniais mineiras, o estudante Ivo, filho de estimada família da Capital, fez parte da juventude dourada dos anos dourados belorizontinos. Este ambiente hoje é bem conhecido graças ao sucesso do livro O ENCONTRO MARCADO, de Fernando Sabino, de 1956, sendo que Hélio Pellegrino, um dos protagonistas, foi contemporâneo (turma de 1947) de Ivo na Faculdade. 
     Desse já tão alto promontório despontou a vocação irresistível de Ivo Pitanguy para conciliar o tradicional e o moderno. De imediato, impressionou seus colegas universitários, afeitos ao francês do Testut, com o acréscimo do inglês e assim alargou o alcance de sua formação humanística, trazida de berço.  Igualmente, aos hábitos ancestrais das famílias mineiras ajuntou o culto ao esporte, abrangendo da natação ao tênis e à luta marcial. Acrescente-se depois sua desenvoltura internacional, em estágios nos melhores centros médicos dos EUA, da Inglaterra e da França e decorrentemente como conferencista em congressos e como formador de centenas de especialistas oriundos de dezenas de países.   Tudo isso alicerçou o estilo original e perfeccionista que imprimiu à especialidade que escolheu, tornando-se figura singular e inigualável no panteão mundial da cirurgia plástica. 
     No Rio, onde cursou o sexto ano de sua graduação, foi-lhe oportuno fazer profuso atendimento a pequenos e grandes traumas em pronto-socorro. Isso lhe deu a inspiração para organizar inéditos e modelares serviços, na 38ª  Enfermaria da Santa Casa e em atendimento privado. De tais realizações, sua liderança e seu carisma extraíram novo pioneirismo, desta vez em pedagogia: criou, em 1960, a primeira pós-graduação cirúrgica formal no Brasil, pela Pontifícia Universidade Católica carioca. 
       Além de cirurgião plástico, com numerosos discípulos, clientes e admiradores, multiplicados pelo Brasil e pelo mundo, entre os quais várias celebridades, foi inevitável que se tornasse autor de livros científicos e literários, alguns em co-autoria. Escreveu MAMAPLASTIAS (1976), CIRURGIA ESTÉTICA DA CABEÇA E CORPO (1981, em inglês, prêmio de melhor obra científica do ano, na Feira Internacional do Livro de Frankfurt), OPERAÇÕES PLÁSTICAS DA ORELHA (1982, bilíngüe), DIREITO À BELEZA (1984, trilíngue), ANGRA DOS REIS – BAÍA DOS REIS MAGOS (1986), UM JEITO DE VER O RIO (1991), PARATII-PARATY (1992), APRENDENDO COM A VIDA (1993), ATLAS DE CIRURGIA PALPEBRAL (1994), APRENDIZ DO TEMPO (2007), CARTAS A UM JOVEM CIRURGIÃO (2008). Em 2011 o escritor e jornalista John Holzer lançou nos EUA um livro consagrador sobre Pitanguy, prefaciado por nada menos que Denton Cooley, o extraordinário implantador e transplantador de corações.
       Com a experiência e a erudição que Ivo Pitanguy acumulou, verifica-se, por seus textos, que afinal desenvolveu uma espécie de filosofia estética, na qual se percebe também inovador ingrediente ecológico. Aristóteles, Vitrúvio e Michelangelo lhe invejariam as oportunidades de ter lidado não só com os mais belos, mas com os mais defeituosos e variados corpos humanos imagináveis, em impressionante amostragem internacional, tendo como ponto de partida a esplêndida composição racial nativa. 
     Do rococó diamantinense ao multifacetado Rio de Janeiro, do trópico brasileiro ao sofisticado burburinho internacional, Ivo Pitanguy não nega e nem procura esconder sua venusta radicalidade mineira. Ao contrário, é dela a fronte e a insígnia, em entalhe e lavor ao pé da letra.
24-11-12
_________________________________________________________________________________O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais

OUTROS  INTEGRANTES DA TURMA DE 1946
Tiveram atividade docente na Faculdade: Adelmo Morais de Souza, Alberto Caram, Geraldo Guimarães da Gama, João Afonso Moreira Filho, José Geraldo Albernaz, José Pellegrino, Naeses de Araújo Couto, Tancredo Alves Furtado e Waldemar Gati. Dirigiu a Associação de Ex-Alunos: Jesus Santos. Tiveram algum grau de convivência com o autor do presente texto e são contemplados, juntamente com os sobreditos em outros de seus escritos: Armando Chiari, João Antunes de Oliveira, João Valle Maurício (orador da turma), Joaquim Afonso Moretzsohn, José Coelho de Santana, Nicolau Cardoso de Miranda e Paulo Chaves Ribeiro.


quarta-feira, 24 de outubro de 2012


O EFEITO ELEITORAL DO MENSALÃO
Analistas políticos isentos concordaram em que o julgamento do mensalão realizado em pleno processo eleitoral, causaria enorme impacto negativo ao PT. Ele sofreria, a partir desta eleição, o mesmo fenômeno de extinção que acometeu o antigo DEM e que agora ameaça os tucanos. Os tucanos surgiram como a versão ética do PMDB e agora contemplam perplexos  o aparecimento da força eleitoral do PSB como a versão ética do PSDB. O que se afigura mais interessante nestas eleições é que o  PSB promete ser mais devastador contra o PT do que o mensalão, como mostram os resultados em Belo Horizonte e em Recife e também, de certo modo, as derrotas petistas em Porto Alegre, Vitória, Porto Velho, Palmas e São Luís. Nestes lugares pelo Brasil afora, o PSOL, os verdes e o velho PDT buscam ser a versão ética do PT.
MDB
PMDB

PSDB

PSB
ANTIPARTIDO
MODELO DE DEMOCRACIA
TOMA LÁ DÁ CÁ
VERSÃO ÉTICA DO PMDB
PRIVATARIA E INVENÇÃO DO MENSALÃO
VERSÃO ÉTICA DO PSDB

PT ORIGINAL

PT ARTICULAÇÃO

VERDE
PSOL
VERSÃO RADICAL  DE ÉTICA PARTIDÁRIA
HEGEMONIA DO SINDICALISMO PAULISTA
PRETEXTO DE VIBIALIZAÇÃO  ELEITORAL (LULISMO)
MENSALÃO LEVADO AO REQUINTE
VERSÃO ÉTICA,  MAS NÃO RADICAL,  DO PT
VERSÃO ÉTICA, MAS RADICAL,  DO PT E DO VERDE


Esta é uma análise qualitativa. Quantitativamente, entretanto, o mensalão não impediu a expansão do PT. Candidatos petistas às prefeituras receberam 17,2 milhões de votos, dois milhões a mais que o PMDB e 4 milhões acima dos tucanos. O PT também ampliou consideravelmente o número de prefeituras governadas, de 550 para 624, podendo chegar a 646 no 2º turno (enquanto o PMDB perdeu 168, caindo de 1.193 para 1.025, e o PSDB perdeu 94, caindo de 787 para 693). Por fim, foi o partido que mais ganhou novos vereadores, 1.896, passando de 3.206 para 5.102, ou seja, crescimento de 59,1%, suplantando largamente o PMDB, que aumentou o número de vereadores em 18,2% e o PSDB, que cresceu 14,1%.
Diante disso, podemos concluir que o eleitorado não lê os grandes jornais e as grandes revistas e nem vê os grandes canais de tv Para entender isso temos que recorrer a uma charge que fez sucesso quando ocorreu a primeira eleição do Lula e que merece ser relembrada:


Esta charge veio acompanhada da anedota de que os diretores de conhecida revista, de conhecido jornal e de dois conhecidos canais de tv estavam reunidos numa cidade estrangeira,  para analisar a inesperada derrota que sofreram, apesar da pesada campanha que fizeram, quando chegaram à janela para ver que alarido era aquele na rua. E viram a passeata da figura.
Antes de concluirmos que o voto popular não tem o valor que se pensava, é melhor, em vez de propor a ditadura, propor a reforma eleitoral e a democratização da imprensa. A reforma e a democratização seriam comandadas por Joaquim Barbosa.

terça-feira, 11 de setembro de 2012


OS 90 ANOS DE ALZIRA RABELO VILELA DE FIGUEIREDO
De tão espontaneamente bela se esqueceu de envelhecer
João Amílcar Salgado
            O primeiro Figueiredo foi o herói astúrio-cantábrico que, armado de meio tronco de uma figueira, salvou cem donzelas germânicas quase-entregues a lúbrico califa. Custa-me acreditar em reencarnação, mas, por causa da cor dos olhos visigodos de dona Alzira, gostaria de crer ser ela a reencarnação daquela linda moça que o primeiro Figueiredo escolheu para esposa, entre as cem resgatadas.
            Todos os suaves encantos  de sua personalidade sei que herdou da mãe Clara Rabelo, muito bem conhecidos por todos, na autenticidade sulmineira de ambas.  O irmão desta, o farmacêutico Quinca Rabelo, colega universitário de meu pai em Alfenas e eterno apaixonado por minha tia Bebete (ele e ela solteiros por toda a vida), foi o cidadão mais culto de Campos Gerais de seu tempo. Ele dizia descender do primeiro Rabelo de Minas, o letrado de Ouro Preto e Pitangui José Rabelo Perdigão.  Este ex-militar e depois abastado minerador está celebrizado na história mineira, por ter documentado a tragédia da primeira fome epidêmica no país, quando a cobiça do ouro fez, de toda uma população recém-enriquecida, paradoxalmente esquecida do que comer.
            As duas linhagens citadas e mais a Garcia e a Vilela culminaram no ser harmonioso que é a dona Alzira. Seu ramo Vilela é de Serranos e decorre de Maria Garcia Vilela, esposa de José Alvares de Figueiredo, o fundador de Boa Esperança. Assim, ela, pelo pai Manoel Vilela Figueiredo, descende do casal Diogo Garcia – Júlia Maria da Caridade, esta a principal das famosas Três Ilhoas, cuja prole se estabeleceu na região de Lavras e seus distritos (Carrancas, Nepomuceno, Três Pontas, Campos Gerais, Varginha e Carmo da Cachoeira), e para aí atraíram primos derivados das outras duas açoreanas.
            Marcos Chaves Figueiredo, que é ao mesmo tempo excelente médico e notável linhagista, retribuiu a riqueza de dados a ele fornecidos pela dona Alzira, brindando-a com enorme gráfico da árvore genealógica dos Figueiredo. Trabalho exaustivo e rigoroso que vasculha essa gente ao longo dos últimos séculos, no caso chegando até a Ana Luiza, a primeira dos bisnetos da homenageada.
            Percorrendo aquelas intrincadas linhas da parentalha, a dona Alzira se entusiasmou e, perdendo a timidez usual, nos deu prova cabal do quanto ela própria era historiadora, e das melhores. Na época de eleições acirradas, mais  no plano municipal, mas também nas esferas estadual e federal, ela foi testemunha presencial  de reuniões com  figuras marcantes da política, seja em sua casa seja na de seu sogro. Para mim, ela foi a fonte mais fidedigna e equilibrada das circunstancias da rumorosa morte do irmão de sua sogra.  Ou então da rocambolesca migração dos Caiafa até Minas Gerais.
            A educadora e musicista Márcia Vilela Souza me relatou que, quando era elogiada como a moça mais bonita de Boa Esperança, respondia que, se o elogio se estendesse ao âmbito regional, ela o cederia sem inveja para a mais bela da redondeza: Alzira Rabelo de Figueiredo. Disse que todos os rapazes eram apaixonados por esta, mas o médico recém-formado Carlos Caiafa Filho a cercava de ciúmes tão possessivos que ninguém teve chance a não ser ele de se casar com ela, em memorável boda. E os muitos filhos, contados acima da dúzia, não diminuiu em nada a distintiva estampa dessa inimitável noiva.
            Caiafa Filho relatou suas memórias no livro VIDA DE MENINO ANTIGO (1986). Seu curso médico e seu casamento seriam descritos no segundo volume, que não chegou a escrever. Do que conta nesse primeiro é possível inferir o glamour e a alegria da juventude de Campos Gerais, desfrutados pela normalista Alzira naquele ditoso tempo.
            As grandes fazendas dessa esplendorosa região eram célebres, por exemplo a do Paraíso , a Ariadnópolis e a da Serra. Nesta, Alzira passou a infância e depois foi professora, em cavalgadas diárias.. Quando visitamos a magnífica edificação, para que o Carlos Amílcar e o João Vinícius a conhecessem, antes que algum malvado a demolisse, a dona Alzira reviveu ali, com muitos causos, a azáfama do dia-a-dia de antigamente.
            Para melhor encaminhar a filharada, Carlos e Alzira vieram para a Capital e aqui voltou a dar aulas, com visível satisfação e justo orgulho, por ainda aproveitar sua jamais perdida competência pedagógica. E mais mestra do que nunca ela o é no carinho igualitário por netos, bisnetos e trinetos. Teve de enfrentar o falecimento de dois filhos e do esposo e nessa sucessão de golpes atrozes é que todos nos encantamos com a estatura dessa mulher de rija têmpera, desse ser humano raro, dessa  dama mineira sem igual.
Em seus 90 anos, a dona Alzira, rodeada de tantos descendentes e amigos, merece  ser cumulada de todas as galanterias que pudermos formular, de todas as loas que pudermos entoar e de todos os louvores que pudermos tributar a uma heroína ao mesmo tempo da ternura  e da bravura..
            

segunda-feira, 10 de setembro de 2012


Brinde à cidade de Cristais
João Amílcar Salgado
       
       Cristais é onde algumas das tintas mais fortes da história de Minas e do Brasil não conseguem sobrepor-se à paisagem de incomensurável beleza. De fato, nela se demarcam tanto o passado, por acontecimentos de bravura e drama, como o presente, pelo aprazível acolhimento, humano e físico.
       Escassas notícias houve sobre esta região ao longo de dois séculos, desde o desembarque europeu no Brasil. Duas muralhas, a serra do Mar e a da Mantiqueira, serviam de barreira à penetração colonial do futuro chão de Minas. Os bandeirantes, antes de descobridores de ouro, eram caçadores de indígenas, para serem escravizados e vendidos.  Com esse mercado acumularam capital para financiar a busca do ouro. Os índios eram facilmente aprisionados ao norte do rio Paraíba, quando, acossados até o aclive da Mantiqueira, dali não logravam escapar. Até que os mais insubmissos passaram a esgueirar-se por mais de uma garganta da cordilheira. Quando os perseguidores afinal desvendaram suas trilhas, toparam do lado de cá procedimentos de guerrilha. O contingente mais  desafiador se sentia protegido ao norte do rio Grande. Os algozes enfurecidos se reforçaram de gente e de armas e cruzaram o rio mais estreito a leste.  Afinal flanquearam e sitiaram aqueles bravos no ângulo entre uma alta serra e o rio volumoso. Este beco-sem-saída deixou os perseguidos em pânico, ainda mais porque o terreno, na época, era semelhante ao atual pantanal mato-grossense. E foi assim que o magnífico panorama desse local emoldurou o impiedoso massacre da totalidade dos indígenas para aí tangidos. Ficou a lenda de que era possível sempre ouvir, na noite daquelas águas, o gemido das milhares de vítimas.
56 anos depois, se deu outro cerco e se fez outro genocídio, desta vez dos quilombolas. Estes eram ex-escravos negros que  tinham fugido de infames grilhões nas Lavras do Funil. Julgaram que aquele lindo lugar, sendo cheio de cristais mas escasso de ouro, não atrairia eventuais perseguidores. Assim aconteceu, até que houve uma decisão, não de garimpeiros, mas de tropas a serviço do governo provincial, para  exterminá-los. 
Os quilombolas sobreviventes foram banidos para bem distante, no rumo da Farinha Podre, e aquela encantadora paragem passou a ser cobiçada por posseiros, grileiros e aventureiros. Foi finalmente comprada como sesmaria por um opulento senhor, auto-apelidado de Frazão, antes enriquecido nas lavras do rio Paraopeba. Seus descendentes hoje são ilustres cidadãos da cidade, a qual, depois da usina de Furnas, não manifesta qualquer traço desse passado de conflito e dor..
E para coroar tudo isso, em meio ao mesmo antigo cenário, agora  com a sedução multiplicada pelo represamento das águas,  a cidade foi brindada com a família de um casal de médicos, que são a bênção que faltava  para fecho de tão fascinante história. Vieram morar na cidade o cirurgião Gilberto Lino Vieira e a pediatra Penha Furtado Campos Vieira. 

quarta-feira, 15 de agosto de 2012


A  ANVISA NÃO É SÉRIA
            Em 17-8-09 as farmácias, drogarias e demais casas comerciais foram proibidas de expor medicamentos à venda no lado de fora dos respectivos balcões. A justificativa era impedir a automedicação. Naquela data a ANVISA decidiu a proibição até que  a agência pudesse editar relação dos medicamentos isentos de prescrição que poderão permanecer ao alcance dos usuários para obtenção por meio de auto-serviço no estabelecimento. Esta relação somaria 2300 produtos.  
Agora, em 27-7-12, a proibição foi revogada sob a alegação de que a medida não reduziu a automedicação. Tanto a proibição como sua revogação indicam que a ANVISA não é séria.  Em primeiro lugar, porque a automedicação seria de fato combatida, desde que tal proibição fosse acompanhada de medidas adicionais, que deixaram de ser adotadas, a começar pela proibição da industrialização de medicamentos isentos de prescrição. Em segundo lugar, porque a justificativa dada para a revogação da proibição não é convincente, pois é quase certo de que a pesquisa sobre o não decréscimo da automedicação foi metodologicamente incorreta. A ANVISA alega que realizou consultas públicas e estudos para medir o impacto da medida junto ao consumidor final, e concluiu que a resolução não atingiu o objetivo de reduzir o número de intoxicações por esses tipos de medicamentos no país. Os pesquisadores sérios de farmacologia e de terapêutica  necessitam ser informados de todos os pormenores de tais números, bem como dos métodos usados. Na metodologia correta, seriam investigadas, com grande rigor, não só as  variáveis da automedicação e da intoxicação, mas a variável do lucro dos fabricantes dos medicamentos envolvidos.
A agência está tão consciente de sua insinceridade que exige, nos locais destinados aos remédios de venda livre, sejam fixados cartazes com a seguinte orientação contraditória: Medicamentos podem causar efeitos indesejáveis. Evite a automedicação: informe-se com o farmacêutico.
Esta advertência é mais do que contraditória, é cínica.

João Amílcar Salgado