João Amílcar Salgado

domingo, 16 de dezembro de 2012


JUSCELINO KUBITSCHEK E OSCAR NIEMEYER

Tropecei em seus calcanhares

João Amílcar Salgado
   Eu estava em meus 16 anos de idade quando conheci Belo Horizonte e vi de perto o Palácio da Liberdade.  O governador que dali governava Minas era o Juscelino (JK) e nem dele me lembrei naquele momento, pois  me interessou mais contemplar aquela majestosa e agradável praça. No ano seguinte (1954), ingressei no Colégio Estadual e ali cursei o final do curso colegial, enquanto JK cursava o final de seu governo. Esta dupla circunstância fez com que o encontrasse concretamente em meu caminho. 
       Os estrategistas que o queriam na presidência da república, decidiram que, na arrancada de sua campanha, seria ótimo que fosse anunciado como paraninfo da formatura do Colégio Estadual, exatamente naquele ano em que este completava cem anos.  O diretor do Colégio era o poeta Heli Menegale e nos reuniu para propor o paraninfo. Discordamos, pois já havíamos escolhido a Beatriz Alvarenga, nossa jovem e bela professora de física. Ele contrapropôs JK paraninfo e Beatriz uma espécie de co-paraninfa.  Não aceitamos e JK, ao seu estilo, mandou dizer que, se fosse paraninfo, ele brindaria o centenário do Colégio com novo prédio e o autor do projeto arquitetônico seria nada menos que Oscar Niemeyer.  Além disso o baile de formatura seria de gala, de padrão universitário, ou seja, no Cassino da Pampulha, também obra de Niemeyer.
          Não houve acordo e JK foi imposto paraninfo. Em conseqüência, JK não compareceu nem à solenidade nem ao baile, talvez temeroso de vaia, e a Beatriz foi homenageada numa solenidade paralela na churrascaria Camponesa. Nós também homenageamos o Gil Lemos, nosso professor de desenho e irmão da Sara Kubitschek, como uma espécie de co-paraninfo paralelo.  Eu, que vinha sendo orador em minhas formaturas, soube que o orador seria imposto também: alguém que não hostilizasse JK. Deduzimos que seria o Sérgio Vasconcelos, parente da Sara.  Tal dedução não foi confirmada por Lemos e o orador de fato foi o José Guilherme Vilela, mais tarde tragicamente assassinado.  Curiosamente, a Sara, o Gil, o Sérgio, o Zé Guilherme e eu,  todos éramos Vilelas.  
           De tudo isso acaricio o renitente pensamento de que sou co-responsável por uma das obras de Niemeyer: o prédio central do Colégio Estadual, impropriamente denominado Milton Campos.  Por sinal, quando ali entrou a primeira turma a inaugurá-lo, nela se incluía ninguém menos que meu irmão, o hoje engenheiro Antônio Lívio Salgado (cujo casamento, aliás, se fez justamente na igrejinha da Pampulha). De tempos em tempos lhe perguntava se o novo colégio o estava agradando e ele afinal me interpelou: por que tanto interesse nesse prédio? Respondi: é minha preocupação paternal com essa obra, que de certa maneira é minha também. 
                Em meu livro de memórias, O RISO DOURADO DA VILA, 2003, descrevo como prossegui na trincheira oposicionista a JK, inclusive como orador de minha turma em medicina. Só depois de ter-me transformado em historiador é que revi esse posicionamento, por influência de Paulo Pinheiro Chagas e de Pedro Nava. Relembro ali, a propósito, que, em 1958, o Diretório Acadêmico tinha feito o enterro simbólico de JK, gesto do qual eu fora um dos líderes, e então, ao ler as memórias de Pinheiro Chagas, concluí que erramos, pois aquela sátira equivalia a querer tirar de cena o maior dos democratas brasileiros.
           Minha percepção da figura de Oscar Niemeyer sofreu mudança semelhante. Antes associada à citada contenda da formatura, acabei sabendo da proibição pelo bispo dom Cabral ao culto na igrejinha da Pampulha, sua obra de 1945. Diante desta data, me dei conta de que Niemeyer tinha algo notável em comum com meu avô, pois este sofreu proibição análoga exatamente um ano depois.  Meu avô, João de Abreu Salgado, foi o primeiro biógrafo do Padre Vítor, o sacerdote negro do sul de Minas, cujos devotos lutam por sua canonização.  Acontece que a biografia, publicada em 1946, em Três Pontas, foi desautorizada pela mesma orientação eclesiástica que impugnara a igrejinha.  Se esta foi condenada sob a alegação de que os autores, Niemeyer, Portinari e Burle Marx, eram comunistas, o livro de meu avô foi anatematizado sob a alegação de que o biógrafo era espírita, mesmo que nada de espiritismo haja no texto, ora em reedição.  
            Minha admiração por Niemeyer vem do mesmo sentimento que domina a maioria das pessoas diante de sua arquitetura, mas implica algo adicional, em função do que aconteceu a meu avô.  Daí que passei a concentrar minha atenção estética em suas obras relacionadas à religião e à educação. É fácil entender a emoção com que entrei pela primeira vez na igrejinha da Pampulha e depois na universidade e na catedral de Brasília.  Hoje considero obras-primas de Niemeyer a universidade e a mesquita de Argel.  Nada mais grandioso para esse artista ateu do que exibir, como produtos máximos de seu talento, catedrais e mesquitas.  Em verdade, é, ao mesmo tempo, uma lição esmagadora de sublime tolerância e uma santa bofetada em quem nos proibiu de rezar em sua adorável igrejinha e nos proibiu de ler o livrinho de meu avô.
             O comunista Niemeyer foi coroinha e estudou em colégio de padre. Em Minas deu seqüência à obra de Aleijadinho com a igrejinha da Pampulha, prenúncio de seus templos espetaculares. Outra relação de Niemeyer com o Deus de sua juventude foi descoberta pelo ateu Eduardo Galeano quando disse: “É sabido que Oscar Niemeyer odeia o capitalismo e odeia o ângulo reto. Contra o ângulo reto, que ofende o espaço, ele tem feito uma arquitetura leve como as nuvens, livre, sensual, que é muito parecida com a paisagem das montanhas do Rio de Janeiro. São montanhas que parecem corpos de mulheres deitadas, desenhadas por Deus no dia em que Deus pensou que era Niemeyer”.



 

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