João Amílcar Salgado

domingo, 16 de dezembro de 2012


JOSÉ SÍLVIO RESENDE

Indizível joalheiro da arte médica

João Amílcar Salgado



      O cirurgião José Sílvio Resende (1930-2012) bem representa o modelo de médico que a Faculdade de Medicina da hoje Universidade Federal de Minas Gerais foi capaz de formar ao longo de sua história, iniciada em 1911. Nesse já longo transcurso, ocorreram os juscelinianos anos dourados, quando determinadas turmas foram graduadas justamente entre o ocaso da hegemonia franco-alemã e o advento da influência anglo-saxônica.  Sílvio Resende, da turma de 1955, é o exato protótipo daquele profissional que bebeu, sem distingui-las, ambas de tais fontes - e, nisso, pôde sedimentar o que ofereciam de mais autêntico e permanente. Está aí a origem de sua incomensurável cultura médica, construída em continuidade harmoniosa com admirável cultura geral, em que o biombo de irrevogável modéstia não consegue ocultar o historiador, o beletrista, o orador, o líder (formador de gerações de notáveis discípulos, entre eles quatro colegas meus de turma: Marcelo Ferreira, Luiz A. Luciano, Ernesto Lentz e Gilberto Lino), o músico (consangüíneo de Abel Ferreira, conviva de Goiá), o pescador e o sertanista.
       José Sílvio Resende por pouco não compôs, ao lado de André Esteves de Lima, da turma de 1952, e Edir Siqueira, seu colega de turma, um trio de mineiros a brilhar nos EUA. Dos três, apenas o Edir ficou lá, André foi e voltou e o José Sílvio não foi.  O André e o Christian Barnard (aquele do primeiro transplante de coração) foram residentes, sob a orientação de Clarence Walton Lillehy, em Minneapolis, Minnesota. Lillely é considerado o pai da cirurgia cardíaca a céu aberto. Daí que o André trouxe a moderna cirurgia cardíovascular para o Brasil e Barnard para a África do Sul.  O André, sabendo da potencialidade do Zé Sílvio, falou dele ao  Richard Overholt, que imediatamente abriu duas vagas, em seu hospital de Boston, uma para o mineiro e outra para um postulante inglês.  E o Zé Sílvio, por questões pessoais, não pôde ir. O cirurgião torácico Richard Overholt hoje é conhecido como o iniciador da guerra médica contra o tabaco, resultante de sua experiência com o tumor pulmonar. Ele ficara célebre como o primeiro a fazer uma pulmonectomia direita para tratar esse tumor, mas acabou confessando que eliminou mais tumores combatendo o tabaco do que com o bisturi. Diante de tais relacionamentos, perguntei o Zé Sílvio se chegou a conhecer o Barnard. Ele disse que sempre visita o André em Brasília e, certo dia, chegando à residência do André, este lhe disse que, se tivesse chegado um pouco antes, teria encontrado ali o Barnard.
         Cada qual dos numerosos admiradores aprecia apontar no José Sílvio Resende as qualidades preferidas, nunca uma entre várias.  Quanto a mim, me impressionam a versatilidade com que transita pelas especialidades cirúrgicas (em várias das quais abriu caminhos), o virtuosismo semiotécnico, a acrobática memória sobre pessoas e coisas, bem como o gosto pela história geral e pela história da medicina. Estamos, pois, diante de alguém que não tem o direito de nos negar suas memórias, ao estilo de Pedro Nava, ou seja, em que não faltarão o trágico e o cômico, a colorir casos médicos (inclusive de celebridades de que cuidou, entre elas o cacique Pichuvi da tribo Cinta-Larga e o político Aureliano Chaves), alternados a passagens da vida em geral, que sei próximas ao realismo fantástico.
           Uma dessas é sua ligação com o célebre padre Eustáquio van Lieshout.  Quando Resende era criança de cerca de nove anos, o padre Eustáquio, vindo de São Paulo, ficou por pouco tempo no Colégio Dom Lustosa, em Patrocínio.  Certo dia o menino Zé ficou encarregado de acompanhar o padre, que saiu a abençoar pelas fazendas e povoados de Coromandel, cidade vizinha a Patrocínio. A devoção ao padre permaneceu na região e mais tarde o próprio Zé Sílvio foi levado a participar da comunicação de um de seus milagres.  Uma fazendeira sofria ataques epilépticos e pediu uma graça a padre Eustáquio. Na  novena rezada para esse fim,  pediu que o sinal de que fora atendida seria uma rosa. Certo dia, seu filho disse que achou uma pedra e que sentiu necessidade de entregar-lhe. A mãe diz: espero uma rosa, mas não uma pedra.  A criança insiste em entregar aquele objeto e, ao fazê-lo, a pedra cai e se quebra ao chão. Na superfície interna do fragmento estava o desenho de uma rosa. O José Sílvio Resende, por ser ex-acompanhante do padre Eustáquio e por ser médico, foi chamado para atestar a cura e testemunhar a figura no fragmento. O diligente cirurgião, que não é religioso praticante, não só fez isso, mas fotografou a rosa e a encaminhou aos responsáveis pelos registros dos milagres do padre Eustáquio.
           Surpreendem as realizações em que José Sílvio Resende foi pioneiro, como a operação de Merendino para megaesôfago. Inovou-a, a seguir, com a abertura abdominal exclusiva. Foi também vanguardeiro na ressecção de traquéia, sem uso de prótese. Repetiu-a dezenas de vezes para estenose traqueal. Igualmente foi o primeiro a empregar a cavernostomia de Bernou no tratamento do micetoma pulmonar, cirurgia hoje adotada amplamente. Não contente, nos apresentou, em casos muito bem sucedidos, a timectomia para a miastenia grave. Sua colaboração com Aristóteles Brasil, na investigação do megaesôfago chagásico, e com João Resende Alves, em cirurgia experimental no cão, não pode deixar de ser ressaltada. Em tais experimentos ele desfez a hipótese de um alegado marca-passo na cárdia. Sua última contribuição científica é a copiosa e inequívoca evidência da transmissão digestiva e não respiratória da tuberculose, inclusive explicando porque esta infecção é rara em equinos e comum em bovinos.
        Tendo sido médico e amigo do outro Pedro, o Salles, eminência tutelar dos historiadores mineiros da medicina, José Sílvio Resende estava assim predestinado a trazer contribuição substantiva a nossa memória médica.  Com fatos de que ele próprio foi partícipe, já nos daria relato inestimável. Sendo, entretanto, quem é, fez mais: investiu-se de sherlockiana obsessão e desencavou verdadeira galeria de personagens até então desconhecidas ou mal-conhecidas e as cercou de documentação e testemunhos inéditos. Acervo tão rico não caberia num único livro e nos presenteia com dois: um sobre a HISTÓRIA DA PNEUMOLOGIA E DA CIRURGIA TORÁCICA EM MINAS GERAIS (2005) e outro, ainda inédito, sobre a epopéia da tisiologia no mundo e entre nós.
      O Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais é esta instituição reverenciada no país por contar, em sua equipe de estudiosos, com gente tão seleta como José Sílvio Resende. Originário de plagas diamantíferas, este coromandelense é médico raro, historiador raro e ser humano raro, em todo o planeta. Não tão raro em Minas, porque Minas prima por brindar o Brasil com gigantes como ele.

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