João Amílcar Salgado

domingo, 23 de dezembro de 2012


OSCAR NIEMEYER E WILSON ABRANTES
João Amílcar Salgado
Em 1997, a convite da inesquecível arquiteta Maria Elisa Meira, compareci à Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde participei da mesa de abertura do congresso brasileiro sobre ensino da arquitetura, no qual falaria sobre pedagogia do ensino superior. A meu lado estava Lúcio Costa, aos 95 anos, com quem cochichei dados genealógicos. Disse-lhe que, por meu lado materno, eu era, como ele, Ribeiro Lima Costa. A conversa com que combinamos prosseguir a troca de dados não foi possível. Nela, eu lhe perguntaria sobre sua saída da diretoria da Escola Nacional de Belas Artes.
Vinte anos antes, em 1976, estive hospedado na Casa do Brasil em Londres e seu diretor era colega de turma de Oscar Niemeyer. Frequentemente eu o interpelava sobre a vida estudantil do Oscar. Quando percebeu que eu conhecia o lado desabusado do homem, ele me revelou várias de suas passagens estudantis. Quando lhe contei a versão humorística de como Oscar se inspirara no mercado de Diamantina para o palácio da Alvorada, ele comentou que, pelo passado do colega, isso devia mesmo ter acontecido.  E me fez repetir o causo para outros, entre estes o sociólogo Gilberto Freire, o embaixador Roberto Campos e professores de Oxford, que riram repetidamente. 
Mas a principal pergunta que lhe fiz foi: por que Oscar Niemeyer não ficou na escola como docente? Respondeu que não sabia, mas deu a entender que aquele aluno, aos olhos severos dos dirigentes, pouco prometia como eventual docente. De fato, Niemeyer começara o curso já casado e sustentando-se como tipógrafo – tudo isso sem deixar a tendência boêmia. Vejamos as datas. Oscar se casou em 1928; no ano seguinte entrou na Escola de Belas Artes; em 30 e 31 esta é dirigida conflituosamente por Lúcio Costa; Oscar ainda aluno de 3º ano vai estagiar no ateliê de Lúcio; em 32 nasce a filha de Oscar, que é diplomado em 34. Assim, mesmo se os dirigentes conservadores lhe fossem simpáticos, a relação com o inovador Lúcio impediria seu aproveitamento docente. Em compensação, posso inferir que a docência imediata lhe teria tolhido o talento, do qual nem mesmo ele, Oscar, sabia ser dotado.
Para o estudo que faço sobre desperdício docente e sua recíproca, que é a docência clandestina, julgo oportuno anotar as seguintes evidências apuradas no caso Niemeyer: 1) a escola onde estudou perdeu uma futura celebridade como docente, 2) ainda estudante, cumpriu um currículo clandestino como estagiário não remunerado de Lúcio Costa, circunstancia que lhe despertou o talento, 3) depois de formado, as universidades de Yale (1946) e Harvard (1953) perderam a oportunidade de tê-lo como sua estrela, por odiosa e mesquinha discriminação ideológica, 4) a equipe ministerial de Capanema soube evitar os erros precedentes, pois não só o aproveitou no projeto do edifício do MEC (no qual se pós-graduaram clandestinamente vários talentos), como sugeriu seu nome a JK, para o projeto da Pampulha.  Outra coincidência favorável a Niemeyer foi a saída do médico Washington Pires do ministério. Pires, embora mineiro como Capanema e embora com veleidades de arquiteto, era catedrático da Faculdade de Medicina da hoje UFMG e estava empenhado em outros objetivos.  Ou seja, sem Capanema no ministério não seria possível o revolucionário edifício.
Passemos ao caso do notável médico Wilson Luiz Abrantes, inspirador dos conceitos de desperdício docente e docência clandestina. Wilson foi excluído da Faculdade de Medicina da hoje UFMG por razões políticas e isso consternou a maioria de professores e alunos, pois ninguém o imaginava privado da docência. Basta dizer que desde segundanista já era o melhor professor de anatomia, inclusive na opinião dos professores de anatomia. A alternativa adotada por esse docente nato foi a docência clandestina. Wilson Abrantes passou a exercer no Pronto Socorro (hoje Hospital João 23) a docência que lhe foi negada na faculdade. As demais equipes de plantonistas se pautaram pela requisitada equipe liderada por ele, de tal modo que gerações de médicos lhe devem esta pedagogia inestimável.  E isso era tão patente que a faculdade, ao fazer a notória reforma curricular de 1975, formalizou o clandestino estágio no Pronto-Socorro, timbrado como disciplina obrigatória.  E foi assim que ele retribuiu, com generosa contribuição, a injustiça de que foi vítima.
            O mas significativo é que a retribuição se deu não só no fato em si, mas como origem do CONCEITO PEDAGÓGICO  DE CURRÍCULO PARALELO OU CLANDESTINO, ou seja, aquele currículo desenvolvido extramuralmente pelo aluno, na busca desesperada para conseguir fora o treinamento que lhe é negado dentro da escola. E é notável que a concepção se inspira naquele que buscou exercer  fora o ensino que lhe foi negado dentro da escola! Em 1986 tive a oportunidade de expor a ideia e o fenômeno de currículo paralelo ou clandestino em universidades dos EUA. Um prestigioso especialista em ensino médico me aparteou dizendo que este conceito era o instrumento de análise mais interessante ouvido por ele nos últimos tempos. E eu lhe respondi que era, em grande parte, resultado de reflexões sobre tremenda injustiça cometida contra um excepcional médico de meu país.
            E isso não ficou por aí, pois tal inspiração levou a um conceito mais amplo, o de UNIVERSIDADE PARALELA.  De fato, quando meu colega Cid Veloso foi candidato a reitor, incluí em sua plataforma a proposta de criar a Universidade Paralela da UFMG, que nada mais é que trazer ao público interno e externo de nossa universidade aqueles, como Wilson Abrantes, que jamais deveriam estar fora dela.  Nisso incluiríamos uma gama enorme de gente, inclusive da cultura popular.  Infelizmente não foi possível concretizar essa ideia, cujo único remanescente é a premiação que a universidade oferece a seus egressos de admirável brilho fora de seus quadros. Além disso, temos no Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais uma miniatura de como seria a coisa, pois ali historiadores, estudiosos e interessados, não pertencentes ao corpo docente, comungam com este, sem discriminação, o grato prazer de dialogar com a juventude, alternando o papel de docente, de discente e de apenas interlocutor.
            No momento em que Oscar Niemeyer é celebrado sob múltiplos ângulos, parece-me oportuno vê-lo ao lado de Wilson Abrantes como inspiração e subsídio ao conceito de docência e aprendizagem clandestinas.

O presente texto resume dados do livro em preparo intitulado AUDÁCIAS EM SAÚDE E EM EDUCAÇÃO, a ser publicado como sequencia a O RISO DOURADO DA VILA (2003). O tema é tratado também em outro livro, a sair junto ao primeiro citado, intitulado SÍNTESE CRÍTICA DA PEDAGOGIA MÉDICA

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