João Amílcar Salgado

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012


JOSÉ MARIA PIRES
O mineiro contra-estamentário por excelência
João Amílcar Salgado















José Maria Pires é um mineiro que procura mas não consegue disfarçar seu orgulho de originário da gente do Serro do Frio. E nós, historiadores do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, não poderíamos deixar de insistir nesse vínculo, que nos é tão caro, pois outro arauto daquela mesma gente, Aurélio Pires, foi o idealizador e co-fundador da Faculdade de Medicina da hoje Universidade Federal de Minas Gerais. Diante disso, a aula que esse extraordinário sacerdote ministrou no Curso de História da Medicina desta Faculdade, no dia 14-12-12, foi um momento de justo regozijo pelo reencontro da instituição com o que há de mais significativo nos arcanos totêmicos de Minas.
            Ele foi chamado de Dom Pelé, sendo ambos (ele e Pelé) mineiros, um do norte, outro do sul. Mas seu maior título, ainda no símile futebolístico, é ter sido habilíssimo meio-esquerda em magistrais tabelinhas com o visionário centro-avante dom Hélder Câmara. Culminou tudo não só  como  herói-goleador contra o arbítrio de 64 a 84, mas como o nunca suficientemente enaltecido arcebispo emérito da Paraíba.
            Poderia ter ficado no nordeste brasileiro, nos braços do povo, mas sua alma mineira o fez retornar para junto de sua doce capelinha de Córregos, da qual cuida como se ainda fosse aquele coroinha da primeira metade do século 20, quando a região ainda era literalmente “mato-adentro”. Suas peripécias hoje são acessíveis em vídeo por meio da TV Assembléia de Minas ou por meio do livro biográfico UM PROFETA EM MOVIMENTO (O Lutador, 2011) de Mauro Passos.
            De minha parte sou estudioso da contribuição de negros mineiros na medicina, na religião, nas artes, no esporte e em todas as áreas. Meu avô, João de Abreu Salgado me colocou nessa trilha quando em 1946 se tornou o primeiro biógrafo do Padre Vítor com o livro MAGNUS SACERDOS, ora em reedição. O padre Vítor (Francisco de Paula Vítor) foi um sacerdote negro ordenado ainda na vigência da escravidão, fato que pode ser considerado seu primeiro milagre, entre os muitos que lhe são atribuídos.  Outros estudados por mim, além dos já citados, são: na medicina, Joaquim Cândido Soares de Meireles, Francisco de Paula Cândido e Camilo Maria Ferreira Armond; na religião, o bispo Silvério Gomes Pimenta e os padres milagrosos Antônio Ribeiro Pinto de Urucânia, José Pinto Carneiro de Cipotânea, e Libério Rodrigues Moreira do Pitangui; na política, o quilombola Ambrozio e Joaquim Barbosa; nas artes, Aleijadinho, os compositores Emerico Lobo de Mesquita, José Maria Xavier, Manuel Dias de Oliveira e Tito Lazarino dos Santos, bem como inúmeros jongueiros, congadeiros e sambistas, estes representados por Geraldo Pereira e Ataulfo Alves. Não devem ser omitidos os adotivos, como os médicos Eduardo de Menezes e João Cândido dos Santos e o músico Milton Nascimento, os adotados, como Zumbi, Luther King, King Cole e Mandela; ou ainda os nascidos fora, mas de origem mineira, como parece provável o genial Abdias do Nascimento.
            Darcy Ribeiro se impacientava quando alguém lhe perguntava se era parente de algum Ribeiro importante de Minas. Respondia que a gente mineira devia desapegar-se do culto ao estamento, devoção ridícula das famílias tradicionais. E encerrava a conversa, garantindo que seu Ribeiro era o mesmo daquele degredado que Cabral desembarcou na Bahia, premiado com um exílio hedonístico, o primeiro entre outros ocorridos lá atrás em 1500. Trata-se, entretanto, de tema de maior significado do que a pretensa menor-importância que Darcy lhe atribui. O verdadeiro estamento mineiro tem raízes mais sérias a partir de um historiador como Simeão Ribeiro Pires, primo de Darcy, ou a partir da militância evangélica de um José Maria Pires. Os Pires chegaram a Minas escaldados por disputas entre parentes bandeirantes e aqui, mesmo sofrendo recaídas competitivas - mais que beligerantes, se tornaram preferencialmente sábios. E nada mais próprio que um Pires que traz em seu costado o totem da etnia banto para ser um símbolo contra-estamentário de altíssimo brilho, em plena Minas Gerais.
            A aula recheada de comoventes parábolas que esse arcebispo nos ministrou fez-nos perceber que subsiste uma Minas autêntica a ser cultivada, com aquela simplicidade e aquela sinceridade, que de modo algum nega a crueldade da sociedade mineira inicial e a dramaticidade da sociedade global atual, mas que mantem patentes as sendas tributárias de um reto caminho a percorrer. Lembrou, principalmente, que o médico evangelista Lucas nos demonstrou que um mero anão pode ser transformado em gigante - dependendo da luz que persiga em sua vida e, por consequência, do homem integramente novo que passe a  hospedar dentro de si.
            O Centro de Memória da Medicina, desde sua criação, se abriu às diferentes religiões e aos reflexos de cada uma sobre a medicina. A religião e a medicina foram uma só empresa por mais de 70 mil anos e só recentemente, há 500 anos, se tornaram objetivamente independentes. Cumpre ao historiador da medicina e ao historiador da religião não cair na arrogância de ignorar tantos milhares de anos. E o diálogo sereno e saudável com um profeta de nosso tempo, José Maria Pires, nos faz cada vez mais conscientes dessa necessária origem comum.  

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