João Amílcar Salgado

sábado, 11 de julho de 2020


O SUS BRITÂNICO COMEMORA 72 ANOS E QUE NEPOMUCENO TEM COM ISSO?
            A ligação entre a Vila e o SUS britânico, modéstia à parte, sou eu mesmo. Em 1976 fui estudar o SUS britânico. O embaixador brasileiro ali era o Roberto Campos e ele era tão sabujo dos EUA que nós os estudantes o tínhamos apelidado de Bob Fields. No 7 de setembro, na embaixada, fui apresentado a ele pelo sociólogo Gilberto Freyre que lhe falou de meus estudos. Ele disse que eu devia estudar não a saúde britânica, mas a ianque, mais moderna. Discordei e o informei de que os sistemas britânico e escandinavo eram muitas vezes melhor. E que o Canadá, a Nova Zelândia, a Austrália e a África do Sul preferiram seguir os britânicos. Disse também a ele que meus estudos mostravam um saudável vinculo de todos eles com Rudolf Virchow na Alemanha, cem anos antes. E que esta não adotou plenamente as ideias virchowianas por causa do conservadorismo doentio de Bismarck. Bob sorrindo agradeceu: “gostei da aula, mas fico com a América”.
            Em 1982, o SUS brasileiro foi esboçado numa reunião de que participei com Sérgio Arouca, Cecília Donnangelo e Hésio Cordeiro. Em 1984, em reuniões de preparo da saúde e da educação para o futuro governo Tancredo Neves, propus que executivos do SUS canadense fossem trazidos para assessorar a implantação efetiva do SUS brasileiro. Cheguei a articular essa assessoria, por meio de minhas boas relações com professores canadenses. A morte do Tancredo frustrou tudo. Na constituinte, o Célio de Castro e o Arouca defenderam vários pontos fundamentais dessas propostas iniciais. Mas outros opinaram dizendo que o SUS aqui teria que surgir de concessões negociadas. De tais concessões veio o caos na saúde dos últimos anos.
O primeiro ministro Boris Johnson, antes da pandemia, defendia a substituição do SUS britânico (NHS) pelo sistema ianque, que também é um caos, segundo o documentário SICKHO de Michael Moore.  Os assessores de Johnson diziam que o SUS britânico só não tinha desmoronado porque se apoiava em imigrantes e daí bastava acabar com os imigrantes. Quando Boris, em 12-4-2020, recebeu alta da infecção que quase o matou, teve a grandeza de declarar que quem o impediu de morrer foram principalmene dois IMIGRANTES, o português Luiz Pitarma e a neozelandesa Jenny McGee (foto). E seu atendimento hospitalar foi feito no Hospital St. Thomas, do SUS  - que ele agora diz ser intocável.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019


QUATRO MÉDICOS DA FEB E A CIRURGIA CARDÍACA

Na primeira guerra mundial, o Brasil entrou não com soldados, mas com médicos. Na segunda guerra mundial, além de soldados, entrou também com médicos, entre os quais se projetaram três mineiros e um paulista. Dos mineiros, Alípio Correa Neto foi notável cirurgião e docente em São Paulo, o primeiro presidente da Associação Médica Brasileira e o primeiro a propor um sistema público de saúde para o Brasil. Outro mineiro foi Fábio Fonseca, severo crítico da indústria farmacêutica, que o retaliou folclorizando sua imagem de excelente clínico e desportista. Outro foi Amílcar Viana Martins, excepcional cientista e o maior parasitologista do país, ao lado de Samuel Pessoa. O paulista é Mansur Taufic, cuja biografia gloriosa necessita ser resgatada. Nasceu em Leme, SP, e após a guerra foi para os EUA, onde faleceu em 2005. Ele está na história do início da cirurgia cardíaca por ter criado a hipotermia, a partir da qual tudo ficou menos difícil. Sua façanha, em colaboração com John Lewis, ocorreu na Universidade de Minnesota em 1952. Ele abriu caminho para outros proeminentes brasileiros que também estão na crônica da cardiologia brasileira e mundial, entre eles os mineiros Adauto Barbosa Lima, Arnaldo Antônio Elian, André Esteves de Lima e Domingos Junqueira Moraes.
[Este é um trecho da homenagem que fiz a Arnaldo Antônio Elian na Academia Mineira de Medicina em 5-11-19]


quarta-feira, 31 de julho de 2019

DUAS FIGURAS MAIORES DA MEDICINA MINEIRA


DUAS FIGURAS MAIORES DA MEDICINA MINEIRA
            Cláudio Almeida de Oliveira e seu irmão Sérgio, foram meus companheiros como internos no colégio Marista em Varginha. O Cláudio e eu fomos ali campeões de voleibol. Nós três estudamos medicina em Belo Horizonte e, com seu irmão Zoroastro, moramos na República Remanso de Hipócrates. A seguir nos tornamos docentes. Há pouco, no Congresso Brasileiro de História da Medicina em Itajubá, expus, a convite, a História da Medicina do Sul de Minas. Ali coloquei em um pedestal a equipe de três médicos: o pai Zoroastro Oliveira e os dois filhos Cláudio e Sérgio, que reservavam um mês de cada ano para reproduzir no Brasil a saga dos Mayo nos EUA. Os Mayo eram o  pai William Mayo e seus dois filhos, William e Charles, edificadores de um dos maiores centros médicos do mundo.  Mais um trio, o dos Paulino, no Rio, fez proeza igual. Diante disso, passei a especialista em equipe mínima de médicos.  Desde a adolescência, o Claudio nada mudou: estudioso, conversador, galante e excepcionalmente atencioso com todos. Sua elegância levada à medicina, transbordava em habilidade cirúrgica. Seu conhecimento anatômico ultrapassava a ciência e lhe infundia verdadeiro prazer estético. Parecia ter pudor da cultura que acumulou pela vida afora, a qual testemunhei em conversas sem fim.
            Gilberto Madeira Peixoto foi meu aluno numa das mais brilhantes turmas de medicina da UFMG, graduada em 1964. Ele trazia consigo duas preciosas tradições coloniais, a de Minas e a da Bahia. Cultivou com brilho seu pendor nato para a oratória. Veio a ser uma das três maiores autoridades brasileiras em medicina do trabalho. Causei-lhe imensa alegria quando declarei que Minas ocupava posição invejável no país, por ter, no topo da medicina do trabalho, cinco ilustres representantes: Carlos Chagas, Antônio José Vieira de Carvalho, Carlos Martins Teixeira, Maurício Mauro Martins e Gilberto Madeira Peixoto. Para coroar tudo isso passou a cultivar cada vez mais a história de sua região e a respectiva história da medicina. Nesta condição ele tinha consciência da importância histórica de gigantes aí nascidos: Joaquim Soares Meireles (patrono médico de nossa Marinha), Sinfronio de Abreu (pioneiro anestesiologista no país), Hilário de Gouveia (iniciador da oftalmologia brasileira) e vários astros do clã Viana – dos quais contribuiu para impedir qualquer olvido.  Seus variados contributos à Academia Mineira de Medicina e ao Instituto Histórico são dívidas permanentes, seja das instituições, seja nossa, de seus pares. 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018


NOS 70 ANOS DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS,  COMO ESTÁ O DIREITO À SAÚDE?

João Amílcar Salgado


Tenho aqui comigo um livro preciosíssimo. É o TESOURO DOS POBRES, escrito em cerca de 1270 por Pedro Juliano Rabelo, cognominado Pedro Hispano e que chegou a papa como João 21. Era português, médico, alquimista e filósofo. Foi o único médico mencionado por Dante na Divina Comédia. Este sábio extraordinário julgava que a medicina de seu tempo já dispunha de recursos consideráveis, mas que eram disponíveis apenas para os ricos. Ele então escreve o Tesouro para que fossem acessíveis aos pobres. 500 anos depois, vários pensadores notáveis, chamados Iluministas, verificaram que a medicina tinha conquistado grande avanço com a anatomia, a fisiologia e a patologia e concluíram que qualquer ser humano tinha o direito de usufruir de tal progresso. Enquanto o Iluminismo francês era contrário aos médicos, o Iluminismo escocês foi construído pelos médicos. Essa diferença iria repercutir no século 20, quando os escandinavos, os britânicos e os canadenses construíram modelares sistemas estatais de saúde.
            A efetivação de mudanças iluministas na saúde encontrou duplo obstáculo religioso e militar. O atendimento de saúde estava limitado quer pela prática da caridade, quer pelo interesse militar, sendo que este se fez hegemônico com os militarismos napoleônico, prussiano e britânico do século 19. Em 1848 restaura-se a proposta iluminista simbolizada na frase do polonês Rudolf Virchow: A MEDICINA É UMA CIÊNCIA SOCIAL E A POLÍTICA NÃO É OUTRA COISA DO QUE MEDICINA EM LARGA ESCALA. A autoridade de Virchow advém do fato de que ele é o imortal cientista iniciador de nova era da ciência médica, a patologia celular.
            No final do século 19, os EUA elaboram modelos pragmáticos capazes de proporcionar o progresso médico acima e à frente das divergências europeias - a partir da Faculdade de Medicina de Johns Hopkins, sob a liderança de um clínico canadense William Osler e um cirurgião novaiorquino William Halsted.  Colocaram a América na vanguarda mundial, quando substituíram os antigos hospitais adaptados ao ensino pelo hospital universitário, estritamente projetado para o ensino, além de formular novo ensino médico. Infelizmente cometeram o erro de separar o ensino médico do ensino do que chamaram equivocadamente de Saúde Pública. Para isso criaram a Escola de Saúde Publica Johns Hopkins, separada da Faculdade médica.
Esta separação foi exportada pela Fundação Rockefeller ao Brasil e outros países. Aqui, como resultado, os sanitaristas brasileiros, por serem formados de acordo com tal modelo, só poderiam fracassar, ao tentar implantar um sistema único de saúde (SUS), que fosse coerente com os modelos escandinavo, britânico e canadense.  Curiosamente o Canadá tão próximo dos EUA adaptou o modelo britânico a suas peculiaridades, enquanto o Brasil, tão distante em vários aspectos, pretendeu copiar não as várias virtudes da medicina ianque, mas precisamente seus piores defeitos.
            Foi necessário que se elegesse o primeiro presidente negro dos EUA, Barak Obama, para que se aprovasse tímida reforma da saúde naquele país, em crise crescente desde 1970 - sendo o objetivo de seu partido, a médio prazo, adaptar o sistema canadense à complexa realidade estadunidense. Os parâmetros de Obama foram exatamente a Declaração dos Direitos Humanos aplicados à saúde. Esta Declaração foi estabelecida em 1948 pela ONU, de acordo com as referidas propostas de João 21, do século 13, e dos Iluministas, do século 18. Como sucessor de Obama, surge a figura sinistra do Trump, que defende exatamente o oposto, ou seja, a medicina tem de servir ao lucro e não à saúde.       

O autor é professor titular de Clínica Médica da UFMG e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais

terça-feira, 4 de dezembro de 2018


O PECADO DE MANIPULAR O GENOMA HUMANO – QUE NEPOMUCENO TEM A VER COM ISSO?
João Amílcar Salgado

Em 28-11-18 foi comunicado fato (a ser comprovado) destinado a ser passo revolucionário na História da Medicina. O pesquisador chinês He Jiankui anunciou duas bebês (Lulu e Nana), cujo genoma foi modificado por ele. A façanha foi vista como verdadeira ruptura na criação do homem e como impensável possibilidade de controlar a evolução das espécies. A tecnologia consiste na precisa manipulação do DNA da célula germinativa, por meio de nucleases programáveis (sistema CRISPR/Cas), capaz de corrigir ou introduzir mutações, trazendo a esperança de curas de doenças ou então o temor de inimagináveis maldades. O filho da nepomucenense Mariana Veiga, João Batista Veiga Sales, brilha na história dessa tecnologia. Nos EUA, ele colaborou com o asturiano Severo Ochoa, que, com Arthur Kornberg, recebeu o prêmio Nobel em Medicina de 1959, pela descoberta da síntese do DNA.
Em dezembro de 1969, o professor Aparício Silva de Assis realizou o primeiro transplante de órgãos, no caso o rim, em Minas, sendo o segundo do Brasil. Depois, o cirurgião me pediu para ser o co-orientador da tese, também pioneira, de meu fraternal amigo e ex-colega de república Francisco Ozeias de Carvalho, sobre a avaliação dos transplantes até então realizados. Os elogios que o mestrando recebeu foram tantos que o Aparício propôs um livro sobre ética dos transplantes e me pediu uma introdução histórica, a partir da ética da transfusão de sangue.
O Aparício vinha conversando comigo sobre isso, principalmente a propósito da publicação do Simpósio Ciba intitulado ETHICS IN MEDICAL PROGRESS: WITH SPECIAL REFERENCE TO TRANSPLANTATION, de 1966.  Ele convidou co-autores e a alguns deles assustou a abrangência corajosa do livro, com tópicos melindrosos: por exemplo, a possibilidade do comércio de órgãos, a interface com a religião ou o conflito entre especialistas. Daí que a obra ficou emperrada, mas, se fosse publicada, teria sido pioneira, mesmo fora do país. Minas Gerais, aliás, sempre teve responsabilidade histórica no trato da ética, desde a tese  ENSAIO SOBRE O ESTUDO DA VIDA,  defendida com brilho na Faculdade de Medicina de Paris, em 1837, pelo médico mulato mineiro Camilo Maria Ferreira Armond, mais conhecido como Conde de Prados. Foi um texto elaborado em momento crucial de guinada doutrinária da medicina e hoje pode ser lido em português, na tradução feita por meu distinto ex-aluno e abnegado historiador da medicina barbacenense, Paulo Maia Lopes. 
O abortamento daquele livro nos poupou de sermos transformados em bioeticistas, uma especialização que denunciei depois como espúria. Minha denúncia ocorreu depois de minha participação no Comitê de Ética da Pesquisa da UFMG e deriva das seguintes perguntas, que flagram o farisaísmo inerente a tais especialistas. Como explicar que aos hospitais, principalmente aos universitários, seja exigido rigoroso controle ético da pesquisa em sujeitos humanos, sem que igual exigência seja feita para os aspectos éticos do ensino e da atenção à saúde?  E por que o conselho nacional que trata da atenção à saúde deixa de cuidar da ética desta atenção para cuidar da ética da pesquisa? Por que o conselho nacional que trata da pesquisa não cuida da ética da pesquisa? Por que o conselho nacional que trata da educação não cuida da ética da educação? Por que as convenções sobre bioética são financiadas por corporações privadas, envolvidas no gigantesco lucro potencial da terapia genética?
O tumulto internacional causado por He Jiankui tem muito a ver com tais perguntas.


terça-feira, 27 de novembro de 2018


PASSATA E BERNARDO BERTOLUCCI

O falecimento do cineasta italiano Bernardo Bertolucci, em 26-11-18, é a oportunidade para que Nepomuceno faça uma homenagem a um de seus filhos mais carismáticos, o queridíssimo Edmilson Costa, conhecido mais como Zotinho, Zote,  Zote-do-Luiz-Barbeiro  ou Passata.  Qual é a relação entre ambos? Acontece que, quando os ex-estudantes nepomucenenses assistiram, em 1976, o filme O ÚLTIMO TANGO EM PARIS e viram o astro Marlon Brando em plena dança, não tiveram dúvidas: tratava-se de um plágio da performance de tango vivida pelo Passata, na década de 50 do século 20, no cabaré Montanhês, na Capital. Reunidos com o José Maria Ribeiro, o Antônio Baratti, o Carlos Manoel de Oliveira Lima e o Joaquim Carlos Salgado, discutimos iniciar um processo indenizatório, ideia que não prosperou. Bernardo poderia ter sabido da cena original por seus parentes de Lavras, possibilidade que não se confirmou. Talvez, na pesquisa sobre tango, os roteiristas tivessem sabido da coisa pelo maestro Castilho, que mais de uma vez trouxe sua orquestra à Vila, ou pelo musicista argentino Nievas, comparsa do Vinício Tiso. Nossa juventude ficou ainda mais confusa porque Brando era querido aqui como sósia do Luizinho Vilela Braga e do Samul e como consanguíneo de nossos Brandões. E não foi essa a única vez em que a Vila é plagiada no cinema. Quando os conterrâneos viram o astro Jack Nicholson catando risco em Nova Iorque, no filme MELHOR É IMPOSSÍVEL, houve a mesma revolta. E o Passata insistia que Marlon Brando saiu-se mal no tango e ainda deu vexame na cena da manteiga, enquanto o dele, este sim, foi verdadeiro e memorável show. De minha parte, atesto que o aplauso foi de fato unânime. Ver a cena no livro O RISO DOURADO DA VILA, breve em 2ª edição.
        

quarta-feira, 21 de novembro de 2018


NEPOMUCENO EM EVIDÊNCIA NA ACADEMIA

Um dos melhores sambas de Noel Rosa diz: “Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema / Ser estrela é bem fácil / Sair do Estácio é que é o X do problema”. Ele se aplica a Nepomuceno, que acaba de ficar em evidência na Academia Mineira de Medicina. Então, é como se nossa cidade cantasse: “Fui enaltecida na Academia / Ser assim enaltecida pode encher-me de glória / Deixar de ser a Vila-dos-Bundas-Vermelhas é que é o X do problema”. Para além da brincadeira, o lançamento, em 13-11-18, do livro NEPOMUCENO – SÍNTESE HISTÓRICA foi inesquecível festa. Um livro que conta a história de pequena, embora nobilíssima, cidade não era para atrair tantos e tão ilustres interessados. Demais, divulguei que a apresentação da obra teria por título UMA HISTÓRIA DE MINAS QUE QUASE NINGUÉM CONHECE, inspirada nos fatos que o livro revela. Estiveram presentes especialistas em nossa história que confirmaram o ineditismo ali apresentado. E bem mais que isso, o evento serviu a intenso congraçamento, que parecia longamente esperado, entre colegas, historiadores, ficcionistas, poetas, demais estudiosos, amigos e familiares. E, embutida na confraternização, ocorreu mais uma feliz VILELADA. Houve também a homenagem a João de Abreu Salgado e a João Salgado Filho, avô e pai do autor, pela qual, a cada livro sobre Nepomuceno, eram juntados de brinde os livros respectivos VIDA DO PADRE VÍTOR e OLHOS NEGROS - publicações assim também lançadas pela Academia.