João Amílcar Salgado

terça-feira, 26 de janeiro de 2021




 

O DESAGRAVO GENÔMICO AOS GENEALOGISTAS

João Amílcar Salgado

 

Os historiadores costumam-se dividir em quatro categorias: 1) os narradores, 2) os biógrafos, 3) os genealogistas e 4) os intérpretes. Estes últimos costumam desdenhar os demais, mas desprezam em particular os genealogistas, causa de atritos e mágoas. Esta verificação é de especial importância em culturas totêmicas, como em Minas Gerais, onde ignorar parentescos pode levar a vieses graves. Assim os intérpretes em Minas se acomodam considerando genealogias sem confessá-lo.

            Com o advento do método de DNA para documentar parentesco, inclusive remontando a milhares de anos, os paleontrópologos surgem como genealogistas ultracientíficos, que, para profundo despeito dos historiadores-intérpretes, estão aí para desagravar os humilhados e ofendidos. O mais pitoresco dessa reviravolta é que os intérpretes posavam de mais científicos do que os demais, por manipularem métodos tomados emprestados da sociologia, da psicologia e da economia. Ora, tais ciências são inexatas em comparação à precisão bioquímica da antropogenética. Assim, os genealogistas, escudados pelos novíssimos irmãos, se sentem tão ultracientíficos quanto estes.

Nesta contenda entram como mediadores os médicos-historiadores. É que pesquisadores em história egressos da medicina têm percorrido as quatro categorias sem qualquer preconceito. Sua desinibição decorre de provirem de território científico clássico, do qual, aliás, emergiu a genética. Por outro lado, sempre compareceram como adeptos de uma quinta categoria afim, a dos memorialistas, na qual é célebre o médico Axel Munthe e o maior entre nós é justamente o mineiro, médico e historiador da medicina Pedro Nava.  Assim tudo resultará numa conciliação geral, isenta de quaisquer esnobismos.

[TEMA APRESENTADO NO CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA MEDICINA, EM SALVADOR, 2003]

ANEXAS FOTOS DO RETRATO IMAGINÁRIO DE ADÃO POR ESTUDO DE DNA, AXEL MUNTHE E PEDRO NAVA

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

 

QUEM FOI TRUMP?

Quando vi e ouvi o Trump pela primeira vez, minha reação foi lembrar-me do Reagan. Enquanto este era sósia do nepomucenense Passata, Trump me evocou o Maluco Beleza. Errei quando o supus apenas uma figura engraçada, mas logo percebi nele algo de sinistro e ameaçador.  Bem antes, em 1986, eu estava nos EUA e, em conversa com um grande cientista, ouvi dele: Peço a você desculpas por termos esta desastrada figura do Reagan como presidente;  ele é perigosíssimo, pode acabar com a humanidade inteira; é muito mais perigoso que o Nixon. Tenho vergonha de termos eleito esses dois bandidos para presidentes. Um terceiro foi eleito em 2016.

Minha infância foi vivida em plena 2ª guerra mundial e testemunhei a torcida de meu pai pela derrota do nazismo. O italiano Ambrosio Tagliaferri dizia que nossa farmácia era o Comando Aliado da Vila, onde todos tinham notícia das batalhas. Meu pai admirava muito Franklin Roosevelt, garantindo que ele foi decisivo na derrota de Hitler. Mais tarde, os assassinatos de John (1963) e Bob Kennedy (1968) e de Luther King (1968), me mostraram a verdadeira realidade ianque. Esses acontecimentos, somados à derrota norte-americana no Vietnã (1975), ao ataque às Torres Gêmeas (2001) e à invasão do Capitólio (6-1-1921) hoje me levam a retomar os estudos históricos, que comecei, ainda na universidade, sobre o assassinato de Lincoln (1865).

Meu foco é a contradição entre, de um lado, a ideologia libertária e igualitária da DECLARAÇÃO DE INDEPENDÊNCIA DOS EUA (1776) e, de outro, a tríplice nódoa 1) da manutenção da escravidão, 2) do genocídio indígena e 3) da diplomacia do big stick contra os ibero-americanos. A melhor referência a esse persistente beco-sem-saída foi feita por um brasileiro, Monteiro Lobato, no livro O PRESIDENTE NEGRO (1926), em que prevê um negro como presidente dos EUA, profecia antecipada com Barack Obama (2009-2017). Obama, por sinal, nasceu por influência da admiração de sua mãe pelo ator brasileiro Breno Melo. Em 1980, em viagem aos EUA, procurei dados dos estudos que, em Houston, comparavam as taxas diferenciais de natalidade do país. Quase indignados, os pesquisadores responderam-me que eram estudos sigilosos.

Muitos definem o Trump como um extremista, negacionista e isolacionista, que usou muito bem a comunicação coletiva, inclusive as fake news, para o DISCURSO DO ÓDIO. Esta será uma definição imprecisa, se não for especificado o que significa esse tal de discurso do ódio. A especificação consiste em que todo extremista só será bom extremista se conseguir empurrar para o extremo oposto todas as demais pessoas. Exatamente o apelo ao ÓDIO vem a ser o instrumento adequado para assim constranger os que não participam de sua turma. Para espanto dos historiadores, esse fenômeno obrigou o trumpismo a rotular de esquerdistas e comunistas, desde o Partido Democrata, inclusive Joe Biden e Kamala Harris, os políticos social-democratas europeus, especialmente Emmanuel Macron e Angela Merkel, até os maiores magnatas do mundo, como George Soros, Bill Gates, Larry Page, Mark Zuckerberg, Jack Dorsey e Elon Musk. Nesta lista seria inevitável incluir a maior parte dos 614 bilionários dos EUA e a totalidade dos 456 bilionários da China. Aliás, alguém tem de dizer ao Trump que o atual gigantismo da China, tão temido por ele, foi ingenuamente iniciado e propiciado por Nixon e Reagan, dois presidentes conhecidos pelo fanatismo anticomunista.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

 


LEGENDAS DO UMBIGO DO MUNDO

Quando assisti pela primeira vez um episódio da série JORNADA NAS ESTRELAS (1966) fiquei entusiasmado com o teletransporte do corpo humano, no desembarque dos astronautas. O entusiasmo foi grande porque na minha infância ouvi um relato disso em nossa farmácia. O Joaquim Lucinda chegou à roda de conversa e o João Meneiz perguntou-lhe donde estava chegando. E ele respondeu: “da Amerca do Norte”. Quase em coro os outros o interpelaram: “cê foi lá de avião?” Explicou que não precisava de avião, conhecia um segredo: “ali na Serra, perto do Retiro tem uma caverna, entro lá, bate um relampo em mim, eu grito Amerca do Norte, dou um desmaio e acordo lá... Eta lugar bunito, sô! Noutro dia tive na terra dos intaliano, que é mais bunita ainda!”

Isso quer dizer que, por volta de 1950, alguém da Vila era pioneiro no teletransporte quântico. Nepomuceno teve um grande clínico, o doutor Bolivar Barbosa, que ouviu de meu pai esse caso de teletransporte. Riu bastante e falou: “o Lucinda é um mitomaníaco”. De fato, ele tinha outro comportamento estranho. Sumia das ruas e de repente aparecia alarmando todo mundo: “o Socongo acabou de batê as bota lá na Trumbuca”. A residência paroquial fica atulhada de gente e súbito chega o cônego, todo feliz, ao volante de seu renô rabo-quente... Então é outro pioneirismo da Vila: foi aqui que as “Fake News” foram inventadas.

Um terceiro pioneirismo é creditado pelo escritor Sérgio Mudado ao Zico do Miceno: foi o primeiro astronauta brasileiro e mundial. Ele sumiu e a família, muito querida de todos, engajou a Vila inteira na busca. Cinco dias depois foi achado sentado na beira do caminho que corta o alto da Serra. – “Que que aconteceu, Zico?” – “Uai, lá de casa vi que a terra encosta no céu aqui em cima e resorvi passeá no céu: vi uns anjo de longe, mas São Pedro memo, até agora, nada!”

 

[Na foto, a caverna do Lucinda]

 

[Esses causos da Vila são aperitivo para o lançamento da 2ª edição de meu livro RISO DOURADO DA VILA, depois da vacina]


 


 

INVENTOR DO SUL DE MINAS

2014

Sem estudo, aposentado 'inventor' cria sua usina de energia no Sul de Minas MG

Idoso chama atenção pela criatividade na zona rural de Cachoeira de MG.
Um dos orgulhos do morador é nunca ter pagado contas de luz.

Do G1 Sul de Minas

Um morador da zona rural de Cachoeira de Minas (MG), perto de Itajubá, que estudou até o 3º ano do Ensino Básico, chama a atenção pela criatividade. Com engenhosidade, habilidade e conhecimento de vida, Seu Guerzone, um legítimo homem do campo de olhos bem azuis e barbas longas, se orgulha do apelido de inventor. Ele criou a própria usina de energia dentro de casa e se orgulha de nunca ter precisado pagar contas de luz. Praticamente tudo que há dentro da casa do Seo Sebastião Lopes Guerzone funciona com a energia que é gerada dentro do sítio. Somente a geladeira é ligada à rede externa de energia. O sistema movido à água criado por ele, gerou energia pela primeira vez na roça na década de 1980. Mas bem antes disso, ele já havia conseguido levar iluminação para a roça, utilizando uma roda de Fusca. "Eu coloquei a luzinha e o povo ia lá e rezava, lia jornal com a luzinha, eram duas lâmpadas de 12 volts. Com isso, acabou a lamparina", se orgulha o aposentado. Um dos orgulhos do aposentado é a forma com que liga e desliga a luz a partir de uma cordinha que ele controla deitado na própria cama. Basta ele puxar a cordinha que ele desliga o sistema de luz de toda a casa. Para voltar ligar, é só puxar a cordinha novamente. A mulher do Seo Guerzone acha que ele na verdade é louco. "Eu falo que ele é louco, isso eu acho até hoje. Ele fica a noite pensando no negócio e no outro dia vai lá mexer", diz a Dona Maria das Dores Lopes. Seo Guerzone diz que tudo isso é fruto de um sonho de criança. "Quando eu tinha 10 anos e brincava de estilingue com a criançada, eu já falava que um dia eu ia casar e viria para cá para montar a minha própria usina de energia. E virou verdade. O povo fala que eu sou inventor, nem sei se sou. Eu penso e faço, e é difícil eu errar", dá o recado o aposentado.

 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

 




NEPOMUCENO 300 ANOS ATRÁS

Em 1720 - quando Minas foi delimitada - como era Nepomuceno? Em 1675 Lourenço Taques esteve próximo a Nepomuceno, quando promoveu um massacre de indígenas em Cristais. No ano anterior, Fernão Dias acampou perto daqui por causa da chuvarada de setembro a maio. Do acampamento surgiu a primeira cidade mineira, Ibituruna.  Seus homens também massacraram os índios hostis, nas margens de um ribeirão afluente do rio Grande, que foi denominado Vermelho, pelo sangue derramado.

Nas terras da futura Nepomuceno, em 1720, havia apenas nativos. Na década seguinte chegaram os negros fugidos do garimpo do Funil. A paisagem era densa Mata Atlântica, aqui e ali interrompida por congonhais, em meio ao barbatimão. Provavelmente garimpeiros vindos do Funil subiram riachos, rios e morros, à procura de ouro, por exemplo na corredeira do Rio Cervo e na Lavrinha. Ainda hoje encontram-se escavações de suas buscas.  Era intensa a lereia de enorme variedade de pássaros, incluindo a arara vermelha, papagaios, maritacas e periquitos. Peixes eram de se pegar com a mão, inclusive, decerto, a piabanha. Caça igualmente fácil incluía patos, perdizes e outras aves, além de veados, tatus, catetos e bugios. Tribos cultivavam a saúva de que comiam as tanajuras. Tubérculos e verdura eram cozidos.  A “sobremesa” era o mel de abelhas nativas e também frutas, como a goiaba, o articum, a pitanga e a gabiroba.

De tais abelhas ficou o nome Trombuca, atribuído ao rio, onde abundavam, e aos índios seus apreciadores. Silvícolas vizinhos eram denominados cambuavas, mandiboias, puris e catiguás. No alto da cidade, passa a avenida São João Nepomuceno, nome pomposo dado à antiga Estrada Boiadeira, antes trilha desses mesmos indígenas. Acabou sendo um dos ramos colaterais do Caminho Velho, que escoava o ouro das Minas a Parati. Este mesmo caminho, por sua vez, é o prolongamento pela Mantiqueira, da trilha dos guaianases, gentios de que descendemos. Em 1700 ele foi percorrido pela primeira vez por um governante, Artur de Sá e Meneses, que assim passou perto da futura Nepomuceno, onde os Meneses locais, seus consanguíneos, nos conferem distinta comenda fidalga.

O ano de 1720 inaugura Minas Gerais e nesta data começa a política de sonegar a Minas não só o oceano, mas a margem esquerda do Paraíba e o sul da Bahia. Tudo isso causado pelo medo de que, por nossa riqueza, viéssemos a ser não uma província, mas um país, como ocorreu semelhantemente no lado espanhol do continente. Mas o ano de 1720 é principalmente a data do assassínio infame do insubmisso Felipe dos Santos, em Vila Rica. Este herói foi glorificado indiretamente pelo porta-voz de seus algozes, o Conde de Assumar, quando disse a frase lapidar: Minas tem por brio ser livre; o ar que se respira aqui é o da liberdade. E disse outra: A terra evapora tumultos; a água exala motins; destilam liberdade os campos; o clima é tumba da paz e berço da rebelião.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

 



A LEGENDA DE MEU BAOBÁ

            Antoine de Saint-Exupéry, aviador e pensador francês, escreveu o livro O PEQUENO PRÍNCIPE, em 1943, em plena segunda guerra mundial. Na década seguinte, o livro fez sucesso no Brasil e foi através dele que muita gente ficou sabendo que existia uma árvore chamada baobá. Eu era bibliotecário do diretório estudantil do curso médico e tive de adquirir múltiplos exemplares do pequeno livro, que nos traz esta parábola poética e filosófica. Outro autor de sucesso então era Jorge Amado e ele nos revelou o universo afro. Neste, Jorge fez brilhar Pierre Verger, fotógrafo e etnógrafo francês, que adotou a Bahia como pátria, inclusive a religião dos orixás. Outro que adotou essa crença foi o seleto poeta e compositor Vinícius de Moraes.  

            Quando criei o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais passei a procurar um consultor em medicina afro. Encontrei o Geraldo André da Silva e perguntei-lhe que seria necessário para tal função. Ele foi direto: faça este Centro me enviar à África. Ele foi e ficou estagiando com um sacerdote da mais pura religião angolana. Quando voltava, perguntou que devia trazer para mim, como agradecimento. Fui direto: uma muda de baobá. Quando ele chegou, tremi de emoção, ao receber a muda de uns 30 cm. Era inacreditável:  mas André, é proibido entrar no avião com isso! De fato, ainda lá, foi avisado da proibição. Voltou a seu guru, que lhe arranjara a muda. Este disse: eu encantei a muda, já está encantada, pode levar ao doutor que ele a vai receber. A muda passa por um fiscal na entrada do avião, que não a vê. Viaja no colo do portador, sem que ninguém da tripulação e dos passageiros a perceba. E desce em Belo Horizonte do mesmo modo. Coloquei-a sobre o cimento de meu quintal e, quando olho, a raiz já havia penetrado o cimento. Havia crescido mais do que eu esperava. Para levar a Nepomuceno, foi necessária uma caminhonete. Mandei o motorista ajeitar a muda na carroceria e, quando chego, ele tinha esqueletizado a árvore, alegando que era para ela suportar o vento...  Pensei: agora ela está morta... Mesmo na certeza de que estava perdida, plantei-a carinhosamente. E não estava morta. Encantada, está lá, cada vez maior, sob as bençãos de meus ancestrais angolanos e do Padre Vítor. FOTOS DE PAI ANDRÉ E DO BAOBÁ NEPOMUCENENSE

sábado, 21 de novembro de 2020


 

A LEGENDA DO NEGRO CASCALHO

João Amílcar Salgado

A região que inclui as cidades de Itumirim, Lavras, Nepomuceno, Cristais, Campo Belo, Boa Esperança, Três Pontas e Campos Gerais foi palco, pouco depois de 1720, do início do mais importante fenômeno quilombola de Minas, que é a epopeia do Quilombo do Ambrósio. Negros congoleses, cabindas, angolanos e moçambicanos foram trazidos para apurar o ouro da garganta do Funil no rio Grande. Os que fugiram se aldearam em Cristais onde foram massacrados. Sobreviventes escaparam no rumo da Farinha Podre. Parte deles atravessou o rio no estreito onde hoje é o Porto dos Mendes e se aquilombaram no morro do Morembá e também nos morros da Calunga. Provavelmente após o incêndio do quilombo da Calunga os melhores guerreiros se entrincheiraram atrás das elevações da Serra das Três Pontas.  O líder deles era o negro Cascalho. Era tão hábil na guerrilha que, para derrota-lo, nada puderam os garimpeiros, corujas e faiscadores - foi necessária força governamental. O armamento dos bravos libertários sucumbiu ao maior número das armas de fogo. A orelha de cada combatente foi cortada e todas ajuntadas. Um saco de orelhas salgadas foi depositado na mesa do governador em Vila Rica. Uma delas era do negro Cascalho, cujo retrato imaginário foi desenhado pelo pluri-artista João Vinícius. Este negro é nosso primeiro herói. Deve figurar na parede principal de nossas casas. É ele que homenageamos neste dia 20/11/2020, comemorativo da consciência negra no Brasil.