NO DIA DO MÉDICO DIA 18-10-13 FOI LANÇADO O LIVRO ENSINO DA MEDICINA NO BRASIL E EM MINAS GERAIS DO CONHECIDO ESPECIALISTA EM PEDAGOGIA MÉDICA JOÃO AMÍLCAR SALGADO DA UFMG. O LIVRO ESTÁ DISPONÍVEL NAS LOJAS DA COOPMED E NA COOPMED VIRTUAL
João Amílcar Salgado
sábado, 19 de outubro de 2013
sábado, 24 de agosto de 2013
JOÃO
GALIZZI
Retilíneo
em ciência e ética; paladino da melhor relação médico-paciente
João
Amílcar Salgado
João
Galizzi, Romeu Cançado e J. B. Greco estão definitivamente na história da
medicina brasileira como líderes dos discípulos que passaram, a partir do final
da década de 30, a
aplicar na clínica médica os princípios científicos de seu mestre, o bioquímico
Baeta Viana. Esta corrente representou
um salto de qualidade na assistência médica, não só em Minas mas no Brasil,
inclusive com a pioneira interiorização da tecnologia laboratorial
simplificada. Galizzi foi catedrático de
Clínica Propedêutica na Faculdade de Medicina da UFMG, onde suas lições de
Semiologia Médica, ministrada com o auxílio de seguidores fieis, formou
multiplicadores docentes e não-docentes, em sucessivas gerações, todos testemunhas de que nessa disciplina foi
recebida a estrutura nuclear de suas reconhecidas competências.
Essa
capacitação nuclear foi depois estudada na busca de critérios de avaliação
educacional para além da prova-de-múltipla-escolha - e que fossem coerentes com
a inovação educacional implantada em 1975. Daí surgiram os requisitos da
relação estudante-paciente efetiva e do conceito de realidade
curricular. De tudo isso se concluiu que o curso anual ministrado pela equipe
do professor João Galizzi foi a principal trincheira de qualidade que evitou a
derrocada completa do ensino de cinco anos, adotado de 1965 a 1975. Afinal se determinou que do período formal de
cinco anos resultava um sofrível currículo real de menos de dois anos.
Tais
estudos só foram feitos pela disponibilidade de subsídios coligidos por gente da equipe do professor João Galizzi.
Foi um grupo coeso que, acrescido de outros entusiastas, se constituiu em raro
aglomerado de clínicos interessados em pedagogia médica. Esse fato merece
ênfase, pois o ensino da medicina vinha sendo monopolizado por vários
especialistas, com notória ausência de internistas, o que não passou de grave
erro. No caso, sanitaristas, psiquiatras, legistas e pedagogos-não-médicos
cederam lugar a clínicos e cirurgiões, logo transformados em coordenadores do
processo de desenvolvimento curricular, entre 1972-85. Essa experiencia
influenciou toda a educação médica brasileira, sendo considerada uma das quatro
vanguardas internacionais no ensino pós-flexneriano.
Outra
característica marcante da equipe galizzeana foi o intercâmbio com centros de
ciência médica no país e principalmente estrangeiros. O deslocamento de seus integrantes teve a
peculiaridade multilateral de buscar indistintamente fontes inovadoras, no ensino, na pesquisa e na clínica, tais
como na Grã-Bretanha, França, Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Canadá, África
do Sul, países vizinhos da América do Sul, México e Cuba. Sou testemunha do
prazer inexcedível que um pai pode sentir, quando, no Hospital Royal Free de
Londres, nosso Galizzi ouviu as melhores referencias a João Galizzi Filho,
externadas por Sheila Sherlock, a maior hepatologista do mundo. Não foram
elogios de conveniência, pois seu filho retornou ao Brasil para ser o maior
hepatologista brasileiro. A propósito, lembro que o professor Derek P. Jewell
nos convidou para participar de uma reunião clínica. No final me perguntou como
era o ensino em nossa faculdade, pois já estava impressionado com os Galizzi,
pai e filho, e agora também, na discussão daquele caso, com mais dois: Luiz de Paula Castro e eu.
A
produção científica ligada a João Galizzi também é amplamente sabida. Em sua
Cadeira veio trabalhar o gastrenterologista alemão Rudolf Schindler, a maior
autoridade mundial em endoscopia digestiva alta e criador do gastroscópio
flexível. Em conseqüência, o grupo de cientistas que no Hospital das Clínicas
hoje pesquisa a úlcera péptica e doenças correlatas é líder no Brasil e
reconhecido internacionalmente. Por outro lado, foi em seu Serviço que se fez
estudo completo da primeira doente
descrita da doença de Chagas, reencontrada em 1961, o qual integra seleto
conjunto de contribuições ao conhecimento da patologia regional brasileira. Ao
mesmo tempo, um sonho de João Galizzi e de sua equipe deixou de ser realizado:
a redação daquele que seria o melhor livro de Semiologia Médica do país foi interrompida
nos capítulos iniciais. O perfeccionismo do mestre causou a suspensão do
projeto.
Demais,
no meio universitário brasileiro, João Galizzi foi por décadas respeitadíssima
referência no rigor da linguagem médica e na estrita observância ética, seja no
ensino e na pesquisa, seja na atenção clínica. Assim, este cavalheiresco
artífice da melhor relação médico-paciente, este campeão da compostura
profissional - além de co-fundador de associação de classe e de associação
especializada - foi o milagroso conciliador entre o ceticismo metódico derivado
de Baeta Viana e a mais permanente tradição hipocrática, sendo que desta
extraiu surpreendente e popular didática aforismática. Conciliação que, na devoção à música, se repetiu
entre Wagner e Bach, no que, aliás, foi honrosamente precedido por Schweitzer.
Finalmente
cumpre dizer que, por trás do varão clássico tão querido de estudantes e
colegas, sempre foi possível percebê-lo curioso de sua circunstância
existencial. Esta fez dele o homem culto incapaz de esconder o entrechoque da
ascendência luso-mineira com a herança greco-latina – ainda mais com a
obrigação de ser herói, ao lado de Aleijadinho, da cidade de Congonhas. Tal
inquietude fez também dele uma das influências decisivas na criação e no
enriquecimento do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, a última mas
não a menos importante das irradiações de sua invulgar personalidade.
terça-feira, 30 de julho de 2013
QUE
FOI FEITO DO SUS?
EM OUTRAS PALAVRAS, QUEM MANDA NO SUS?
Tenho sido
cobrado pelo caos na saúde, em razão de ter participado, com forte engajamento,
na luta pela aprovação do SUS na constituinte de 1988. Ora, o SUS é uma decisão
simples sobre um sistema simples de cuidado da saúde, adotado com sucesso por
vários países. Hoje, no Brasil, é um
caos – resultante da pusilanimidade e da incompetência dos que deveriam
estruturá-lo, somada à incompetência e da má fé dos que, depois deles, foram encarregados de administrá-lo.
Em meu livro
que deverá sair ainda este ano, intitulado ENSINO DA MEDICINA no Brasil e em Minas, analiso o
caos atual na saúde. Esta análise também não é complexa e pode ser divulgada,
resumidamente, como segue.
Quem manda no SUS
O Sistema
Nacional de Saúde deveria ter sido implantado, logo depois da Constituição de 1988, por meio de uma estrutura nada
complicada, que deveria partir do
Conselho Nacional de Saúde, passando pelo Ministério, e deste pelos Conselhos
Estaduais e pelas Secretarias Estaduais, e destes pelos Conselhos Municipais e
pelas Secretarias Municipais.
Os secretários
estaduais da época se apressaram em criar um órgão espúrio, o Conselha Nacional
de Secretários de Saúde (CONASS). Esta foi a providência antecipada para que
aquele sistema, em vez de tecnicamente estruturado, passasse a atender demandas
da politicalha regional. Foi tão
eficiente em inviabilizar o lado bom do sistema, que logo foi criado mais outro
órgão espúrio, o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saude (CONASEMS). Este também induz o sistema a funcionar, em
vez do modo correto, de modo a atender
demandas diretas da politicalha municipal.
A indústria de
saúde viu com bons olhos estas organizações para-sistêmicas. Elas, de um
lado, se prestariam às suas demandas
comerciais e, de outro, enfraqueceriam a rigidez técnica do sistema. A
principal medida, porém da indústria, não seria a pressão para a criação de conselhos para-sistêmicos referentes a seus interesses. Seria a
pressão para a criação de algo mais eficaz e acima da politicalha eleitoreira.
Conseguiram a estruturação de agencias que, sob o disfarce de instrumentos
reguladores do funcionamento do sistema, representassem diretamente os
interesses econômicos e de marketing de produtos e serviços, ou seja, agências
contra-sistemicas. Assim, as agencias novas e outras pre-existentes, como a
ANVISA, o CFM, os CRMs e a ANS, foram direcionadas a esse fim. De modo
semelhante, as associações corporativas
dos profissionais da saúde pré-existentes ou neo-existentes foram rapidamente
constrangidas a esse mesmo fim contra-sistêmico, por meio do financiamento de
suas convenções e outros meios de suborno aberto ou disfarçado.
O
objetivo final é neutralizar o dispositivo constitucional, sistêmico por definição, de tal modo que o
controle de fato do que deveria ser o sistema nacional úncio de saúde
fica nas mãos de um anti-sistema constituído pela indústria de saúde,
composta pela indústria químico-farmacêutica, indústria de equipamentos de
saúde, indústria de alimentos, indústria de insumos laboratoriais de saúde,
indústria de venenos agropecuários, domésticos e ambientais, indústria de
serviços (os chamados planos de saúde, os hospitais privados e filantrópicos, e
outros), a indústria publicitária e/ou de marketing da saúde e ainda a
indústria de educação em saúde (principalmente a criação irresponsável de
faculdades de medicina).
Sem
muito esforço, é possível desenhar três diagramas análogos, para mostrar como o sistema nacional de
educação, que deveria ser verdadeiramente universal e totalmente gratuito,
isto é, direito tácito de todos os cidadãos, foi e está sendo progressivamente alienado da
esfera pública, em favor da esfera privada, clamorosamente entregue a
gigantescos interesses privados.
Todo
o caos, nos dois sistemas - de saúde e de educação -, traz um tremendo efeito
que não é colateral, mas principal: é a perfeita trama para o
mais desbragado carnaval de corrupção.
*
E há mais: o caos culmina com a susificação dos chamados planos de saúde ...
que não são planos nem são de saúde!
Nos dias em
que o presente texto estava sendo redigido, ocorreu uma cena muito
significativa, no salão de espera de uma clínica oftalmológica. A sala de
espera, ampliada para salão de espera, estava repleta de clientes. Nenhum deles
era do SUS. Todos eram contribuintes de “planos de saúde”. Um senhor, com um
curativo ocular, perdeu a paciência por causa da longa espera. Começou a
reclamar alto e depois a esbravejar. Como os funcionários não conseguiram
acalmá-lo, chamaram um médico co-proprietário da clínica. Depois de ouvir o desabafo
do paciente, o doutor disse que ele
estava cheio de razão. Mas completou, com a seguinte ressalva: “O
senhor está certíssimo em querer ser bem atendido, mas está havendo uma
confusão aqui - com o senhor e também com todos os que estão neste salão. A
confusão é a seguinte: o senhor pensa que saiu do SUS, mas não saiu. “
quarta-feira, 29 de maio de 2013
WILSON BERALDO
Wilson
Teixeira Beraldo, nascido em Silvianópolis,
Minas, da turma de 1943 da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Minas Gerais, é autor da maior descoberta científica da Faculdade de
Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e a segunda, depois da
descrição da doença de Chagas, realizada pela ciência brasileira. Durante o
curso médico foi estagiário do célebre professor José Baeta Viana. Após
regressar dos EUA, em 1926, Viana criou um
laboratório nos porões da
Faculdade. Nele, em vez de aulas teóricas, treinava os estudantes e
principalmente os estagiários em química fisiológica (bioquímica). A partir daí encaminhava todos os seus
discípulos, disseminando pelo país verdadeira dinastia de mestres e
pesquisadores. Na vez de Beraldo,
entretanto, coincidiu que, pela primeira vez, não havia lugar aonde encaminhar aquele
jovem. Em verdade, muitos dirigentes científicos e universitários temiam ajudar
Viana, adversário aberto do ditador Vargas.
Esta má circunstância
do momento pode ter sido decisiva para que Beraldo fizesse a maior descoberta científica
feita por discípulos do mestre. Até que
aparecesse uma oportunidade melhor, ele foi, então, trabalhar humildemente num
laboratório farmacêutico (Bristol), em São Paulo. Achando-o ali, o grande
nutrólogo Dutra de Oliveira sugeriu que procurasse abrigo, mesmo que como
assistente voluntário, no laboratório paulista do carioca Henrique da Rocha
Lima. Este tinha obtido em Hamburgo, na Alemanha, em 1916, grande vitória para a ciência brasileira, quando
descobriu a primeira riquétsia.
Acolhido por Lima, Beraldo foi escalado para a equipe afim do
farmacologista, também carioca, Maurício Rocha-e-Silva, que havia chegado da
Grã-Bretanha, entusiasmado com as esperanças trazidas pelo método de
identificação da histamina. Maurício, por sua vez, sugeriu ao Beraldo dominar o
método e escolher um setor do organismo humano onde pudesse procurá-la.
Wilson
Beraldo, mineiramente, meditou e
concluiu que, no primeiro mundo, as mínimas partes do corpo humano já estavam em
pleno mapeamento e ele iria chover no molhado. Como a jararaca é uma cobra que
só existe aqui, ele resolveu humildemente dizer ao mundo científico se havia ou
não histamina na saliva da serpente (preparada por Gastão Rosenfeld, no
laboratório Butantã, criação de outro mineiro, Vital Brazil). Rocha-e-Silva
certamente achou que aquela ideia só poderia sair da cabeça de um caipira do
sul de Minas, mas, como coisa de principiante, estava bem.
Acontece
que Beraldo, ao procurar a histamina (que se comporta como uma taquicinina
sobre o intestino animal), verificou que no veneno da jararaca, em vez de
taquicinina, havia uma BRADICININA - e assim foi descoberta, em 1948, uma das
mais importantes substâncias da fisiologia animal.
Mais
tarde os sucessores de Rocha-e-Silva e Beraldo, prosseguiram o estudo de
cininas e outras substâncias fisiológicas na própria jararaca e, assim, Sérgio
Ferreira descreveu o captopril, o inibidor da conversão da angiotensina I em
angiotensina II, abrindo revolucionário capítulo no tratamento da hipertensão
arterial. Coincidentemente, a angiotensina é outra descoberta latinamericana,
feita pelo argentino Eduardo Braun Menendez, em 1939.
Beraldo,
apenas uma vez, concordou em relatar a cena da descoberta. Foi quando deu uma aula de História da
Medicina no Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais. Relatou que,
procurando pela histamina na preparação que acabara de montar, observou o
efeito bradi em vez de taqui, na curva registrada. Rocha-e-Silva
entrou no laboratório e, enquanto colocava a gravata e o paletó, advertiu
Beraldo de que Rocha Lima ia iniciar a reunião e não admitia atraso. Beraldo
disse: veja o que está sendo registrado.
– Depois eu olho, você ainda está de avental. – Então olhe, por favor, enquanto
visto o paletó. A contra gosto o instrutor olhou, tornou a olhar – e ele
mesmo foi se despindo do paletó e se livrando da gravata...
sexta-feira, 12 de abril de 2013
MARGARETE E A AMEAÇA COREANA
João Amílcar Salgado
A morte de Margaret Thatcher trouxe as
homenagens esperadas a um ex-governante britânico. Mas a mídia mundial, por ser
tão abrangente, poderia aproveitar a oportunidade para dizer aos jovens de hoje
que toda a crise atual, vivida pelo hemisfério norte ocidental, está enraizada
em Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Será que isso não é dito em respeito a uma
morta?
Estive na Inglaterra antes do governo Thatcher e ali
conversei com um sábio professor de Oxford, Sidney Truelove, sobre as
perspectivas do serviço de saúde britânico. Ele era respeitadíssimo
especialista e também estudioso das tendências econômicas e políticas ligadas à
medicina. Fiquei impressionado quando me
disse que o horizonte econômico da Europa era sombrio. Segundo ele, o mercado
comum europeu não ia dar certo. Assim só havia duas saídas. A primeira era
voltar ao capitalismo selvagem, com anulação das conquistas do bem-estar
social, principalmente na saúde. A segunda era inventar uma guerra.
Dois anos depois surge a Margarete que escolheu a primeira
saída. E, para ter mais sucesso, fez
dobradinha com Ronald Reagan, tão selvagem como ela. Os dois se consideravam os
donos do mundo. Sábios, como Gay Talese e outros, não tiveram dúvidas em
apontar esses dois como responsáveis iniciais pelo craque imobiliário nos EUA e
a estagnação na Europa. Elogios à Margarete, em sua morte, não servem só para
homenageá-la, servem muito mais para esconder
seus cúmplices ainda vivos.
E a Margarete morreu no momento em que toma corpo a segunda
saída para a crise agigantada por ela. Uma guerra inventada agora iria
dinamizar as economias europeia e americana -
e todos esqueceriam os crimes
de Thatcher e Reagan.
quinta-feira, 11 de abril de 2013
AFONSO
SILVIANO BRANDÃO – VARÃO PLUTÁRQUICO DE MINAS E DA MEDICINA MINEIRA
João
Amílcar Salgado
Acaba
de ser editado o livro NA VIVÊNCIA DO
MEU TEMPO, escrito por Afonso Silviano Brandão. A primeira edição é de 1977
e foi distribuída apenas entre familiares
e amigos. Tive o privilégio de receber um
exemplar do autor e outro agora do filho, o proeminente patologista Hugo
Silviano Brandão. Várias razões me fazem interessado nessa autobiografia,
indissociável de várias histórias: a dos Buenos, entre os fundadores do sul de Minas; a do clube América, vertente
esportiva da faculdade federal de medicina; a da faculdade “Católica”, de que
sou personagem, e a das entidades médicas, de que sou historiador e crítico.
Estudioso
do sul de Minas, sei que os Buenos bandeirantes deixaram descendentes nas
Lavras do Funil, região do meu berço, e nas lavras de Ouro Fino, berço dos
Bueno Brandão. Pedro Vidigal escreveu que os Bueno vieram também para o
Calambau e ai mudaram o nome para Martins da Costa. Eu disse-lhe que seu livro
tinha centenas de páginas mas não dizia por que trocaram o nome. “Não disse,
porque não sei”, respondeu. E eu: “Eu sei: é porque não era prudente conservar
o sobrenome Bueno depois do Capão da Traição. Poucos não o mudaram”. E o genealogista exclamou: “Então foi assim?,
sêo valente!!!...”
Sobre
o América, poucos sabem que os antigos campo e quadras próximos à faculdade
federal eram área do parque municipal, cedida a esta escola, como campus
esportivo, pelo sulmineiro e prefeito Otacílio Negrão de Lima. Virtualmente, o
América era o time da faculdade, daí tantos médicos entre seus fundadores,
associados e craques, um deles Afonso, cotado a mais ilustre. Daí nosso protesto inútil quando a área foi
depois vendida indevidamente a um supermercado. Nossos argumentos foram
ridicularizados (hoje seriam aplaudidos), porque propúnhamos que a área
voltasse a ser parte do verde do parque.
Tenho
grande carinho pela “Escola Católica” de medicina. Quando fiz exame vestibular
ali, vários docentes perambulavam amistosamente pelas salas das provas e
participaram, sem qualquer rispidez, das
arguições orais. Tenho vaga lembrança de que Afonso era um deles. As turmas
diplomadas em 1960 pela “federal” e pela “católica”, de tão pequenas, somavam
uma única turma na Belo Horizonte dos anos dourados. Mais tarde,
tive atuação decisiva na efetivação do ensino ambulatorial, quando deste
fui o mais veemente defensor. Depois,
mais uma vez fui decisivo na deliberação de que o hospital São José viesse a
ser seu hospital universitário, tão sonhado. Enfim, participei ativamente na
modernização curricular, inclusive a adoção do internato rural.
Quando
a antiga Universidade Católica, nos trâmites para ser Pontifícia, abriu mão da
faculdade de Ciências Médicas - logo ela que era chamada de “a católica”! - fiz
dura crítica aos autores deste ato ignominioso.
E não tive dúvida em rotular o gesto de mesquinho, numa palestra
em pleno auditório da instituição ofendida.
Coincide que, no ano da reedição
do livro de Brandão, a PUC inicia novo
curso médico, desta vez não-filantrópico e não-descartável, mas altamente
rentável.
Como
historiador, examino a origem, os acertos e os erros de cada entidade integrante da corporação
médica mineira, senso lato, e também da corporação brasileira. Estudo, em
especial, o papel neste enredo desempenhado por JK e Clóvis Salgado, dois médicos e políticos também
presentes na saga da Faculdade de Ciências Médicas. Tais dados são encontrados
em outros de meus textos.
Por todo o sobredito é possível
avaliar a grata satisfação com que recebi a segunda edição de NA VIVÊNCIA DO
MEU TEMPO, título de livro capaz de causar inveja em qualquer escritor.
Seus leitores descobrirão que nenhuma personalidade da história brasileira
contou com as circunstancias singulares, de nascimento, infância e juventude,
que convergem na biografia de Afonso Silviano Brandão. E a singularidade persiste e cresce quando se
completa com a vertente reta e realizadora
do restante de sua existência.
Eis, enfim, um livro que nos chega como límpida
gema de Minas. Sim, nada mais substancial poderia ser ofertado à história da medicina mineira, exatamente pelo
raro conteúdo de nobreza, de honradez e de sul-mineiridade!
quinta-feira, 4 de abril de 2013
ATAULPHO DA COSTA RIBEIRO
Desassombrado nietszchiano
João Amílcar Salgado
Ataulpho da Costa Ribeiro
diplomou-se pela atual Universidade Federal de Minas Gerais, em 1949, e veio a
ser um dos mais cultos psiquiatras brasileiros. Conheci-o quando, no Centro de
Memória da Medicina, o Ciro Gomide Loures me chegou com um duo cervantino: o cartunista
e historiador Fernando Pieruccetti, alto e magro, e o médico e escritor
Ataulpho, de estatura menor e bigodudo.
Os três queriam discutir os achados minuciosos de Fernando sobre o
primeiro curso médico brasileiro, ministrado em Vila Rica , desde 1801. Nas
apresentações, relacionei o sobrenome Costa Ribeiro com a cidade de origem,
Lavras, e imediatamente reconheci no portador os traços dos Ribeiros
nepomucenenses, quer no físico, quer no comportamento. Diante disso ele me
passou sua árvore genealógica, pelo que hoje o chamo de primo.
Naquele
dia, Ataulpho sugeriu que convidássemos Bi Moreira para ministrar aula no curso
de História da Medicina, o que aconteceu no semestre seguinte. Emocionado, Moreira relatou sua luta para
organizar o museu que hoje traz seu nome e que, em boa hora, passou a preservar
a memória da região de Lavras. Na aula, entre outras preciosidades, revelou-nos
que Paulo Meniccuci, patriarca da medicina lavrense, se consagrou como
cirurgião, quando, no início do século 20, após examinar um homem esfaqueado,
teve a audácia (que, na época, quase nenhum cirurgião teria) de fazer-lhe uma sutura do músculo cardíaco,
salvando aquela vida.
Daí
passei a admirar a boa prosa do erudito Ataulpho Costa Ribeiro, seus deliciosos
comentários críticos e seu lado de poeta sensível e de filósofo cético, bem
assim suas predileções na música, iguais às minhas. Conheci de sua competência
clínica, no exercício da qual joga com habilidade toda sua abrangente cultura. Tudo
me fazia pensar dele um recluso, quando avisto uma pessoa muito parecida com
ele, a passar por mim, todo desenvolto, ao pedal de uma bicicleta, lá no alto
do Miguelão. Não podia ser, mas era ele
mesmo. Sim, ele sim, ciclista ou andarilho, era parte daquela paisagem.
Descobrimos
que ambos éramos fãs de Agripa Vasconcelos.
Revelou-me que conviveu certo tempo com o médico e escritor, ocasião em
que recebeu dele, datado de dezembro de 1948, o manuscrito exclusivo do soneto ADOLESCENTE:
No citoplasma do ovo, ao gene, obscura, / Na química fatal do
cromosoma, / Foste
gerada com a dourada coma
/ Ao calor da genética mais pura! // Produto de um calor que ainda perdura, / Num salto mendeliano,
agora assoma / Teu vulto esbelto que é o resumo, a soma / De protoplasmas que o
calor mistura.
// Na tua biologia recessiva, /Não teu pai – tua mãe é que está viva, / O gene dela é que
prevaleceu // Tu que
vens de uma antese clara e bela,
/ Já te cobri de beijos dados nela / E beijo em ti aquela que morreu.
Em
dezembro de 2005, o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais concedeu pela
primeira vez o Prêmio Pedro Salles de História da Medicina. Sendo premiação
inaugural, foram premiados in memoriam Agripa Vasconcelos, Otávio
Nelson de Sena e Fernando Pieruccetti.
Por sua fraterna ligação a Pieruccetti, Ataulpho foi convidado a
recebê-lo em nome de seu grande amigo – e assim também homenageado. Foi quando lembrou
ter Aníbal Matos cognominado Pieruccetti de o nosso
Aleijadinho do crayon.
Ataulpho
Ribeiro, lendo Nietszche no original, passou a ser respeitado estudioso da vida
e da obra do grande filósofo e poeta alemão. Afinal se transformou em
autoridade naquilo que lhe cabia como psiquiatra, que é a demência de que
Nietszche foi vítima no fim da vida. No centenário de sua morte compareceu ao
túmulo e leu em lágrimas um poema que lhe escreveu em alemão. Convidado
pelo Centro de Memória da Medicina a ministrar conferência sobre o tema, causou
forte emoção nos estudantes do Curso de História da Medicina, quando exibiu o
filme em que aparece o originalíssimo pensador em seu dramático internamento
hospitalar.
Estamos
preparando a publicação do livro A PSICOSE DE NIETSZCHE, que é o
coroamento dos textos escritos por Ribeiro sobre Nietzsche. Seus colegas do
Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais o aconselham a publicá-lo também
no exterior, pois parece que nenhum estudo semelhante foi feito até o momento. Seus ensaios e poemas são densos
e nos induzem a inquietantes reflexões. Na verdade trata-se de um pensador singular,
capaz de arquitetar sedutora ponte entre os iluministas mais radicais e o
pensamento nietszchiano mais revolucionário.
Em
Roeckendorf, na Alemanha, no dia 09-10-1993, Ataulpho Ribeiro rezou à beira do
túmulo de Friedrich Nietszche a seguinte oração-poema: Tu foste poeta e pensador. Em tua
vida introspectiva e solitária, a dor foi prematura e permanente. Aos quatro
anos de idade, ao falecer teu pai, a existência já desvelava, aos teus atônitos
olhos de criança, o seu verdadeiro rosto, as suas dissonâncias, as crueldades
que a desesperam. Desde então, a tua
vida inteira, por poderosa e aguda percepção crítica da realidade, e por tua
sempre frágil condição de saúde, foi uma grande odisséia de sofrimentos, resignação
e desencantos. Filósofo lírico, pensador da existência , artista da palavra,
dotado de excepcional pendor musical, deixaste, para a posteridade, enriquecendo
sobremaneira a herança cultural comum, um legado espiritual marcado por
original e impetuosa avalanche de idéias, todas elas girando em torno de
grandes temas e desconcertando a bi-milenar tradição da filosofia
ocidental. Possuías uma alma nobre e
solitária, meditativa, muito acima das contingências cotidianas da vida. A
música e a palavra, como bem observava Thomas Mann, foram as tuas únicas
vivências. Falando de ti mesmo, dizias:
“Os meus pensamentos tornaram-se os meus acontecimentos; o restante de minha
vida nada é senão a crônica diária de uma doença.” Em verdade, a tua existência
inteira foi um segundo “nascimento da tragédia”. Tua grandeza, como escultor do
idioma, como poeta e pensador, como consciência crítica dos valores, como
filósofo do niilismo e da cultura, como educador da liberdade, tuas antevisões
proféticas, tuas profundas análises psicológicas, são ininterruptos diálogos
interpelativos com a realidade, todos eles colocados em altíssimo nível de
contestação cósmica. Foste, em tuas próprias palavras, “poeta, decifrador de
enigmas e redentor do acaso”. Hoje, seis dias antes de teu aniversário, e após
meio século de paciente expectativa, de atenta leitura de tuas obras,
realizando um antigo anseio, venho ao teu túmulo e à tua aldeia natal para
reverenciar a tua memória, para tributar ao teu nome a minha mais comovida
homenagem. Ao realizar esse gesto, de
contrição e fervor, gostaria que ele o fosse consoante as tuas próprias
aspirações e sensibilidade, consoante a transcendência do momento, a epifania
desse instante, quando nehuma palavra é capaz de expressar, em toda a sua
plenitude, as grandes emoções do espírito: “Oh! minh´alma, ... canta, não fales
mais!”
Tendo
dado o nome de Robespierre a seu filho (também médico e também brilhante), este
jacobino transbordante de mineiridade mostra que em Minas se esconde, em nicho
esplêndido, simbiontes de poesia e dialética. Quando discernidos sem
preconceito e com justiça, terão em Ataulpho da Costa Ribeiro um exemplo digno
de estudo sério, de controvérsia sadia e de admiração verdadeira.
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