João Amílcar Salgado

quinta-feira, 18 de junho de 2015

WATERLOO ANIVERSARIA 200 ANOS E O QUE MINAS TEM COM ISSO?
João Amílcar Salgado
De 18 a 21/06/2015 está sendo encenada com fidelidade a batalha de Waterloo, ocorrida há 200 anos, em território entre a Bélgica e a Holanda. Nela Napoleão foi derrotado e foi trazido preso para a ilha de Santa Helena, não muito distante do Brasil. Os vencedores foram os ingleses, sendo glorificado o irlandês Wellington, comandante contra um inimigo considerado invencível. Que relação tem isso com Minas Gerais?
Há estrategistas que estudam a simulação da batalha e concluem que tecnicamente Napoleão a venceu. Quando, num jogo de guerra, o inimigo tecnicamente ganha e de fato perde, a primeira hipótese é traição. Quem teria traído Napoleão? Aí entra Minas Gerais. Acontece que grande parte dos bandeirantes  eram de origem flamenga, ou seja, belga. As famílias mais tradicionais de Nepomuceno têm forte ascendência flamenga, inclusive de gente originária de Waterloo. Em 1815, os controladores do ouro mineiro concluíram que a extração na superfície escasseava e deveria passar ao subsolo. A tecnologia para isso era britânica e, se Napoleão vencesse, a nova modalidade extrativa seria retardada. Melhor seria que Wellington vencesse. Deslocaram o desfecho da guerra para território flamengo e ali deram um jeito de Napoleão perder.
Depois de 1815, os ingleses chegaram a Minas Gerais e minas de subsolo, como Morro Velho, se multiplicaram.  Implantaram também o lucrativo trenzinho caipira. Em retribuição, o Império Britânico perguntou aos traidores que mais recompensa queriam, a troco de tão farto benefício. Como estavam ligados aos negros do Congo pela habilidade deles na mineração, os belgas pediram e receberam maravilhosa porção da África, que passou a  chamar-se Congo Belga. Mais tarde chegaria a Minas o rei da Bélgica para inaugurar a Companhia Belgo-Mineira. Não se sabe se chegou a ver uma exibição de congado. Foi inaugurado também o Instituto do Radium (depois Borges da Costa) para uso médico do radium, tecnologia revolucionária da época. E o radium era extraído de minério na época só existente no Congo Belga. Em 17-8-1926 a descobridora do radium, a polonesa Madame Curie, seria enviada pelos belgas para visitar o Instituto do Radium em Belo Horizonte, ao lado de sua filha Irene Curie (foto).

Há ainda dois fatos que ligam o tema ao Brasil. Assim como o ouro de Minas entrou na derrota de Napoleão, este pode ter morrido por causa da presença de seus sequazes no Brasil. Estes pretendiam sequestrar o prisioneiro da ilha de Santa Helena, mas o serviço secreto francês, ao tomar conhecimento da viagem deles a nosso país, ordenou envenenar o imperador com arsênico. O outro fato faz parte da história da medicina legal brasileira. Segundo o historiador Cristobaldo Mota, se um professor perguntar a um aluno se Napoleão esteve no Brasil e se a resposta for não, o aluno deve tomar zero. Isto porque o cadáver de Napoleão, indo da ilha à França, passou pelo Brasil.

domingo, 14 de junho de 2015

COMO ERA A CARA DE SANTO ANTÔNIO
João Amílcar Salgado
O dia de Santo Antônio, no ano de 2015, coincide com a revelação do rosto do santo, reconstituído a partir de seus restos mortais. Seu túmulo foi aberto e seu crânio foi tomografado e impresso tridimensionalmente. Os tecidos moles foram acrescentados, em harmonia com a estrutura óssea subjacente, e assim chegamos a saber como era sua feição mais provável. Surge então um senhor moreno, tipicamente um português lisboeta, bastante diferente das imagens disseminadas popularmente. Esse acontecimento é de particular importância para Nepomuceno, porque a cidade está incluída entre aquelas que contam com descendentes da família desse extraordinário santo.
Santo Antônio, antes de adotar o nome Antônio, era o jovem Fernando Bulhões Taveira de Azevedo e viveu de 1195 a 1231.  Parte desta família veio para o sul de Minas com o sobrenome Alves Taveira. Em Nepomuceno uma jovem da família Alves Taveira, de nome Escolástica Alves Taveira, se uniu a Joseph Luiz Garcia, um dos filhos de Mateus Luiz Garcia, o fundador da cidade.  Desse modo, desde cedo, numerosos  descendentes desse casal do início da Vila – os Alves Garcia -  se orgulham de serem parentes de Santo Antônio. Além disso, o genealogista Luiz Franco Junqueira, recentemente falecido,  pesquisava a possibilidade de que as famílias nepomucenenses que levam o sobrenome Alves, tivessem também tal ascendência: são os Alves, Alves Figueiredo, Alves Carrijo, Alves Barbosa e Alves Vilela. A família Taveira de Nepomuceno é a mais genuina e nela quase todos os filhos masculinos e alguns femininos se chamam Antônio e Antônia. Diante disso não é de admirar que os estudantes dos colégios sulmineiros apelidassem Nepomuceno como a terra dos Toninhos. Demais, como Santo Antônio foi maravilhoso pregador, a fama de Nepomuceno como terra dos oradores está perfeitamente explicada.

A Trumbuca ou Trombuca, depois de ser aldeia indígena e quilombo, foi uma fazenda satélite à grande fazenda do Morembá, dos Alves Garcia, sendo que Francisco Alves Garcia – o primeiro Chico Frade, filho de Escolástica e neto de Mateus – foi também o primeiro Taveira do lugar. Daí que o nome cristão da Trumbuca é Santo Antônio do Cruzeiro.  As fotos anexas apresentam os restos mortais do santo, seguidos de uma imagem de Santo Antônio loiro, ao lado de outra em que ele se parece mais com a reconstituição feita, a qual é vista em seguida. Meu grande interesse pelo caso está ligado a meus estudos sobre o branqueamento e até o aloiramento de morenos e negros que se tornaram personagens históricas. 



 

sábado, 30 de maio de 2015

A SÍNDROME DO CARRAPATO DA BALEIA
João Amílcar Salgado
            Com um patrimônio bruto incalculável, a PETROBRAS teve um faturamento de 305 bilhões de reais em 2013, investe mais de 100 bilhões de reais por ano, opera uma frota de 326 navios, tem 35.000 quilômetros de dutos, mais de 17 bilhões de barris em reservas, 15 refinarias e 134 plataformas de produção de gás e de petróleo. Uma auditoria apontou que o escândalo apelidado de LAVA-JATO causou um prejuízo de 21,6 bilhões, sendo que 1,6 bilhões corresponde ao desfalque realizado pelos corruptos   ora investigados. Isso quer dizer que a empresa, tão querida dos brasileiros, foi vítima de dois grupos de criminosos: os corruptos que surrupiaram 1,6 bilhões e os especuladores financeiros que a desfalcaram adicionalmente até atingir 21,6 bilhões. O objetivo dos especuladores não se restringe a acionar a grande imprensa para exigir a condenação dos corruptos bem como a devolução do total roubado. Seu real objetivo é continuar fazendo com que a empresa se enfraqueça continua e progressivamente. Para isso orquestrarão a realimentação do escândalo, acrescida do desemprego que as empreiteiras culpadas e as ainda não-culpadas providenciarão. Ao término de tal conspiração, acreditam que a gigantesca estrutura, antes intocável, estará tão exaurida que ficará pronta para ser privatizada.
            Pode dizer-se que a SÍNDROME DO CARRAPATO DA BALEIA chegou ao grande público por meio do golpe da ladranzana Jorgina de Freitas - a procuradora previdenciária, que, diante da enorme soma confiada a suas mãos, armou, entre 1988 e 90, um esquema de desvio totalizado em mais de dois bilhões. Fugiu do país até ser presa na Costa Rica, em 1994. A síndrome exige que haja a disponibilidade de gigantesca quantidade de dinheiro, cujo acúmulo crescente ocorra em descompasso com o respectivo esquema fiscal. Nesse descompasso, pouquíssimos agentes dominam os registros e são tentados a concluir que, de soma tão grande, é fácil desviar somas relativamente pequenas, dificilmente percebidas pelos colegas corretos e muito menos pelo mega-organismo predado.
Daí o símile: um animal doméstico com carrapatos pode entrar em anemia e morrer. Uma baleia com carrapatos nem cócega sente. Assim, um desvio menor e prolongado pode ser um crime perfeito e pode traduzir-se em acúmulo biliardário. Gigantes descontrolados no Brasil não eram tão significativas quando o PIB brasileiro era medíocre no mundo. A partir de 2013 o Brasil supera o PIB britânico e surge a  evidência de que muitas baleias brasileiras estão com carrapatos, sendo a PETROBRÁS a primeira a ser revelada com estardalhaço - e está muito longe de ser a única.
POSIÇÃO
2012
2015
2016
2018
EUA
EUA
EUA
EUA
CHINA
CHINA
CHINA
CHINA
JAPÃO
JAPÃO
JAPÃO
JAPÃO
ALEMANHA
ALEMANHA
ALEMANHA
ALEMANHA
FRANÇA
FRANÇA
BRASIL
BRASIL
REINO UNIDO
BRASIL
FRANÇA
RÚSSIA
BRASIL
REINO UNIDO
RÚSSIA
FRANÇA





Especuladores financeiros internacionais, capitaneados pelo grupo do jornal THE ECONOMIST, julgando insuportável ver o Brasil na frente do Reino Unido, consideram prioritário frear o crescimento tupiniquim, ainda  mais que, sem freio, o país será, em 2018, a 5ª economia mundial. E faz parte do freio privatizar a Petrobrás.
E tudo isso não é só isso. A coisa não cessa aqui. O gigantismo da baleia implica a dificuldade de detecção do crime, dificuldade esta que é estímulo ao crescimento do delito, além de estímulo à disseminação de ultrajes análogos em organismos análogos. Sem dúvida nenhuma, a baleia da Petrobrás se reproduz na área elétrica, da saúde, da educação, do transporte, da extração de madeira, dos bancos e outras. Quando eram esperadas, uma a uma, as denúncias para tais áreas, surgem dois estrondosos escândalos comprobatórios da síndrome ora descrita: o desabamento de um viaduto em Belo Horizonte e a prisão de cartolas da Fifa.
O caso do viaduto serve para ilustrar como um crime, tão inacreditável como intolerável, pode evoluir para pizza. A consequência lógica seria o prefeito renunciar e também seria imediatamente preso o superintendente público de transporte - trancafiado junto com o diretor da empresa de projeto, algemado ao diretor da empresa executora. Nada aconteceu.  Já o caso da Fifa vai servir para ilustrar a diferença de como a coisa é tratada no Brasil e fora dele.   Podemos presenciar pela tevê e pela internete uma pizza transnacional com padrão Fifa.
Alguém justificou a impunidade desses empresários invocando o medo de que eles desempreguem seus operários. Quase ao mesmo tempo, uma justificativa mais abrangente foi ouvida. Foi quando a doleira-amante do doleiro-mór proferiu a frase que vai incomodar muita gente por muito tempo: “NOSSA ECONOMIA É MOVIDA A CORRUPÇÃO: SEM CORRUPÇÃO O BRASIL NÃO ANDA”. Conforme o desfecho do caso Fifa, a frase da criminosa pode ter novo alcance: “A ECONOMIA OCIDENTAL GLOBALIZADA É MOVIDA A CORRUPÇÃO: SEM CORRUPÇÃO O MUNDO NÃO ANDA.








quarta-feira, 6 de maio de 2015

DIANTE DE ESCÂNDALO COMO ESSE NADA ACONTECE
João Amílcar Salgado
Muitos sabem que sou estudioso da relação entre publicidade e saúde. Venho anotando os grandes escândalos nesse negócio. Agora acontece mais um.
Em abril de 2015, teve início a seguinte campanha promovida pela corporação dos farmacêuticos:
DIGA NÃO À AUTOMEDICAÇÃO Criado em Segunda, 27 Abril 2015 12:10 Ações de conscientização da campanha pelo Uso Racional de Medicamentos 2015 têm início no dia 04 de maio, na rodoviária de Belo Horizonte. Projeto deve percorrer ainda outras 17 cidades, mobilizando farmacêuticos e acadêmicos para esclarecerem a população sobre os riscos da automedicação  Tomar medicamentos por conta própria ou sem orientação adequada é um dos grandes problemas de saúde pública no Brasil. Dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) apontam os medicamentos como os maiores agentes causadores de intoxicação no país, tendo sido registrados 27.008 casos de intoxicação medicamentosa em 2012.  Para conscientizar a população sobre os riscos que envolvem a automedicação, o CRF/MG dá início à terceira edição da Campanha pelo Uso Racional de Medicamentos no dia 04 de maio, no terminal rodoviário de Belo Horizonte. O evento acontece na capital durante toda a semana em parceria com a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte – Regional Centro Sul, e apoio das faculdades de farmácia das instituições Faminas, Newton, Nova Faculdade, Pitágoras, UFMG e Una. A campanha vai percorrer ainda outras 17 cidades com ações de rua, mobilizando farmacêuticos e acadêmicos para prestarem serviços farmacêuticos gratuitos de orientação à população. 

            
É espantoso que esta campanha apareça, em importante emissora de rádio, intercalada entre a propaganda da panaceia MANTEIGA DE SUCURI, anunciada como cura de qualquer doença, e a propaganda da panaceia REUMARTROSE, anunciada como cura de qualquer reumatismo. Nem a corporação farmacêutica, nem a corporação jornalística manifestam qualquer estranheza, ou melhor, ambas parecem considerar todo esse escândalo como coisa normalíssima.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

A ÁGUA E A LEI
João Amílcar Salgado
No último dia 21-3-15 houve em São Lourenço, aqui no Sul de Minas, importante debate sobre o aspecto jurídico da sustentabilidade hídrica (ver anexo).
          Os belorizontinos terão a oportunidade de conhecer a questão porque o jurista José Afrânio Vilela, participante daquele debate, falará, no dia 28-4-15, sobre “A CRISE NO MEIO AMBIENTE SOB O OLHAR JUDICIAL. Será na Associação Médica de Minas Gerais, av. João Pinheiro, 161, às 19 horas.
          Considero feliz a ideia de tratar desse assunto a partir do Sul de Minas, pois sou estudioso das profundas relações desta região com suas águas. Quando os bandeirantes, antes de Fernão Dias, conseguiram caçar indígenas ao norte da Mantiqueira, tiveram que lidar com a travessia de muitos cursos dágua e chuvas torrenciais, de setembro a maio. E o maior genocídio indígena no país ocorreu quando emboscaram mulheres, crianças e adultos contra as águas do rio Grande. O próprio Fernão Dias sofreu ali com a chuva antes de avançar mais ao norte. Em seguida, quando houve a separação entre Minas e São Paulo, houve conflito para decidir quem ficaria com o maravilhoso vale do rio Sapucaí. Este vale encantou visitantes estrangeiros e passou a ser cobiçado pelos paulistas tão avidamente que por fim confessaram que se contentariam com o lado oeste desta bacia. E por pouco não o conseguiram.
Quando foi feito o lago de Furnas, ocorreu a absurda decisão de inundar uma das maiores camadas de húmus do planeta. O custo/benefício da troca dessa terra esplendorosamente agricultável pela energia pretendida nem sequer foi discutido. E esse crime continuará sendo escandaloso para sempre. Na preparação da barragem, ocorreu o saneamento antimalárico do vale Rio Grande-Paraná. Por pelo menos um século, Inúmeros seres humanos tinham morrido ou ficaram inválidos pela malária, que antes não havia aqui. Se essa gente pudesse ser ouvida hoje, interpelaria o governo e os financiadores norteamericanos, perguntando: antes não fomos saneados, então a energia vale mais que gente?
          Independentemente disso, os sanitaristas da época deram um show na erradicação dessa malária e o principal deles foi o competentíssimo nepomucenense Aprígio de Abreu Salgado. Calcula-se que aqueles especialistas hoje dariam conta da dengue. A epidemia, ora em expansão, vem escapando tranquilamente dos sanitaristas (?) atuais, mesmo com a tecnologia hoje disponível.

          E São Lourenço é simbólica nesta questão. O Sul de Minas - por milênios riquíssimo de rios e de chuva – é também privilegiado por águas requintadas. A família imperial era fanática por Caxambu, Getúlio Vargas por São Lourenço e Osvaldo Aranha por Poços de Caldas – competição que nobilita os sul-mineiros. Ultimamente a poderosa indústria de águas avançou sobre tal patrimônio, que assim continua sob enorme ameaça, tanto maior quanto mais aguda for a crise hídrica..

sábado, 11 de abril de 2015

CENTENÁRIO DE NOZINHO GUSMÃO
www.youtube.com/watch?v=nhOw8zj56fM
Vejam este vídeo comemorativo deste centenário
Associando-nos à homenagem a nosso inesquecível Nozinho (Nathan) Gusmão, anexamos o texto do qual ele é o primeiro autor, apresentado ao Congresso de História da Medicina de Salvador, Ba, 2003. Seu relato oral foi colocado em formato adequado à comunicação. O vídeo acima e o  texto anexo não esgotam a homenagem devida. Sugerimos que o conjunto de seus relatos seja substrato de um livro, principalmente os referentes a sua vida de tropeiro. Imensa é nossa saudade desse companheiro de causos sem fim. joão&leila

ECO BRASILEIRO AO TAN-TAN DE BROCA

Natham Gusmão. Sebastião N. S. Gusmão, João Vinícius Salgado

Pierre Broca, cirurgião e antropólogo francês, publicou, em 1861, em Paris, o artigo Perda da fala: amolecimento crônico e destruição parcial do lobo anterior esquerdo do cérebro, no Boletim da Sociedade de Antropologia (Bull. Soc. Anthropol  1861, 2, 219), texto pioneiro sobre o sinal clínico da afasia. Conclui por apontar a localização cerebral da linguagem. Seu estudo foi ocasionado por um paciente que, depois de lesão em tal área, deixou de falar, passando a emitir, repetitivamente, apenas a  expressão tan-tan. Daí, o termo tantã passou a designar, na linguagem vulgar, pessoa amalucada ou ligeiramente débil mental. No dicionário Aurélio, o autor do verbete, mostra ignorar a origem da palavra e pergunta se não deriva de tonto. É possível, entretanto, que a vulgarização do vocábulo tenha decorrido da semelhança sonora entre tan-tan e tonto.  Estudos posteriores mostraram que o resquício de linguagem capaz de permanecer em afásicos está ligado à esfera emotiva mais profunda, o que está de acordo com as idéias de Antônio Damásio, expostas no livro O Erro de Descartes – Emoção, Razão e o Cérebro Humano. 

Na memória de uma família brasileira, recolhida por um dos presentes autores, há o registro de um avô que, após lesão cerebral seletiva, passou a responder a qualquer tentativa de diálogo com forte palavrão (puta que pariu). Esta pessoa antes  não fazia uso de  linguagem chula, no trato com o público, pois exercia a função de terapeuta prático, pois a cidade de Itamarandiba, em Minas Gerais, não contava com médico formado, no final do século 19. Fazia uso inclusive do Chernoviz e outros livros de diagnóstico e terapêutica. Seu filho herdou sua ocupação e vários de  seus descendentes e colaterais têm-se distinguido como clínicos e cirurgiões.  Depois de sua doença, mesmo sem poder dialogar, prosseguiu no atendimento a sua prestigiosa clientela, inclusive sendo transportado a cidades vizinhas,  com a diferença de que, a qualquer dúvida sobre sua prescrição escrita, apresentava a mesma resposta. Curiosamente, o caso brasileiro foi contemporâneo do relatado por Broca. 

sábado, 21 de março de 2015

LUIZ CISALPINO CARNEIRO
ESPLÊNDIDA SÍNTESE ENTRE RETIDÃO DE CARÁTER E ESPÍRITO SOLIDÁRIO

João Amílcar Salgado
            Quando o Luiz Carneiro se aposentou e fechou seu laboratório de análises clínicas, numerosos clientes se sentiram desamparados, pois ele era, principalmente para os próprios médicos e respectivas famílias, o que havia de mais confiável em exames complementares. Atendia desde famílias tradicionais até altos dignitários e autoridades, sendo também de altíssima confiança para documentação científica.  Foi o último profissional artesanal nesta área, pois o controle de qualidade para ele significava conferir pessoalmente cada exame e cada laudo que produzia.
               Em seu laboratório particular, no serviço laboratorial da cátedra de Clínica Médica, comandada pelo professor Caio Benjamim Dias, e no laboratório central do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, este perfeccionista da patologia clínica desenvolveu várias técnicas, tendo incrível facilidade para, tão logo algum procedimento era proposto na literatura médica, tê-lo na rotina de sua bancada, o qual generosamente repassava aos colegas da capital e do interior.
               Foi pioneiro, por exemplo, na dosagem do iodo protêico, cuja introdução veio facilitar o diagnóstico de doenças da tireóide, substituindo a trabalhosa medida do metabolismo básico.  Vários interessados falharam em estabelecer a técnica, após mais de uma tentativa, até que do Luiz Carneiro o êxito veio da primeira vez.   Foi nessa época que a meu pedido dosou o iodo protêico de uma paciente atendida no ambulatório do Hospital da Cruz Vermelha, quando disse: foi a dosagem mais baixa que já medi e a doente não tem aparência da doença. Concluímos que o fator racial mascarava aqui a aparência de mixedema descrita em gente européia. E mais: o principal quadro apresentado era psiquiátrico, que se reverteu com o tratamento com tireóide.  O Luiz então me perguntou: quantos pacientes, como esta, estarão aí pelos hospícios brasileiros tomando eletrochoque, em vez de beneficiados pela terapêutica certa? A pesquisa que faríamos para responder a esta pergunta foi impedida por razões suspeitas.  Meu amigo lamentou: é uma pena, pois tenho muito carinho pelos loucos. Esta data, 1963, deve ser reconhecida como do início da humanização da psiquiatria no Brasil.
               Na verdade a investigação que pretendíamos era mais ambiciosa, pois iríamos determinar não só o percentual de loucuras reversíveis com prescrição de tireóide, mas também aquelas causadas por pelagra (freqüente entre nós pela soma de alcoolismo e desnutrição), a qual é brilhantemente reversível com ácido nicotínico. Fomos obstados e o mesmo aconteceu mais tarde, quando tentamos ser pioneiros na dosagem de álcool no sangue, hoje rotina para motoristas bêbados. Eu ensaiava cimetidina para úlcera péptica e guardei o sangue dos pacientes para dosar eventual diminuição dos hormônios sexuais. Ia dosar também eventual alcoolismo, pois, ao contrário da crença comum, surgiu a evidência de que a bebida alcoólica, em vez de agravar, melhorava a úlcera. O fabricante de cimetidina foi contrário à dosagem do hormônio. As amostras de sangue estavam estocadas e um belo dia o congelador amanheceu desligado.
               Outra dosagem de que o Luiz Carneiro foi pioneiro é a do colesterol. Quando controlar colesterol estava se tornando modismo, ele experimentou o período de maior movimentação em seu laboratório. Dosou o colesterol de todos os ricaços e gente importante de Minas. Permitiu-lhe até comprar uma casa e deixar de morar de aluguel. Havia obsessivos que exigiam a dosagem semanal. Sendo aquele que mais tempo conviveu com a idéia fixa de muita gente contra a hipercolesterolemia, chegou à conclusão de que, entre a maioria daqueles com persistente colesterol alto, que acompanhou até a morte, esta se deu por causa não relacionada a tal obsessão. Assim, nosso Luiz deve ser considerado pioneiro na denúncia  daquilo hoje conhecido em inglês como “overdiagnosis & overtreatment business”.
               Cumulativamente, Luiz Carneiro nunca deixou de dedicar-se ao estudo de problemas sociais, vislumbrados por ele de um ângulo inusitado, ou seja por meio do buraco-da-fechadura de sua especialidade, adrede colocado em ponto alto da medicina mineira. Isto porque seu irmão mais velho, José Maria Carneiro, formado pela atual UFMG em 1932 (contemporâneo de Guimarães Rosa), foi laboratorista de alta reputação e influente dentro e fora da profissão.  Nosso Luiz, formado na mesma Universidade em 1952, passou a seu auxiliar, desde o curso médico até suceder-lhe. Isso o fez laboratorista do Instituto Raul Soares, onde convivia com os dementes - repetição de circunstância de sua meninice, pois conviveu em Barbacena com os internos de lá, quando seu pai era encarregado das obras na Colônia de Alienados. Com isso, ele acabou sendo o observador privilegiado de nossa realidade social, acompanhando simultaneamente, de um lado, a elite da elite e, de outro, os penúltimos colocados na escala da dignidade humana: os doentes mentais.
               Certo dia o Luiz me disse que ia pedir demissão da Universidade, pois fora escalado para plantonista do Laboratório Central, função que não suportaria exercer naquela altura da vida.  Imediatamente o requisitei para ficar à disposição do Centro de Memória da Medicina.  Em seu primeiro dia no Centro, implorou para que jamais conversássemos com ele sobre laboratório clínico. Diante disso concluí que ele estava repetindo algo que acontecera com um papa. Segundo uma lenda, certo cardeal fora escolhido papa como única salvação em momento de crise. Fez tudo para recusar, mas foi coagido a tomar posse e resolveu a crise. Então o cardeal seu confidente lhe perguntou por que recusara. E ele disse sinceramente que, quando apelaram para ele, tinha acabado de tornar-se ateu.
No caso do Luiz Carneiro, não havia propriamente crise, mas ele nos chegou pronto para duas coisas definitivas: cuidar da memória de Juscelino Kubitschek, de que é admirador sem par, e proporcionar-nos um momento histórico em nosso ensino médico. Isto porque havia quem muito elogiasse a inovação curricular de 1975, exceto certa tendenciosidade antipsiquiátrica. Éramos acusados pela cúpula psiquiátrica mineira de promiscuidade com as idéias de gente como Michel Foucault, Georges Lapassade, Franco Basaglia, Ivan Illich, Pierre Bourdieu, Timothy Leary, Jürgen Habermas, Ronald Laing, Wilhelm Reich, Hélio Pellegrino, Domingos Gandra e Célio Garcia. Tal preconceito retratava a incultura dos acusadores, pois éramos apenas democraticamente abertos a todas as correntes, pois nossos estudos se iniciaram com Piaget, Jairo Bernardes e o ortodoxo psicanalista chileno Hernan Davanzo. Diante disso, Carneiro, com base num artigo de Hélio Pellegrino sobre a assistência psiquiátrica cubana, se prontificou a comparecer a Cuba, no que correu grande risco frente à repressão da época, para nos trazer aquela experiência. E submetê-la, em debate, a todas as correntes da psiquiatria existentes no Brasil, desde a antipsiquiatria à psicocirurgia. 
Essa foi a origem do célebre Seminário sobre Alternativas de Atenção à Saúde Mental, de 1982. Foi um dos fortes desafios à abertura esboçada pela ditadura e é descrito em outro texto, mas adiantamos que foi iniciado com a expectativa de três apresentações: aula inaugural de Nise da Silveira, exibição do filme Um Estranho no Ninho (um dos três melhores filmes já produzidos) e o audiovisual do Luiz Carneiro sobre a experiência cubana. Lamentavelmente, a querida conferencista adoeceu e a cópia do filme foi sonegada por forças ocultas. Mas o Luiz deu seu recado e tão bem que neutralizou as duas frustrações.  A seguir, pela primeira vez, algo impossível aconteceu: renomados psiquiatras, que se maldiziam longe uns dos outros, sentaram-se lado a lado no palco da Faculdade e mostraram que a psiquiatria, aos olhos dos não-psiquiatras, estava flagrantemente obscura, desordenada e até caótica, o que fazia contraste com os altos honorários cobrados de quem podia pagar e até de quem mal podia pagar. Em outra sessão, algo inédito: pacientes, ex-pacientes e representantes de segmentos sociais discriminados também subiram ao palco e também foram ouvidos sem chacota, mas, diferentemente dos profissionais, foram demoradamente aplaudidos. Tudo culminou com o debate inesquecível entre Márcio Vasconcelos Pinheiro e José Guilherme Merquior.
E foi assim que um médico laboratorista, acometido de total compaixão pelos doentes mentais, protagonizou uma das páginas mais luminosas da atenção à saúde neste país.


O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador de História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais