MEU NAMORO COM A CIRURGIA TORÁCICA
João Amílcar Salgado
Ainda
estudante de medicina, salvei a vida do Braz, menino meu conterrâneo e parente,
que estava sendo tratado de tuberculose, mas não melhorava. Pedi a sua tia
que o trouxesse a nossa pensão, na rua Pernambuco,
e logo mostrei seu caso aos professores Luiz Andrés e Javert, que identificaram
uma imagem metálica no seu pulmão. O adolescente era aprendiz na sapataria do
Jaime do Sobém e ali se usava ficar com os ilhoses na boca, antes de aplicados
ao sapato. Aspirou um - e estava feito o diagnóstico. Ficara tão fraco que o o
estudante Edward Tonelli ofereceu seu sangue, logo transfundido pela doutora
Teresa Sebastião. A puberdade refreada ocorreu em dias e ele logo estava ótimo.
No
meu 6º ano, chega dos EUA o Cid Filgueiras que me fez seu auxiliar favorito. Bênção
do alto que me fez conhecê-lo e muito logo era como meu irmão, inclusive por
sermos ex-meninos-prodígios. Ele chegava num pequeno carro inglês, um prefect,
e íamos para um centro cirúrgico qualquer. Casos esquivados dos demais
cirurgiões eram empurrados para ele, que os enfrentava não só devotadamente,
mas com ágil e elegante habilidade. Dizia: vou
fazer de você o maior cirurgião pulmonar. Eu respondia: já sou um médico
irrecuperavelmente polivalente. Foi nosso campeão em esôfago-curto. Mostrou-me
um minúsculo prematuro e disse: vou lutar como um leão para salvá-lo. Tive que
ir a um plantão e quando voltei ele estava no quarto dos internos, deitado na
minha cama e meu travesseiro estava ensopado de lágrimas: não salvara o bebê!
Aquele travesseiro era a prova cabal de que eu era o amigo que jamais teve. Outro
caso foi o do estudante que operamos de bronquiectasia e ficamos a manhã toda
na sala cirúrgica. Afinal, na recuperação imediata, a equipe me disse: agora é
só com você. Fiquei aspirando a copiosa secreção, dia e noite, por duas
semanas. Ele ficou ótimo e hoje é um dos meus grandes amigos.
Compete
com o Cid em minha admiração a dupla José Sílvio / Overholt. Em 1955 e em 1966,
diplomaram-se na UFMG dois gigantescos cirurgiões brasileiros, José Sílvio Resende e Wilson Abrantes,
diamantes forjados entre o ocaso da
hegemonia franco-alemã e o advento da influência anglo-saxônica. O Zé
quis restringir-se à pneumologia, mas logo já dominava qualquer área. Sua
incomensurável cultura médica, construída em continuidade harmoniosa com
admirável cultura geral, em que o biombo de irrevogável modéstia não conseguiu
ocultar o historiador, o beletrista, o orador, o humorista, o líder (formador
de gerações de notáveis discípulos, entre eles quatro colegas meus de turma:
Marcelo Ferreira, Luiz A. Luciano, Ernesto Lentz e Gilberto Lino), o músico
(consangüíneo de Abel Ferreira, conviva de Goiá), o pescador e o sertanista.
O André Esteves de Lima, da turma de 52, que galgou alto prestígio nos
EUA, foi elogiado por Richard Overholt, espantado com seu perfeito domínio
anatômico. Respondeu que ele ficaria mil vezes mais impressionado com o Zé
Sílvio. O maior cirurgião torácico da América imediatamente abriu uma vaga
excepcional no seu serviço de Boston, para ter o prazer de contar com o Zé, que
por questões pessoais não foi. Overholt hoje é conhecido como o iniciador da
guerra médica contra o tabaco, resultante de sua experiência com o tumor
pulmonar. Ele ficara célebre como o primeiro a fazer uma pulmonectomia direita
para tratar esse tumor, mas acabou confessando que eliminou mais tumores
combatendo o tabaco do que com o bisturi.