João Amílcar Salgado
quinta-feira, 1 de setembro de 2016
terça-feira, 9 de agosto de 2016
IVO PITANGUY
A mais requintada expressão da cirurgia mineira
João
Amílcar Salgado
Era
julho de 1946, eu estava no 3º ano de primeiras letras e acompanhava a animação
em minha casa por causa da formatura naquele final de ano de meu tio, Aprígio
de Abreu Salgado (saneador da malária sulmineira, sem o que não haveria
Furnas), que morava conosco. Na casa em frente residia a dona Sinhaninha, prima
de minha mãe, e ali estavam dois outros formandos: o filho dela, Adauto Barbosa
Lima (cardiologista de nossa primeira circulação extracorpórea), e o primo
deste, Oscar Resende Lima (proeminente docente de psiquiatria da USP). E na
cidade havia um quarto formando, filho de grande amigo de meu pai: Alberto
Sarquis (admirável médico integral). Aquela cidadezinha, Nepomuceno, que
raramente formava um médico, naquele ano formava nada menos do que quatro e
numa das mais brilhantes turmas da Universidade. Lembro-me bem que o Adauto e o
Oscarzinho orientavam o Aprígio e o Alberto sobre a casimira que deviam
vestir na festa.
Em
meus verdes nove anos, mal sabia que conviveria longamente com outros formandos
daquele ano, em minha carreira docente na mesma Faculdade que os graduou. E mal
sabia eu que estaria aqui hoje a saudar o astro insigne dessa turma de
estrelas, o scollar Ivo Helcius Jardim de Campos Pitanguy. Por este
nome, que é um verso alexandrino, percebe-se que seus pais, o cirurgião Antônio
Campos Pitanguy e a beletrista Maria Stael Jardim, eram poetas, e com poesia
profetizaram a especialidade do filho, eis que a cirurgia plástica nada mais é
que o ramo da medicina mais próximo da expressão estética.
A
medicina mineira tem bela história a dizer ao mundo. Esta afirmação eu a fiz
nos 90 anos de nossa Faculdade Máter e a repeti em seu centenário, no ano
passado. Não cabem aqui as páginas que listem as impressionantes primazias
mineiras. Basta dizer que são mineiras as maiores contribuições brasileiras à
ciência: a descoberta da doença de Chagas por Carlos Chagas e a da bradicinina
por Wilson Beraldo, além de serem egressos desta mesmíssima Faculdade o maior
presidente brasileiro: Juscelino Kubitschek, o maior memorialista lusófono:
Pedro Nava, e o mais original prosador do idioma: Guimarães Rosa.
Cabe, contudo,
acrescentar que Baeta Viana, paraninfo dessa formidável turma de 1946, se
coloca ao lado desses cinco gigantes, não por alguma descoberta científica, mas
por ter descoberto um conjunto harmonioso de cientistas pré-clínicos, um deles
Beraldo, e outro conjunto, não menos esmerado e influente, de clínicos
cientistas e cirurgiões cientistas, um destes, Ivo Pitanguy.
E o
apostolado científico desse paraninfo fez dele um engajado político, pois em
1946 ele era apontado como uma das alavancas que fendilharam a sólida ditadura
Vargas. Então essa turma está na história do Brasil como aquela que celebrando
a ciência em Viana, celebrou nele a democracia, que ele pregou irmã daquela. E
mais, é a turma que, na memória deste país, realizou algo inédito: teve a
audácia de, homenageando o herói Eduardo Gomes, projetá-lo como candidato à
presidência da República.
Minas está bem presente
na personalidade do maior cirurgião plástico do mundo. Sim, Ivo Pitanguy deve
ser considerado uma das personalidades simbólicas do fenômeno antropológico
muitas vezes chamado de “jeito mineiro de ser”. Se seu jeito é este,
impõe-se perguntar: que menino e que adolescente foi ele?
De acordo
com a tradição, infelizmente abandonada, na turma de 1946, cada formando foi
retratado em soneto jocoso, assinado por autor incógnito (certamente João Vale
Maurício), sendo Ivo Pitanguy assim descrito: “Esse rapaz tem vocação
“cortante” / Seu destino é pegar... no bisturi / Tem esse nome lírico e
cantante: / Hélcio Jardim de Campos Pitanguy // O seu “campo” de estudo é a
Anatomia / O seu esporte: tênis, natação / E encerra a vida nessa trilogia: /
Uma raquete, um bisturi, um calção. // ... ... ... // “
Em verdade, no
humor do texto está resumida a admiração que causava. Trazendo, nos sobrenomes
Jardim e Campos, heráldicas raízes coloniais mineiras, o estudante Ivo, filho
de estimada família da Capital, fez parte da juventude dourada dos anos
dourados belorizontinos. Este ambiente hoje é bem conhecido graças ao sucesso
do livro O ENCONTRO MARCADO, de Fernando Sabino, de 1956, sendo que
Hélio Pellegrino, um dos protagonistas, foi contemporâneo (turma de 1947) de
Ivo na Faculdade.
Desse já tão alto
promontório despontou a vocação irresistível de Ivo Pitanguy para conciliar o
tradicional e o moderno. De imediato, impressionou seus colegas universitários,
afeitos ao francês do Testut, com o acréscimo do inglês e assim alargou o
alcance de sua formação humanística, trazida de berço. Igualmente, aos
hábitos ancestrais das famílias mineiras ajuntou o culto ao esporte, abrangendo
da natação ao tênis e à luta marcial. Acrescente-se depois sua desenvoltura
internacional, em estágios nos melhores centros médicos dos EUA, da Inglaterra
e da França e decorrentemente como conferencista em congressos e como formador
de centenas de especialistas oriundos de dezenas de países. Tudo isso
alicerçou o estilo original e perfeccionista que imprimiu à especialidade que
escolheu, tornando-se figura singular e inigualável no panteão mundial da
cirurgia plástica.
No Rio, onde
cursou o sexto ano de sua graduação, foi-lhe oportuno fazer profuso atendimento
a pequenos e grandes traumas em pronto-socorro. Isso lhe deu a inspiração para
organizar inéditos e modelares serviços, na 38ª Enfermaria da Santa Casa
e em atendimento privado. De tais realizações, sua liderança e seu carisma
extraíram novo pioneirismo, desta vez em pedagogia: criou, em 1960, a primeira
pós-graduação cirúrgica formal no Brasil, pela Pontifícia Universidade Católica
carioca.
Além de
cirurgião plástico, com numerosos discípulos, clientes e admiradores,
multiplicados pelo Brasil e pelo mundo, entre os quais várias celebridades, foi
inevitável que se tornasse autor de livros científicos e literários, alguns em
co-autoria. Escreveu MAMAPLASTIAS (1976), CIRURGIA ESTÉTICA DA CABEÇA E CORPO
(1981, em inglês, prêmio de melhor obra científica do ano, na Feira
Internacional do Livro de Frankfurt), OPERAÇÕES PLÁSTICAS DA ORELHA (1982,
bilíngüe), DIREITO À BELEZA (1984, trilíngue), ANGRA DOS REIS – BAÍA DOS REIS
MAGOS (1986), UM JEITO DE VER O RIO (1991), PARATII-PARATY (1992), APRENDENDO
COM A VIDA (1993), ATLAS DE CIRURGIA PALPEBRAL (1994), APRENDIZ DO TEMPO
(2007), CARTAS A UM JOVEM CIRURGIÃO (2008). Em 2011 o escritor e jornalista
John Holzer lançou nos EUA um livro consagrador sobre Pitanguy, prefaciado por
nada menos que Denton Cooley, o extraordinário implantador e transplantador de
corações.
Com a
experiência e a erudição que Ivo Pitanguy acumulou, verifica-se, por seus
textos, que afinal desenvolveu uma espécie de filosofia estética, na qual se
percebe também inovador ingrediente ecológico. Aristóteles, Vitrúvio e
Michelangelo lhe invejariam as oportunidades de ter lidado não só com os mais
belos, mas com os mais defeituosos e variados corpos humanos imagináveis, em
impressionante amostragem internacional, tendo como ponto de partida a
esplêndida composição racial nativa.
Do rococó
diamantinense ao multifacetado Rio de Janeiro, do trópico brasileiro ao
sofisticado burburinho internacional, Ivo Pitanguy não nega e nem procura
esconder sua venusta radicalidade mineira. Ao contrário, é dela a fronte e a
insígnia, em entalhe e lavor ao pé da letra.
O autor é
professor titular de Clínica Médica da UFMG e criador do Centro de Memória da
Medicina de Minas Gerais. Texto de 2012, quando saudou Pitanguy a convite de LOR
domingo, 17 de julho de 2016
BERNIE SANDERS, A SAÚDE E A EDUCAÇÃO
João Amílcar Salgado
Com
Bernie Sanders aconteceu agora o que antes não aconteceu com outros candidatos,
que tentaram sem êxito inovar o debate sucessório nos EUA. Para mim ele foi
grata surpresa, que se somou a grata mensagem que recebi. Um amigo de lá, que
se tornou admirador de minhas ideias sobre saúde e educação, brincou comigo,
logo que Sanders começou a aparecer no noticiário. Ele me interpelou: jure
que não foi você que escreveu a plataforma de Sanders para saúde e
educação!?... Depois de rirmos, ele acrescentou:- falando sério, quando li a
plataforma dele pensei: já ouvi isso de alguém, em algum lugar e com a mesma
oratória ... e tinha sido de você !!!...
De fato, em 1986, houve um diálogo meu com um chefão da
medicina ianque. Ele era o editor do livro do Harrison de medicina interna. Em
minha exposição sobre ensino da medicina nas Américas, eu criticara os líderes
da medicina dali, que eram excelentes em diagnóstico clínico e pareciam incapazes
de diagnosticar o plano inclinado em que resvalava a assistência médica
oferecida à maioria de seus conterrâneos. Ele retrucou que o horizonte
assistencial dele não ultrapassava os limites dos melhores hospitais
universitários do mundo e que, enquanto estes não decaíssem, tudo estaria bem. Pois bem, Sanders repetiu agora o tal
diagnóstico, documentando que nada está bem. Diagnóstico este referente não só
à saúde como à educação - e a esta
também eu me referira. E a Hillary já concordava com isso e só não o externou
por medo da poderosíssima indústria de saúde, de quem ela vem sendo vítima
contumaz.
Do que eu disse não houve mérito nenhum de minha parte,
pois todos os estudiosos sérios fora dos EUA diriam o mesmo. A grande novidade
e a grande esperança é Sanders dizê-lo nas circunstaâncias em que o fez.
terça-feira, 28 de junho de 2016
HELENA GRECO
HONRA A LUMINOSA GALERIA DAS MULHERES DE MINAS
João Amílcar Salgado
O primeiro dos Grecos que conheci foi o Armando Greco, da
turma de médicos de 1944, da hoje Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Eu era estudante de medicina e o ouvi na Associação Médica, em debate sobre o
abuso de antibióticos. A medicina estava em lua de mel com os antibióticos e os
hormônios, resultantes da segunda guerra mundial. Pela primeira vez alguém me
dizia dos perigos do abuso de medicamentos cada vez mais eficazes e
principalmente do abuso induzido por propaganda. Ele passou a ser meu herói
pela coragem em desafiar poderosos interesses. Mas fiquei amigo próximo foi de
seu irmão José Bartolomeu Greco, da turma de 1937, que não gostava do nome
Bartolomeu e exigia ser tratado de J. B. Greco. Alergologista pioneiro em
Minas, era casado com sua prima Helena, diplomada em farmácia no mesmo ano de
1937, e, quando o filho Dirceu, da turma de 1969, foi meu residente em clínica médica, os Grecos
passaram a ser como gente de minha família.
O prazer,
com que JB percorria as estantes de sua biblioteca apontando livros, citando
frases e me pedindo opinião a cada passo, me é inesquecível e me diz que ele
reciprocamente me considerava um filho. Ou melhor, eu não lhe figurava um filho
mas um irmão na admiração filial a Carlos Jiménez Diaz, o insuperável clínico
madrileno. A foto deste, que encimava suas estantes, foi-me legada com imensa
ternura. JB foi também meu parceiro em historiar o pombo-correio como elemento
inaugural da telemedicina em Minas. Já
Dirceu veio a ser um dos frutos vitoriosos da iniciação científica ligada à
inovação pedagógica, de repercussão internacional, vivida na medicina da UFMG,
nos anos 70 e 80 do século 20. Culminou como astro internacional do aplaudido
programa brasileiro contra a AIDS.
Poucos
sabem que Helena Greco participou dessa inovação. Quando Agostinho Patrus foi
empossado presidente da Associação Médica mineira, teve a audaz iniciativa de
revolucionar a Revista da agremiação. Dirceu Greco e Antonio Dilson Fernandes,
com minha participação, em 1974, passaram a inserir ali artigos anticonsumistas
do
The Medical Letter On Drugs And
Therapeutics, editado nos EUA. Dirceu indicou para tradutora, sem ônus, sua
mãe Helena, que, além de poliglota, era considerada imbatível, no país, no jogo
de palavras-cruzadas em qualquer idioma.
Essa colaboração inestimável era coerente com a tradição dos Greco na
trincheira anticonsumista e também da
ética na ciência, que inclui Armando, JB e Dirceu Greco. O sucesso das
traduções de Helena Greco permitiu a Adelmar Cadar expandir o alcance da iniciativa, quando
utilizou a moderna gráfica do então INAMPS para levar a cada médico e a cada
estudante de medicina o Boletim de Medicamentos & Terapêutica (até
1987), neste caso com tradutor remunerado.
Enquanto
isso, Helena Greco se fez ativista contra a tortura ocorrida desde o golpe de
1964 e em favor dos desaparecidos políticos, bem como contra a opressão de
qualquer natureza: dos menores, mulheres, negros, indígenas, estudantes,
homoafetivos, sofredores mentais, encarcerados, moradores de rua, pessoas sem
teto e sem terra e o povo palestino. Apoiou também a radiofonia e a tevê comunitárias.
Foi fundadora do Partido dos Trabalhadores, em sua proposta inicial, ao lado de
Sergio Buarque, Antônio Cândido, Paulo Freire, Leonardo Boff, Betinho (Herbert
Sousa), Apolo Heringer, Carmem Lúcia Antunes e Ayres Britto. Daí se tornou vereadora de 1982 a 92. Por causa dessa militância, sofreu atentado a
bomba, outras ameaças físicas e de prisão, grampeamento telefônico, agressões
morais e processo judicial.
Acompanhei de perto, mas sob equânime neutralidade política, toda essa
magnífica trajetória. De tal testemunho concluo que a estatura histórica desta
incrível mulher ainda não foi devidamente percebida e, portanto, avaliada.
Conservo entre minhas mais sensíveis lembranças a cena quando em sua casa me
apresentou a visitantes ilustres, ali chegados de dentro e de fora do país.
Abraçando-me entre ela e o esposo, recomendou-lhes ouvir meus “causos mineiros”
e acrescentou que ela e JB sempre disputavam qual repertório gostariam de apreciar, se sobre
politica mineira ou se sobre história da medicina. Aproveitei para dizer
àqueles convivas que minha mais recente pesquisa histórica consistia em
verificar o possível parentesco de Helena Greco, por sua ascendência materna,
com nada menos que Anita Garibaldi. E, apontando o casal, declarei: as
brasileiras Helena e Anita entregaram seus corações a dois “italianos”.
O autor é professor titular de Clínica
Médica da Universidade Federal de Minas Gerais e criador do Centro de Memória
da Medicina de Minas Gerais
sexta-feira, 10 de junho de 2016
HÉLIO
GARCIA SE FOI - E QUE ISSO TEM A VER COM NEPOMUCENO?
João Amílcar Salgado
Hélio
Garcia é personagem controversa na política brasileira. Mas, neste momento,
devemos esquecer seu lado controverso e considerar que, tendo sido prefeito da
Capital, deputado e governador do Estado, ele está obrigatoriamente na história
de Nepomuceno. Digo isso não em homenagem a ele, mas a seu pai, o nepomucenense
Júlio Garcia. Júlio foi grande amigo de meu pai e não saia de nossa farmácia. Ali
foi um daqueles que confessaram ter feito de sua frequência à roda da farmácia
verdadeiro curso universitário, onde adquiriu cultura e principalmente seleto
conhecimento político. Foi um dos jovens que passaram a abraçar os ideais da
Revolução de 30. Quando foi morar em Santo Antônio do Amparo, fez-se líder
daquela comunidade e procurou aplicar ali tais ideais.
Outros
pontos em comum da biografia de Hélio com Nepomuceno são os seguintes: A) Ele
disputou o governo estadual com Pimenta da Veiga e essa foi uma disputa de dois
filhos de nepomucenenses. B) Ele foi sucedido por Newton Cardoso, em 1987, e,
no apoio que deu a este, influiu a deputada Maria Elvira Sales Ferreira, também
filha de nepomucenense. C) Durante seu
governo estadual, iniciado em 1991, eu próprio fui representante do governo
federal, através da UFMG, na Secretaria Estadual da Saúde, de onde várias
propostas sobre saúde e educação, elaboradas em Minas, foram aproveitadas pelo
governo central.
Pitoresco
foi um episódio com o Dr. Décio Lourenção. Numa reunião política na Capital, um
deputado ouviu dele que era parente do governador. O parlamentar duvidou preconceituosamente
de tal informação, alegando desconhecer que Hélio tivesse primos italianos. O
queridíssimo Dr. Décio ficou “picado” e me procurou para que eu documentasse o
parentesco. E esfregou o quadro anexo na
cara do cético.
quinta-feira, 2 de junho de 2016
CARLOS RIBEIRO DINIZ
João Amílcar Salgado
Nasceu em Luminárias, de pai de
família trespontana e mãe de família nepomucenense. Foi um dos três maiores discípulos do
cientista Baeta Viana (ele, Beraldo e Veiga Sales) e quando faleceu era o maior
bioquímico do Brasil. Sem ele a FAPEMIG não teria sido criada, nem a empresa
BIOBRAS, esta a primeira a fabricar insulina no 3º mundo. Estava para escrever
um livro sobre a genealogia de sua família e sobre o sul de Minas, junto com o
escritor Antônio Cândido e comigo. No início, outro coautor seria o
farmacologista José Ribeiro do Vale, seu parente. Ligada a isso, a ideia de se criar a Unicamp
foi dele. Ou melhor, ele formulou uma universidade nos moldes da Unicamp, que
seria criada no sul de Minas. O golpe militar impediu que a ideia avançasse e
os paulistas a aproveitaram para criar a Unicamp, inclusive com o apoio dele.
Diniz influiu para que Caxambu
abrigasse reuniões periódicas agradáveis de cientistas, de modo a se interfecundarem.
Numa das primeiras, numa roda de cerveja, ele pegou um guardanapo e nele listou
os sulmineiros atuantes em universidades e setores tecnológicos do país. E disse, se fizéssemos a revoada deles para
uma cidade como esta, teríamos a melhor universidade brasileira e equidistante de Rio, São Paulo e Belo
Horizonte. Chegou a falar com o reitor Aluizio Pimenta da UFMG que topou
cria-la como campus sulmineiro desta, sendo Diniz o captador de recursos. Tendo
sido concretizada em Campinas, a coisa não deixa de ser de certo modo
sulmineira, pela proximidade e pela gente do sul de Minas que colonizou o
noroeste paulista. Mas a tal revoada foi substituída, sendo esperado o afluxo, não
de mineiros ou paulistas, mas de cientistas
de qualquer parte. O próprio Diniz sugeriu que eu fosse chamado a Campinas para
dar sugestões sobre a transferência da faculdade de medicina do centro da
cidade para o campus.
Também antes do golpe, em 1963, Carlos
Ribeiro Diniz, Marcos dos Mares Guia,
Zigman Brener, Amílcar Martins, líderes do diretório acadêmico, um deles
Henrique Santillo, e eu (recém-formado) nos reunimos para propor que, entre as
chamadas reformas-de-base do governo João Goulart (educacional, tributária,
eleitoral, agrária e urbana), fosse incluída a da indústria farmacêutica.
Defendíamos a criação da Farmacobrás, espelhada na Petrobrás. Carlos Ribeiro
Diniz argumentou que a escola bioquímica de Baeta Viana era a única a dominar
de fato a enzimologia no hemisfério sul. E isso na terra do mamão e do abacaxi,
fontes ultra-disponíveis dos dois mais potentes enzimas proteolíticos vegetais. Daí que cumpria aos bioquímicos
mineiros a missão de fabricar medicamentos para o povo brasileiro, a partir de
tais privilégios. A concretização dessa ideia era mais plausível após a
reeleição de JK em 1965, mas, sob a
ditadura, foi modificada e limitada à criação da Biobrás.
Convidei o Carlos Diniz para conhecer
a paciente Berenice (a primeira diagnosticada com a doença de Chagas), numa
internação desta, para revisão no Hospital das Clínicas. Entre vários assuntos
ele me perguntou como andavam os estudos sobre a domiciliação do triatomíneo. Estava
interessado em fazer estudo semelhante sobre o escorpião amarelo e aproveitou
para lamentar a ocultação do nome completo do professor Osvaldo de Melo Campos
como autor da descrição desta espécie.
São exemplos de como o pensamento original deste homem genial era
incessante e quase sempre na contramão do saber estabelecido. Dias depois, após
ouvir meu protesto contra a negação do premio Nobel a Carlos Chagas, ele me
sugeriu. verificar sua suspeita de que o Instituto Karolinska fora financiado
por um médico sueco, que havia ficado rico no sul de Minas. Ou seja, este
médico prosperou perto de onde nasceu Carlos Chagas.
No episódio da invasão da Faculdade de
Medicina em 1968, correu altíssimo risco, ao enfrentar a ditadura, colocando-se
no meio dos invasores, protegendo-os e apoiando-os.. Dez anos depois Diniz
organizou o 4º Simposio Nacional de Pós-Graduação nas Áreas das Ciencias da
Saúde, na Faculdade de Medicina da UFMG, e minha participação ali foi de alerta
contra a SÍNDROME DAS MULETAS SUCESSIVAS. Nosso temor era de que o fenômeno por
mim denunciado, de que a residência médica não passava de muleta da má
graduação já se estendera a toda a educação. Cada ciclo, cada etapa, cada
modismo não passava de corretivo da má etapa anterior. Nessa época já se
começava a falar em pós-doutorado. Denunciamos então o desvirtuamento do
mestrado e do doutorado, como títulos voltados ao mercado de trabalho, em vez
de qualificação docente. Logo a seguir o mesmo alerta foi feito por Paulo
Vanzolini.
Em
1974, Carlos Diniz me entregou o livro A FARMACOPÉIA TIRIYÓ - ESTUDO
ÉTNO-BOTÂNICO (1973), de Cavalcante & Frikel, do Museu Goeldi. Perguntou-me se aquilo estava previsto em
nossa inovação curricular e lhe mostrei a disciplina optativa que seria
proposta no seminário daquele ano, denominada
TERAPIAS NÃO CONVENCIONAIS e ele sorriu feliz, mas disse que seríamos
metralhados pelos conservadores do Instituto de Ciências Biológicas, o que de
fato aconteceu. Naquele dia, enquanto eu folheava o livro, ele me perguntou: você
sabia que o Museu Goeldi deveria ser chamado de Museu Domingos Ferreira Pena,
um mineiro genial, o verdadeiro fundador da instituição? Da memória indígena frutificou a idéia da fabricação de licor de marolo e de gim de mangarito e também do cultivo de
amendoim proteico, obsessão de Armando Gil Neves, seu devotado admirador.
Toda vez que Diniz aparecia no
Centro de Memória eu me preparava para saber o que ele fora ali me dizer ou
mostrar. Numa das últimas vezes ele entrou com um homem chamado Baldomero
Oliveira, um indígena filipino. Disse-me: você pode estar sendo apresentado a um
descobridor histórico; ele estuda desde 1970 poderoso veneno de um molusco, com
o qual sua mãe lhe aliviara, na infância, a dor atroz de um abcesso dentário; achei que
você poderia fazer com este analgésico um ensaio terapêutico semelhante ao ensaio
que fez com a cimetidina. Não fiz o ensaio porque já estava em
andamento o desmonte das universidades públicas. .No caso do captopril, basta
dizer que, nos EUA, ao falar ali sobre cininas, Diniz foi contactado pela
Squibb, bem antes da tese do Sérgio Ferreira.
Finalmente sobre a FAPEMIG, lembro-me
de que Carlos Diniz veio dizer-me que sonhava embutir o amparo à pesquisa na
constituição mineira, mas estava pessimista. Perguntou-me se eu tinha condições
políticas de reforçar a proposta. Respondi que eu seria ouvido por gente
influente. Reuni amigos e conterrâneos entre estes Cid Veloso (1º reitor
eleito), Antônio Cândido Carvalho (líder docente de Medicina), Antônio Dilson
Fernandes (líder docente de Medicina), Ênio Leão (líder docente de Medicina),
Tarcício Campos (líder docente de Farmácia), Élvio Moreira (líder docente de
Veterinária), Oder Santos (líder docente de Educação), Joaquim Carlos Salgado
(líder docente de Direito), Ângelo
Machado (líder docente de Ciências Biológicas), Jota Dângelo (líder cultural), Airton
Dutra (líder cultural), Jarbas Juarez (líder no meio artístico), Célio de
Castro (médico e político), Carlos Becker (médico e político), Antonio Cordovil
de Freitas (político e líder no meio jurídico), Luiz Fernando Maia (líder sindicalista),
Eliane Souza (médica líder sindicalista), Apolo Lisboa (ativista docente),
Jésus Fernandes (ativista estudantil) e outros ativistas da UNE. Depois de
aprovada a Fundação, embora não da forma plenamente desejada, Diniz veio
agradecer o apoio que considerou decisivo.
Em síntese, ideias de Carlos Ribeiro Diniz
foram o motor inicial de universidades, indústrias, mudanças institucionais,
linhas de pesquisa e descobertas científicas, de que ele jamais reivindicaria a
paternidade, mas em que o historiador diligente sem dúvida detectará o DNA de
sua liderança fecundante. Além disso, soube sabiamente ser o homem de cada
década. Seu mestre Viana foi o
legítimo tenentista da ciência brasileira nos anos 20 do século 20, mas não
vacilou em ser constitucionalista nos anos 30 e veio a ser nos 40 poderosa arma
contra o Estado Novo. Em seu rastro, o discípulo Diniz, na década de 50, lutou
pelo desenvolvimentismo que se estendesse dos alicerces à vanguarda da ciência.
Na década de 60, vale repetir, lá estava ele na Faculdade de Medicina, não ao
lado do diretor, mas dos estudantes conflagrados contra a ditadura militar,
junto a Amílcar Martins e a Noronha Peres, na histórica invasão de 1968, no
mesmo dia da correspondente invasão da
Sorbonne. Na de 70, já estava mergulhado
em outro desafio, sem temer a controvérsia: era a edificação do Instituto de
Ciências Biológicas. Na de 80, estava prolongadamente entrincheirado na
mencionada proposta da FAPEMIG.
Na década de 90, em vez de escrever
seus textos memorialísticos, sempre adiados, seu devotamento foi estendido à
Fundação Ezequiel Dias, onde sua presença vem impedindo que o deliberado
desmantelo de organizações públicas soterre aquela instituição, referência dos mais caros sonhos de Minas ligados à
ciência. Deslocou-se a esta nova trincheira, além disso, para “injetar métodos
bioquímicos, herdados de Baeta Viana, nos métodos biológicos, herdados da
tradição de Vital Brasil, Carlos Chagas e Osvaldo Cruz”. Por exemplo, aposentar
os cavalos fornecedores de soro antipeçonha, substituindo-os por tecnologia
molecular. Assim, o mais notável dessa onipresença politico-institucional é que
ela nunca foi pretexto para diminuir sua enorme e retilínea produção
científica, repleta de contribuições de indiscutível relevância, e que à
primeira vista seria própria não deste quixote bem sucedido, mas do mais
recluso homem de laboratório.
Quando faleceu, a Funed o homenageou e
fui chamado para falar. Não costumo aceitar incumbências assim, mas no caso
dele não trepidei. Encerrei com uma comparação entre o Diniz e um político
mineiro que indignava Tancredo Neves, por usar raro talento oratório para
enganar todo o mundo. E concluí: todos nós nos afligimos com a dificuldade do
Diniz para expressar suas mais geniais ideias; ora pois, enquanto o Diniz é
maravilhosa fluência de ideias com dificuldade para expressá-las, esse político
é maravilhosa fluência verbal à procura desesperada de mínima ideia que tenha
algum valor. Este cientista-patriota, este professor-empreendedor, este
cidadão valente - de posições sempre socialmente impecáveis e em sintonia
constante com a juventude de seus alunos - deve passar a ser, nos dias
mesquinhos e conturbados de hoje, o símbolo de perseverança em prol da vocação
de grandeza deste país
O autor é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de
Minas Gerais e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais
sexta-feira, 8 de abril de 2016
AGRIPA
VASCONCELOS
Mineiro, médico,
poeta, historiador e ficcionista - a ser entronizado ao lado de Nava e Rosa
João Amílcar
Salgado
Agripa
Vasconcelos foi homenageado em 8/4/16 na Academia Mineira de Letras por seus
120 anos. Ele e Arnaldo Antônio Elian, também médico, são nascidos em
Matozinhos, Minas. Com ambos, Matozinhos sobressai no mais seleto cenário da
medicina brasileira. Os Vasconcelos são
vasta família no Brasil, principalmente em Minas. O primeiro historiador de Minas é Vasconcelos
e o segundo é seu filho. Ambos são Diogo. Daí que para um terceiro seria fácil
ser o inconfundível autor de obras-primas, na categoria da
ficção histórica.
No Centro
de Memória da Medicina estudamos seis aspectos de Agripa pouco conhecidos: 1) o
médico, 2) o orador de sua turma, 3) o historiador atrás do ficcionista 4) o
poeta, documentado por sua filha Mara Mancini,
5) sua amizade com o erudito médico lavrense Ataúlpho Costa Ribeiro, desassombrado nietzschiano, a quem presenteou
com o soneto ADOLESCENTE, inédito, 6) sua atividade clínica em Patos de Minas,
pesquisada pelo médico e historiador Giovanni Caixeta Ribeiro. Na faculdade do
Rio, foi colega do notável médico Agostinho Paolucci, de Barbacena. No livro
AGOSTINHO PAOLUCCI O APÓSTOLO DA MEDICINA (2010), que o filho Ruy Carlos, outro
notável médico (e também artista plástico e humanista) publicou, é possível ter
ideia do curso médico de Agripa e, decorrentemente, de sua competência clínica.
De minha parte, além de apreciá-lo como historiador de Minas e historiador da
medicina, o incluí no estudo comparativo de oradores de turma: além dele,
Carlos Drummond, Odilon Behrens (contraposto a Pedro Nava) e Guimarães Rosa
(contraposto ao paraninfo Samuel Lib|ânio).
A filha
Mara, na aula que deu sobre o pai no Curso de História da Medicina, emocionou a
todos e foi ovacionada pelos estudantes quando, com imensa doçura e perfeita perfórmance,
declamou CHUVA DO MAR.
CHUVA DO MAR
(No baixo e no médio rio Doce, chamam as
chuvas temporárias, chuvas do mar - talvez por serem
trazidas pelos ventos do Atlântico.)
Quando
Raquel casou, naquela tarde mansa,
Vi desfeito de vez meu sonho de criança...
Um desespero atroz meu ser avassalou !
Mas alguém que conhece os mistérios do mundo
Num sussurro me disse um conselho profundo:
- Isso é chuva do mar. Vai passar.
E passou.
Um desespero atroz meu ser avassalou !
Mas alguém que conhece os mistérios do mundo
Num sussurro me disse um conselho profundo:
- Isso é chuva do mar. Vai passar.
E passou.
Quando,
ainda mocinho, eu senti, doido de ira,
Que, parecendo certo, era tudo mentira
O amor que me jurara a pérfida Margot.
Quis morrer - mas alguém que conhece esta vida
Me falou, sem calor, mas em frase sentida:
- Isso é chuva do mar. Vai passar.
E passou.
O amor que me jurara a pérfida Margot.
Quis morrer - mas alguém que conhece esta vida
Me falou, sem calor, mas em frase sentida:
- Isso é chuva do mar. Vai passar.
E passou.
Quando
Ofélia seguiu seu destino sombrio,
Senti, como ainda sinto, o coração vazio!...
Faz tanto tempo já que nem sei mais quem sou !
Mas quem viu em meu pranto uma simples garoa
Quis em vão me dizer uma palavra boa:
- Isso é chuva do mar. Vai passar.
Não passou.
Faz tanto tempo já que nem sei mais quem sou !
Mas quem viu em meu pranto uma simples garoa
Quis em vão me dizer uma palavra boa:
- Isso é chuva do mar. Vai passar.
Não passou.
[Apud blogue Agripa]
Já o
soneto guardado como troféu por mestre Ataúlpho, transcrevemos aqui:
ADOLESCENTE: No citoplasma do ovo, ao gene, obscura, / Na química fatal do cromosoma, / Foste gerada com a dourada coma / Ao calor da genética mais pura! // Produto de um calor que ainda
perdura, / Num salto mendeliano,
agora assoma / Teu vulto esbelto que é o resumo, a soma / De protoplasmas que o
calor mistura. // Na tua biologia
recessiva, /Não teu pai – tua mãe
é que está viva, / O gene dela é
que prevaleceu // Tu que vens de
uma antese clara e bela, / Já te
cobri de beijos dados nela/ E beijo em ti aquela que morreu.
Para Agripa, vale mais a devoção da neta Mara, que, nesta data, realiza em homenagem ao avô o que todos os
grandes de nossa historia e de nossa literatura sonhariam para si.
O
autor é professor titular de Clínica Médica e criador do Centro de Memória da
Medicina de MG na UFMG
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