JOSÉ NIEVAS
João Amílcar Salgado
Na
Casa Rosada, mansão para recepções em Belo Horizonte, estava sendo brindado um
casamento de família nepomucenense. Já
ao chegar, fui conquistado pelo som acolhedor do conjunto do Vinício Tiso.
Entre os músicos me chamaram a atenção a flautista Taciana, doce filha do
Vinício, que tão cedo nos deixou, e o violinista argentino José Nievas.
Nievas,
apesar de gordo e idoso, irradiava juvenil entusiasmo nos acordes de um tango.
Quando a execução fez pausa, quis conversar com ele, mas o tanguista estava
mais interessado nas guloseimas ali distribuídas. Só após vê-lo bem alimentado,
pude fazer-lhe a pergunta que atravessava minha garganta: Nievas, você
já ouviu falar num tango chamado MILONGUITA?
Surpreendeu-se
com o pedido, fez um olhar longínquo e a partir daí ignorou tudo ao redor. Como que refugiado num nostálgico recanto de
seu passado, passou a cantar MILONGUITA.
Fiquei paralisado de emoção pois, por longos anos, desejava ouvir a canção. Comprei
todas as coleções de tango existentes no Brasil e na Argentina e nenhum disco
ou fita a trazia. Sequer era mencionada nos textos históricos. Quando terminou,
perguntei quem a cantava e ele sorrindo disse: la Praguayita e emendou: ela
era linda!...
No
final da década de 30 uma linda paraguaia apelidada de La Paraguayita fez
sucesso na Argentina e percorreu várias cidades brasileiras, inclusive
supostamente Lavras. O nepomucenense Eurico César Antunes de Almeida, se
apaixonou pela artista e colocou em sua filha o nome de PRAGUAGITA. Nós a
chamávamos de GIGITA, pois ela própria detestava o nome original. Veio a se
casar com meu queridíssimo primo, Marcli Vilela, ele próprio de nome incomum.
Logo em seguida o irmão do Eurico, José, se juntou a meu pai para fabricar a
mais célebre cachaça da cidade. Eurico, José e João Salgado não tiveram dúvida
em denominar a cachaça de MILONGUITA, associando o sucesso da bela cantora ao
da deliciosa bebida. Na cortina que recobria a tela do cinema da Samina, havia
uma propaganda redigida por meu pai: MILONGUITA – O APERITIVO QUE VALE UMA
CANÇÃO.
Só
depois de adulto eu quis ouvir aquele tango e não o conseguia, até encontrar o
Nievas. Outro tanguista entranhado era Juscelino Kubitschek e nessa mesma época
trouxe para tocar no Cassino da Pampulha a orquestra típica de Francisco
Canaro, que chegou com a cantante Libertad Lamarque e o cantante José Nievas. Segundo Miltonilo, fiel escudeiro de Juscelino,
a temporada mesclou enorme sucesso a acontecimentos românticos. Canaro e Libertad já estavam no saguão do
Grande Hotel, na rua da Bahia, prontos para viajar, quando topam com o cantor
completamente alheio à partida. Canaro o interpelou e Nievas respondeu que
conhecera Maria da Silva uma linda morena e aqui ficaria. Teve com ela filhos
mineiros, todos muito bem criados.
Francisco
Canaro não teve outra saída a não ser substituir Nievas e conseguiu um
substituto, de voz muito parecida. Assim, hoje pela internete é possível ouvir
a orquestra com o substituto e ter uma idéia de como era o Nievas cantando sob
o comando do notável uruguaio (vejam, por exemplo, www.youtube.com/watch?v=TgI0U3PIfhY).
Coincidentemente
a Libertad Lamarque foi varias vezes substituída, em shows e até no cinema, pela
Leonor Faria, mexicana de voz incrivelmente parecida com a dela. E a Leonor também
passou a morar em Belo Horizonte, casando-se com o Miro (Valdomiro Constant), refinado
violonista da radio Inconfidência. Fui médico do Miro a pedido de seu dedicado
amigo, o goleiro Cafunga, que morava em frente à Faculdade de Medicina e era
juiz do futebol dos universitários
Nievas
foi aluno de canto de Eduardo Bonessi, professor também de Carlos Gardel. Em
Belo Horizonte atuou junto aos maestros Castilho e Delê. Culminou sua carreira
ao integrar o conjunto de cordas de Vinício Tiso, o musicista sulmineiro que
democratizou o violino clássico, além de notável cover de Chaplin. Quando faleceu o Nievas, aos 99 anos, o Vinício
estava inconsolável, associando a perda do dileto amigo à da filha inesquecível.
Ainda
sobre a dita recepção, no final da festa, completei minha saudade, exigindo do
Tiso e do Nievas executarem DESDE EL ALMA, sucesso de Canaro, que muito me
marcou, pois foi a valsa de formatura de minha irmã Neusa, no Clube de
Lavras (www.youtube.com/watch?v=72aRCJHRt_o).
O autor é professor
titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais e criador do
Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais