João Amílcar Salgado

quarta-feira, 5 de setembro de 2018



LUZIA E VITAL BRAZIL VILIPENDIADOS E ULTRAJADOS

Criei um grande museu e assim tenho autoridade para falar sobre o criminoso incêndio do Museu Nacional. Em 1979, ao lado de meus filhos adolescentes, Carlos e João, percorri aquele palácio e jamais imaginaria vê-lo reduzido a cinzas. Ao ver as chamas devorando tudo, pensei que o Michel Temer, que teve várias fortes razões para renunciar, desta vez renunciaria.  E que os ministros da Cultura, da Educação e da Tecnologia, bem como o reitor da UFRJ e o diretor da casa, seriam presos incomunicáveis, antes de qualquer outra providência. Nada disso aconteceu e todos aparecem na tevê, com a cara mais limpa, para explicar o inexplicável - e prometer o que?
O fóssil da Luzia mostra bem a malandra irresponsabilidade dos que deveriam ser guardiães de nossos tesouros públicos. O fóssil foi descoberto em Minas, em 1975, e depois datado e reconstituído, em 1999. Foi então que nós, do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, entramos em contado com pesquisadores amigos, no intuito de trazê-lo para o Centro, onde faria parte do acervo referente aos médicos Lund, Burmeister e Basílio Furtado.   A resposta que nos deram foi que a Luzia sem dúvida era não só mineira, mas a primeira mineira conhecida - contudo, para resguardo de uma peça de tão alta preciosidade, seria difícil encontrar em Minas a segurança como a oferecida pelo Museu Nacional.
Essa mesma malandra irresponsabilidade encontra-se por todos os museus do Brasil, misturando mau-caráter, carreirismo, oportunismo, impunidade, cafajestagem e incompetência. Os museus de Londres, Paris, Nova Iorque, Berlim, México, Vaticano e outros parecem estar higienizados de tal fauna.  Tudo o que aconteceu, no dia 2-9-2018, no Museu Nacional, foi anunciado em outros incêndios de museus brasileiros, principalmente o ocorrido em 15-5-2010, no Instituto Butantã. Nessa ocasião, usei pesadas palavras contra os que se deviam responsabilizar pelo instituto, mostrando que aquilo era apenas a culminância dos desapreços de toda a ordem, sofridos por seu criador o sulmineiro Vital Brazil.
Luzia e Vital Brazil são vítimas mineiras do desleixo, da incúria, do desmazelo, do descaso, da omissão, da negligência e da desídia brasileira.



terça-feira, 14 de agosto de 2018


AS AGUAS-MARINHAS DA RAINHA ELISABETE


Quando fui fazer conferência na faculdade da USP de Ribeirão Preto, em 1979, tive a alegria de ali encontrar meu colega de turma Armando Gil de Almeida Neves. Astro da bioquímica da escola de Baeta Viana, ele examinava uma tese na mesma faculdade.  Ele então me propôs dispensar o carro que me levaria de volta. Era para eu voltar em seu avião. Perguntei: você conhece bem o piloto?, ele pilota bem? E ele: conheço até demais, porque o piloto será um tal de Armando Gil... Como se percebe ele integrou o grupo de colegas ricos que fingiam ser pobre. Sendo neto, é herdeiro do coronel pessedista Manuel de Almeida - o senhor das pedras azuis (águas-marinhas) -, responsável pelo nome de Pedra Azul dado à cidade de seu latifúndio, pleno de gemas. Ao Manuel coube o privilégio de lançar a candidatura Kubitschek a governador. Também foi ele quem dera um conjunto seleto de pedras de sua lavra a Getúlio Vargas. Ao saber disso, Assis Chateaubriand lhe encomendou um punhado de mesma pureza e beleza, de que fez um colar presenteado a Elisabete II. Pediu para escolher sem se preocupar com o preço e Manuel disse que seria grátis como o presente a Getúlio. Juscelino soube que a rainha admirava ciumentamente aquele regalo. Encomendou então uma tiara e Manuel também nada cobrou Com essas deslumbrantes jóias, a rainha aparece ainda hoje nas ocasiões mais nobres.
[Essa é a verdadeira origem de tais aguas marinhas. Na internete apareceram versões inverídicas.]

sábado, 7 de julho de 2018


JOSÉ AFRÂNIO VILELA – ILUSTRE DESEMBARGADOR DESCENDENTE DE TRADICIONAL FAMÍLIA NEPOMUCENENSE ASSUME A VICE PRESIDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS
João Amílcar Salgado
            O ilustre desembargador José Afrânio Vilela, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tomou posse como vice-presidente desta corte no dia 30-6-2018. Mineiro de Ibiá, descende de tradicional família fundadora de Nepomuceno.  Diplomado em direito pela Universidade Federal de Uberlândia, fez brilhante carreira na magistratura mineira. Em sua atividade jurídica tem demonstrado amplo domínio das mais variadas áreas e admirável equilíbrio nos julgamentos mais difíceis. Para isso tem-se valido de vasta cultura geral, atributo distintivo de vários membros eminentes da família Alves Vilela. São-lhe de especial interesse os aspectos históricos de cada assunto que lhe é apresentado, quer na atividade profissional, quer na social. Nesse terreno, aproveitando sua capacidade para o pensamento crítico, exibe insaciável curiosidade pela dinâmica circunstancial dos acontecimentos, notadamente no Brasil e em Minas e mais especificamente no Oeste e no Sul de Minas. De suas vivências e de seus estudos, seus admiradores aguardam um ou mais livros que sem dúvida enriquecerão nosso patrimônio intelectual com preciosa contribuição e até surpreendentes revelações. Já que estamos vivendo período critico de nossa vida politica, inclusive com importante protagonismo de magistrados, a atuação de José Afrânio Vilela, nos pleitos a que for chamado, será benvinda e benéfica, mercê de seu perfil conciliador, sua serenidade e sua liderança nata. Em tal sentido, ele será um dos que nos apontarão um caminho sem traumas, coerente com a tradição dos mais respeitados juristas mineiros.


FERNANDO MASSOTE - O HOMEM DE LA MANCHA DO PORTO DOS MENDES

João Amílcar Salgado
        A família Massote é de Campo Belo e é ligada a Nepomuceno porque dois de seus membros viveram certo tempo em Nepomuceno: o ex-pracinha e bancário Sílvio e o dentista Aloisio. Este e o Bedeu foram os personagens desencadeadores do famoso incidente do cabo de guarda-chuva, num animado baile no Clube de Xadrez. Outro é o médico Píndaro, muito amigo, além de colega de turma e patrício, do Maurício Sarquis -  célebre porque granjeou grande clínica depois que salvou um suicida perto de onde pescava. Mais outro é o jornalista Osvaldo Neves Massote sogro de meu amigo dileto, colega de docência na medicina e escritor Carlos Alberto de Barros Santos. Por fim, e não em menor relevo, verifica-se uma ligação adicional a Nepomuceno, pelo fraterno companheiro de Aprígio de Abreu Salgado, o sanitarista Aguinaldo Massote Monteiro. Ainda mais que é esposo da professora e deputada Marta Nair Monteiro, parente próxima dos numerosos co-munícipes da família Alves Vilela.
            Já o professor Fernando Massote foi figura de importância na luta contra o golpe de 1964. Exilou-se na Bélgica, onde estudou na Universidade de Louvain, e na Itália, onde fez doutorado na Universidade de Urbino, com a tese A EXPLOSÃO SOCIAL DO SERTÃO DE CANUDOS (1981). Docente na UFMG, foi ativo participante da eleição, por voto direto e paritário, do reitor Cid Veloso. Como escritor, é autor de A HISTORIA PELA METADE (2005) e VIAGEM AO SERTÃO (2016).
Fernando foi proclamado por dois de seus amigos nepomucenenses (Luiz Fernando Maia e eu), com o título de o Homem de la Mancha do Porto dos Mendes, onde, na margem campo-belense, foi proprietário de um sítio. Essa denominação é um tributo a sua invejável pugnacidade, em vários movimentos em favor de causas sociais e contra os desmandos de qualquer natureza.


MÁRCIA (ALVES VILELA) DE SOUZA ALMEIDA

João Amílcar Salgado
        Em 2006 recebi das mãos de uma senhora, às vésperas de seus 90 anos, um livro de belo título: SEMEANDO E COLHENDO, que acabara de escrever. Na capa estava estampado seu belo rosto, quando jovem, flagrado em cativante sorriso. Comparei a foto com o rosto ali defronte e me espantei de ver como tantas décadas não foram capazes de desfazer aqueles delicados traços de beleza. Na dedicatória ela escreveu: Ao emérito cientista e cultor das artes, com o carinho e a admiração da prima, Márcia.
            Essa extraordinária Márcia fez bem em deixar registrado o que o casal de educadores Márcia-Manoel Almeida SEMEOU e COLHEU pelo Estado de Minas Gerais inteiro. Admira-me como a Márcia fulgura com desembaraço na rica galeria de mulheres da família Alves Vilela, aclamadas como queridas educadoras: Marta Nair Monteiro, Iracema Vilela Lima, Climar Vilela Paiva, Maria Aparecida Salgado, Neusa Vilela Salgado, Ana Maria Salgado, Mariinha das Dores Lima e Zélia Sacramento Lima.
            Márcia é filha da Dona Micota (Maria Olímpia), uma mâezona da velha têmpera Alves Vilela. Foi a querida dama de Boa Esperança, que ajudou o alfaiate João Rosa, a bem educar seus quase vinte filhos, sendo ambos, por isso mesmo, também notáveis educadores. Ela, exímia na culinária e na costura e ele, na alfaiataria e na música, que obtiveram de cada filho dominar o canto e também um instrumento musical, dominando ele o saxofone, embora tirasse o sustento de tantos, segundo a Márcia, pelo menor instrumento de trabalho – a agulha – a amiga silenciosa e discreta. Dona Micota era filha de Joana Alves Vilela e do poeta Modestino Moreira, sendo Joana filha de Modesto Vilela e de Laura Alves Vilela  (ou seja, curiosamente, a filha do Modesto matrimoniou-se com o Modestino).
            Perguntei ao Carlos Netto, também musicista dorense, se, pelo pendor musical, havia a possibilidade de o saxofonista João Rosa ser parente do compositor Noel Rosa, que tinha parentes mineiros. Netto achou pouco provável. Mas hoje estou em busca de algo mais: o eventual parentesco entre dois Joões Rosas: o sulmineiro João Rosa e o sertanejo João Guimarães Rosa.
            A música é marca tão forte na Márcia que ela recheou seu livro com as letras e partituras das canções que ela (e eu) mais preza. A tradição musical de Boa Esperança, simbolizada em Nelson Freire, no próprio Carlos Netto  e em Afonso Figueiredo Felicori, passa necessariamente por esta família. Mas, nas páginas citadas, o que me encantou em especial é a foto saudosa de João e Micota com a filharada, que poderia ter por legenda: UMA FAMILIA SULMINEIRA TÍPICA E EXEMPLAR

segunda-feira, 14 de maio de 2018


ARNALDO ELIAN – INSIGNE PROPEDEUTA
joão amílcar salgado

            Em 1961, Arnaldo Elian integrava a equipe do professor João Galizzi, catedrático de Clínica Propedêutica Médica da então Universidade de Minas Gerais (hoje UFMG).  Sendo eu recém-chegado médico-bolsista (hoje R1), ele me convidou para ajudá-lo a converter uma fibrilação atrial recém-instalada.  Nessa época a conversão se fazia trabalhosamente, pois a monitorização era feita por registro gráfico num grande eletrocardiógrafo a válvula.  Percebendo minha admiração por sua tranquila destreza, explicou que, nos EUA, ele era o preferido do chefe para aquela tarefa. Naquele país o Arnaldo recebeu treinamento nas universidades de Georgetown e de West Virginia.
            Data daí nossa amizade e minha condição de seu eterno discípulo.  Demais, como estudioso da história da medicina, me entusiasmava estar tão próximo de quem carregava consigo as medicinas árabe e armênia.  Nestorianos, armênios, sírio-libaneses e, principalmente, abássidas cometeram a proeza de intermediar o nexo entre a tradição egipcio-sumério-helênica e a medicina renascentista. 
Sim, desde essa época me fiz genealogista  dos vínculos entre gerações de cientistas. Tanto assim que depois estimulei Luiz Savassi Rocha a documentar a aristocrática ascendência daqueles de nós que fomos aprendizes junto a Bogliolo, a qual nos faz remontar a Morgagni e a Galileu.  Fenômeno similar se encontra nos dados de Ênio Cardillo referentes a ancestrais científicos, como Lavoisier, Gay-Lussac e Liebig, aos quais nos remete Baeta Viana.                 
No caso de Elian, há outra vertente genealógica, esta norteamericana, muito honrosa para nós seus pupilos. Sendo ele discípulo e amigo de Procter Harvey, isso nos transforma em bisnetos científicos de Samuel Levine, trinetos de Paul White e tetranetos de William Osler. A pós-graduação ianque de Arnaldo Elian foi feita ao lado de outro brilhante mineiro, Adauto Barbosa Lima, que veio a ser o cardiologista da primeira cirurgia brasileira realizada com dispositivo circulatório extracorpóreo.  Mais tarde, em 1980, nos EUA, muito me emocionou estar diante do manequim revolucionário projetado pelo próprio Harvey, que simulava  qualquer quadro cardiológico, do qual, salvo engano, foram confeccionados apenas dois modelos experimentais. Ali, então, fomos convidados a testá-lo, o Antônio Dilson Fernandes e eu.  Coincidentemente,  Dilson era raro talento polivalente que Elian muito admirava, pois era fisiologista, clínico, cirurgião, músico e humorista, mas que cedo nos deixou.
Ainda em 1961 foi internada na Propedêutica  a histórica paciente Berenice, que ficou a meus cuidados, com a participação do Celso Afonso de Oliveira e do estudante Adailton de Campos Belo, sob a estreita supervisão do professor João Galizzi. Arnaldo Elian foi então solicitado a examinar e reexaminar os eletrocardiogramas dela, os quais exibiam enigmático PR curto, do qual ele sabiamente descartou origem chagásica. 
Em 1962 o Arnaldo internou, em leito aos meus cuidados, paciente que também se tornaria histórico, pois logo seria objeto de reportagens na revista O Cruzeiro e em todos os jornais,  como o primeiro paciente brasileiro a receber, com sucesso, um marcapasso cardíaco. Charles Hufnagel (primeiro no mundo em prótese de válvula aórtica), João Rezende Alves, Jesus Zerbini, Sebastião Rabelo e Arnaldo Elian estrelaram o acontecimento, acolitados por três colegas da mesma turma de 1960: Sérgio Almeida (que fez o pós-operatório), Gilberto Lino e eu.
Isto se deu no 18o Congresso Brasileiro de Cardiologia, que incluiu mais outro acontecimento histórico, desta vez político. O país vinha agitado pela renúncia, um ano antes, do presidente Jânio Quadros.  Os estudantes, liderados por Henrique Santillo (mais tarde governador de Goiás e ministro da saúde) aproveitaram o palco daquele encontro, sob holofotes nacionais e com convidados internacionais, e ocuparam o saguão da Faculdade, de modo a impedir a solene abertura na manhã seguinte. Arnaldo e Afonso Moreira (este em lágrimas) ouviram dos estudantes que, apesar de serem mestres muito queridos, não seriam atendidos. Restou a nosso Elian,  presidente do conclave, procurar a contragosto o governador Magalhães Pinto para que fizesse desocupar o local, mas o mandatário de Minas alegou que estava proibido, pelo presidente da republica João Goulart, de qualquer ação contra operários ou estudantes. Pinto sugeriu, entretanto, que apelasse ao comandante das tropas federais, insinuando que este desobedeceria a Goulart. Foi o que aconteceu.  Isso significa que, se a resposta desobediente a Jango, dada pelo comandante ao apelo desesperado de nosso Elian, tivesse sido interpretada corretamente pelos desatentos janguistas, talvez os vinte anos de ditadura tivessem sido evitados.
Desde então, bem conhecido grupo de asseclas do Elian veio sendo formado a partir de Antônio Moretzsohn, Celmo Porto, Edson Razuk e minha pessoa.  Depois vieram  Cid Veloso,  Carlos Alberto Barros Santos, Álvaro Piancastelli, Dilson Fernandes, Cláudio Sales, Antônio Cândido e outros tantos  discípulos-de-discípulos.  Além de aprendermos com  ele  medicina interna e cardiologia da melhor qualidade, a pouco fomos descobrindo seus segredos fora da medicina. Tremendo conhecedor de comida e bebida finas, freqüentador dos mais refinados restaurantes do primeiro mundo e do Brasil, poderia escrever livros sobre qualquer desses temas.  Foi, aliás, num restaurante refinado do Rio que sua semelhança crescente com o também árabe Jorge Amado (Ahmed de origem) teve momento célebre: a metade dos fãs tomou o verdadeiro Jorge por sósia e veio pedir autógrafos a nosso Arnaldo.
Outra faceta desse gentleman cumulado de mineirice foi revelada quando comandou o Colegiado de Curso Médico, em momento mais que turbulento da inovação curricular transcorrida na UFMG, entre 1975 e 85, infelizmente hoje abortada. Era então presidente do diretório estudantil o insurreto e destemido Jésus Fernandes. Nessa memorável cruzada, descobrimos então que o notável cardiologista escondia um coordenador hábil, um negociador inesgotável, enfim um Saladino redivivo em plena ditadura militar. Graças a ele, todos os ferozes adversários de então são hoje amigos sem mágoa.  Nisso ele não fazia mais que espelhar dois outros médicos-políticos de qualidades análogas, de que era fraternal amigo e conselheiro: o udenista Dario Faria Tavares e o pessedista Eduardo Levindo Coelho.
A antiga Clínica Propedêutica Médica, amenamente chefiada por João Galizzi, tornou-se legendária pelo equilíbrio entre habilidades, conhecimentos e, principalmente, atitudes - absorvidos pelos alunos no curto prazo de um ano, mas levados permanentes pela vida em fora. Galizzi, o reverenciado herdeiro da mais legítima tradição greco-latina, teve por grão-vizir Arnaldo Elian, esse insigne depositário da mais brilhante herança levantina, sem a qual não existiria a medicina ocidental moderna.


AJAX PINTO FERREIRA
Admirável perfil de médico completo
        Ajax Pinto Ferreira graduou-se em medicina pela atual Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1971.  Como estudante, foi ativista antiditadura e na formatura conseguiu, ao lado de outros líderes, impor o nome de Amílcar Viana Martins para paraninfo. Esse gosto pela política permanece até hoje, seja atuando nas relações de mando em sua cidade de Lagoa Santa (uma tradição de família), seja por seu prestígio na administração universitária, ou ainda por sua inapagável admiração ao médico-político Ernesto Guevara.  Outro atributo de sua cativante personalidade é a cultura humanística, absorvida do ambiente escolar e social de Ouro Preto e alimentada por seu costume de freqüentar os jornais diários com diatribes deliciosas, sob a forma de cartas-à-redação ou artigos ocasionais.
            No final da graduação e logo depois recebeu excelente treinamento, feito de propósito para que tivesse condições de enfrentar sozinho o interior.  Foi para Abaeté e lá se saiu muito bem, voltando para a Faculdade com o saldo de muitas e belas amizades e de invejável experiência em clínica geral de adulto e criança, cirurgia geral, obstetrícia e ortopedia.  Continua ligado a esta cidade e a Lagoa Santa, pois muita gente de seu convívio não tem nenhuma dúvida de que o Dr. Ajax é o melhor médico do mundo, além de infalível apoio em horas difíceis e preciosa referência a qualquer encaminhamento. Tudo isso coroado com saboroso modo de conversar sertanejo, que deixa logo à vontade o mais ressabiado dos interlocutores.  Assim, ele adquiriu o hábito de colecionar tipos humanos e causos de todo gênero, o que realimenta sua magia nas relações humanas.
            Seria, portanto, inevitável que tanto cabedal o lançasse nos braços acolhedores do Centro de Memória da Medicina, do qual logo se tornou um dos docentes e depois eficaz coordenador. Seu sucesso foi imediato quando, no curso de História da Medicina, relatou em aula – não como historiador, mas como protagonista e vítima - a invasão da Faculdade pelas forças da ditadura, no mesmo dia da invasão da Sorbonne, em 5 de maio de 1968. Disse que os invasores exigiram um pedido do diretor para a invasão e este o fez, mas transformou-se, ele mesmo, em vítima do próprio veneno, pois entrou em insuficiência respiratória pelo gás lacrimogêneo, que lhe chegou sob a porta da diretoria Foi levado ao 8º andar em busca de ar puro e ali ficou refém dos estudantes que ameaçaram jogá-lo pela janela. Enfim, foi resgatado por uma escada magirus e um poster do fato esteve por vários anos como troféu na entrada da Polícia Política (DOPS). Quando o Centro de Memória solicitou que viesse para seu acervo, a imagem foi irreversivelmente danificada.
            Ajax Pinto Ferreira ministrou outra aula memorável: Guevara e a medicina.  Todos ficamos admirados da profusão de dados apresentados, especialmente rara documentação sobre o assassinato do herói na Bolívia e algo totalmente desconhecido, que é sua fase de pesquisador científico no México. O Centro de Memória convidou o desenhista Alfred Kristus para figurar Ajax e Che, como velhos companheiros, e este encontro imaginário hoje é atração em nosso acervo.
            Em 1991, a professora Ceres Pinheiro defendeu tese na Universidade de Campiras intitulada DE ESTUDANTE DE MEDICINA A MÉDICO DO INTERIOR, em que são estudados 22 médicos que foram clinicar isoladamente em cidades do interior, sem a ajuda local de colegas e sem ter feito residência médica. Essa tese alcançou enorme repercussão, fazendo do ensino médico da UFMG, de 1975 a 1985, referência definitiva em pedagogia do ensino superior. A tese foi reprografada centenas de vezes, mas infelizmente não foi transformada em livro.
            Estamos preparando um estudo em que tais dados são aproveitados junto a estudos anteriores sobre a equipe mínima de três médicos, concebida, em 1968,  para alta resolubilidade em cidades que comportem mais de um médico. Também será incluída a experiência de médicos versáteis que clinicaram ao lado de colegas, mas sem atuarem em equipe, como é o caso de Ajax Pinto Ferreira. E também a experiência de médicos mais antigos que heroicamente enfrentaram o interior em variadas condições, mais que adversas. Alguns deles deixaram livros de memória, a exemplo de Pedro Nava, Manuel Campanário, Nelson Senise, Pedro Pesutti e Adami Vilela. O professor Ajax, que já provou que é bom escritor, não deixará de escrever o seu.
            A presença de um médico com o perfil de Ajax Pinto Ferreira no corpo docente de uma universidade da importância e da projeção da UFMG é estratégica para que se processe adequação do médico de vocação versátil à rápida evolução da tecnologia diagnóstica e  terapêutica.  Em discordância do que alguns apressadamente pensam,  o professor Ajax advoga o uso seletivo de novidades tecnológicas não para reforçar a especialização e a subespecialização. E sim para, inteligentemente, instrumentalizar, dar maior agilidade e abrir horizontes aos médicos que, como profissionais gerais e completos, insistem na integralidade da pessoa humana e na humanização do atendimento a suas necessidades de saúde.

O autor é professor titular de Clínica Médica  e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais