João Amílcar Salgado

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012


JOSÉ MARIA PIRES
O mineiro contra-estamentário por excelência
João Amílcar Salgado















José Maria Pires é um mineiro que procura mas não consegue disfarçar seu orgulho de originário da gente do Serro do Frio. E nós, historiadores do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, não poderíamos deixar de insistir nesse vínculo, que nos é tão caro, pois outro arauto daquela mesma gente, Aurélio Pires, foi o idealizador e co-fundador da Faculdade de Medicina da hoje Universidade Federal de Minas Gerais. Diante disso, a aula que esse extraordinário sacerdote ministrou no Curso de História da Medicina desta Faculdade, no dia 14-12-12, foi um momento de justo regozijo pelo reencontro da instituição com o que há de mais significativo nos arcanos totêmicos de Minas.
            Ele foi chamado de Dom Pelé, sendo ambos (ele e Pelé) mineiros, um do norte, outro do sul. Mas seu maior título, ainda no símile futebolístico, é ter sido habilíssimo meio-esquerda em magistrais tabelinhas com o visionário centro-avante dom Hélder Câmara. Culminou tudo não só  como  herói-goleador contra o arbítrio de 64 a 84, mas como o nunca suficientemente enaltecido arcebispo emérito da Paraíba.
            Poderia ter ficado no nordeste brasileiro, nos braços do povo, mas sua alma mineira o fez retornar para junto de sua doce capelinha de Córregos, da qual cuida como se ainda fosse aquele coroinha da primeira metade do século 20, quando a região ainda era literalmente “mato-adentro”. Suas peripécias hoje são acessíveis em vídeo por meio da TV Assembléia de Minas ou por meio do livro biográfico UM PROFETA EM MOVIMENTO (O Lutador, 2011) de Mauro Passos.
            De minha parte sou estudioso da contribuição de negros mineiros na medicina, na religião, nas artes, no esporte e em todas as áreas. Meu avô, João de Abreu Salgado me colocou nessa trilha quando em 1946 se tornou o primeiro biógrafo do Padre Vítor com o livro MAGNUS SACERDOS, ora em reedição. O padre Vítor (Francisco de Paula Vítor) foi um sacerdote negro ordenado ainda na vigência da escravidão, fato que pode ser considerado seu primeiro milagre, entre os muitos que lhe são atribuídos.  Outros estudados por mim, além dos já citados, são: na medicina, Joaquim Cândido Soares de Meireles, Francisco de Paula Cândido e Camilo Maria Ferreira Armond; na religião, o bispo Silvério Gomes Pimenta e os padres milagrosos Antônio Ribeiro Pinto de Urucânia, José Pinto Carneiro de Cipotânea, e Libério Rodrigues Moreira do Pitangui; na política, o quilombola Ambrozio e Joaquim Barbosa; nas artes, Aleijadinho, os compositores Emerico Lobo de Mesquita, José Maria Xavier, Manuel Dias de Oliveira e Tito Lazarino dos Santos, bem como inúmeros jongueiros, congadeiros e sambistas, estes representados por Geraldo Pereira e Ataulfo Alves. Não devem ser omitidos os adotivos, como os médicos Eduardo de Menezes e João Cândido dos Santos e o músico Milton Nascimento, os adotados, como Zumbi, Luther King, King Cole e Mandela; ou ainda os nascidos fora, mas de origem mineira, como parece provável o genial Abdias do Nascimento.
            Darcy Ribeiro se impacientava quando alguém lhe perguntava se era parente de algum Ribeiro importante de Minas. Respondia que a gente mineira devia desapegar-se do culto ao estamento, devoção ridícula das famílias tradicionais. E encerrava a conversa, garantindo que seu Ribeiro era o mesmo daquele degredado que Cabral desembarcou na Bahia, premiado com um exílio hedonístico, o primeiro entre outros ocorridos lá atrás em 1500. Trata-se, entretanto, de tema de maior significado do que a pretensa menor-importância que Darcy lhe atribui. O verdadeiro estamento mineiro tem raízes mais sérias a partir de um historiador como Simeão Ribeiro Pires, primo de Darcy, ou a partir da militância evangélica de um José Maria Pires. Os Pires chegaram a Minas escaldados por disputas entre parentes bandeirantes e aqui, mesmo sofrendo recaídas competitivas - mais que beligerantes, se tornaram preferencialmente sábios. E nada mais próprio que um Pires que traz em seu costado o totem da etnia banto para ser um símbolo contra-estamentário de altíssimo brilho, em plena Minas Gerais.
            A aula recheada de comoventes parábolas que esse arcebispo nos ministrou fez-nos perceber que subsiste uma Minas autêntica a ser cultivada, com aquela simplicidade e aquela sinceridade, que de modo algum nega a crueldade da sociedade mineira inicial e a dramaticidade da sociedade global atual, mas que mantem patentes as sendas tributárias de um reto caminho a percorrer. Lembrou, principalmente, que o médico evangelista Lucas nos demonstrou que um mero anão pode ser transformado em gigante - dependendo da luz que persiga em sua vida e, por consequência, do homem integramente novo que passe a  hospedar dentro de si.
            O Centro de Memória da Medicina, desde sua criação, se abriu às diferentes religiões e aos reflexos de cada uma sobre a medicina. A religião e a medicina foram uma só empresa por mais de 70 mil anos e só recentemente, há 500 anos, se tornaram objetivamente independentes. Cumpre ao historiador da medicina e ao historiador da religião não cair na arrogância de ignorar tantos milhares de anos. E o diálogo sereno e saudável com um profeta de nosso tempo, José Maria Pires, nos faz cada vez mais conscientes dessa necessária origem comum.  

domingo, 23 de dezembro de 2012


OSCAR NIEMEYER E WILSON ABRANTES
João Amílcar Salgado
Em 1997, a convite da inesquecível arquiteta Maria Elisa Meira, compareci à Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde participei da mesa de abertura do congresso brasileiro sobre ensino da arquitetura, no qual falaria sobre pedagogia do ensino superior. A meu lado estava Lúcio Costa, aos 95 anos, com quem cochichei dados genealógicos. Disse-lhe que, por meu lado materno, eu era, como ele, Ribeiro Lima Costa. A conversa com que combinamos prosseguir a troca de dados não foi possível. Nela, eu lhe perguntaria sobre sua saída da diretoria da Escola Nacional de Belas Artes.
Vinte anos antes, em 1976, estive hospedado na Casa do Brasil em Londres e seu diretor era colega de turma de Oscar Niemeyer. Frequentemente eu o interpelava sobre a vida estudantil do Oscar. Quando percebeu que eu conhecia o lado desabusado do homem, ele me revelou várias de suas passagens estudantis. Quando lhe contei a versão humorística de como Oscar se inspirara no mercado de Diamantina para o palácio da Alvorada, ele comentou que, pelo passado do colega, isso devia mesmo ter acontecido.  E me fez repetir o causo para outros, entre estes o sociólogo Gilberto Freire, o embaixador Roberto Campos e professores de Oxford, que riram repetidamente. 
Mas a principal pergunta que lhe fiz foi: por que Oscar Niemeyer não ficou na escola como docente? Respondeu que não sabia, mas deu a entender que aquele aluno, aos olhos severos dos dirigentes, pouco prometia como eventual docente. De fato, Niemeyer começara o curso já casado e sustentando-se como tipógrafo – tudo isso sem deixar a tendência boêmia. Vejamos as datas. Oscar se casou em 1928; no ano seguinte entrou na Escola de Belas Artes; em 30 e 31 esta é dirigida conflituosamente por Lúcio Costa; Oscar ainda aluno de 3º ano vai estagiar no ateliê de Lúcio; em 32 nasce a filha de Oscar, que é diplomado em 34. Assim, mesmo se os dirigentes conservadores lhe fossem simpáticos, a relação com o inovador Lúcio impediria seu aproveitamento docente. Em compensação, posso inferir que a docência imediata lhe teria tolhido o talento, do qual nem mesmo ele, Oscar, sabia ser dotado.
Para o estudo que faço sobre desperdício docente e sua recíproca, que é a docência clandestina, julgo oportuno anotar as seguintes evidências apuradas no caso Niemeyer: 1) a escola onde estudou perdeu uma futura celebridade como docente, 2) ainda estudante, cumpriu um currículo clandestino como estagiário não remunerado de Lúcio Costa, circunstancia que lhe despertou o talento, 3) depois de formado, as universidades de Yale (1946) e Harvard (1953) perderam a oportunidade de tê-lo como sua estrela, por odiosa e mesquinha discriminação ideológica, 4) a equipe ministerial de Capanema soube evitar os erros precedentes, pois não só o aproveitou no projeto do edifício do MEC (no qual se pós-graduaram clandestinamente vários talentos), como sugeriu seu nome a JK, para o projeto da Pampulha.  Outra coincidência favorável a Niemeyer foi a saída do médico Washington Pires do ministério. Pires, embora mineiro como Capanema e embora com veleidades de arquiteto, era catedrático da Faculdade de Medicina da hoje UFMG e estava empenhado em outros objetivos.  Ou seja, sem Capanema no ministério não seria possível o revolucionário edifício.
Passemos ao caso do notável médico Wilson Luiz Abrantes, inspirador dos conceitos de desperdício docente e docência clandestina. Wilson foi excluído da Faculdade de Medicina da hoje UFMG por razões políticas e isso consternou a maioria de professores e alunos, pois ninguém o imaginava privado da docência. Basta dizer que desde segundanista já era o melhor professor de anatomia, inclusive na opinião dos professores de anatomia. A alternativa adotada por esse docente nato foi a docência clandestina. Wilson Abrantes passou a exercer no Pronto Socorro (hoje Hospital João 23) a docência que lhe foi negada na faculdade. As demais equipes de plantonistas se pautaram pela requisitada equipe liderada por ele, de tal modo que gerações de médicos lhe devem esta pedagogia inestimável.  E isso era tão patente que a faculdade, ao fazer a notória reforma curricular de 1975, formalizou o clandestino estágio no Pronto-Socorro, timbrado como disciplina obrigatória.  E foi assim que ele retribuiu, com generosa contribuição, a injustiça de que foi vítima.
            O mas significativo é que a retribuição se deu não só no fato em si, mas como origem do CONCEITO PEDAGÓGICO  DE CURRÍCULO PARALELO OU CLANDESTINO, ou seja, aquele currículo desenvolvido extramuralmente pelo aluno, na busca desesperada para conseguir fora o treinamento que lhe é negado dentro da escola. E é notável que a concepção se inspira naquele que buscou exercer  fora o ensino que lhe foi negado dentro da escola! Em 1986 tive a oportunidade de expor a ideia e o fenômeno de currículo paralelo ou clandestino em universidades dos EUA. Um prestigioso especialista em ensino médico me aparteou dizendo que este conceito era o instrumento de análise mais interessante ouvido por ele nos últimos tempos. E eu lhe respondi que era, em grande parte, resultado de reflexões sobre tremenda injustiça cometida contra um excepcional médico de meu país.
            E isso não ficou por aí, pois tal inspiração levou a um conceito mais amplo, o de UNIVERSIDADE PARALELA.  De fato, quando meu colega Cid Veloso foi candidato a reitor, incluí em sua plataforma a proposta de criar a Universidade Paralela da UFMG, que nada mais é que trazer ao público interno e externo de nossa universidade aqueles, como Wilson Abrantes, que jamais deveriam estar fora dela.  Nisso incluiríamos uma gama enorme de gente, inclusive da cultura popular.  Infelizmente não foi possível concretizar essa ideia, cujo único remanescente é a premiação que a universidade oferece a seus egressos de admirável brilho fora de seus quadros. Além disso, temos no Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais uma miniatura de como seria a coisa, pois ali historiadores, estudiosos e interessados, não pertencentes ao corpo docente, comungam com este, sem discriminação, o grato prazer de dialogar com a juventude, alternando o papel de docente, de discente e de apenas interlocutor.
            No momento em que Oscar Niemeyer é celebrado sob múltiplos ângulos, parece-me oportuno vê-lo ao lado de Wilson Abrantes como inspiração e subsídio ao conceito de docência e aprendizagem clandestinas.

O presente texto resume dados do livro em preparo intitulado AUDÁCIAS EM SAÚDE E EM EDUCAÇÃO, a ser publicado como sequencia a O RISO DOURADO DA VILA (2003). O tema é tratado também em outro livro, a sair junto ao primeiro citado, intitulado SÍNTESE CRÍTICA DA PEDAGOGIA MÉDICA

domingo, 16 de dezembro de 2012



MÍDIA NO MUNDO – QUEM MANDA
               Estudo a mídia principalmente em função de minhas críticas à publicidade em saúde, iniciadas com minha tese de doutorado, no preparo da qual estive na Grã-Bretanha. Além disso, em minha juventude ocorreram várias coincidências:
             Meu pai, em minha cidade de Nepomuceno, foi um dos donos e  redatores de um tablóide udenista (29 DE OUTUBRO), e eu, com nove anos, acompanhava fascinado tudo aquilo
              Aos 18 anos fui um dos fundadores e editorialista de um jornal estudantil (O ELO) e fui articulista do jornal pH7 na Faculdade, pelo que tive direito a carteira de jornalista, que nunca fui buscar.
               Meu pai faleceu quando eu tinha 14 anos e logo depois li no Correio da Manhã que Orson Welles (ao mesmo tempo o maior cineasta e o maior artista de cinema  do mundo, depois do Carlitos) perdera o seu pai aos 15 anos e já tinha perdido sua mãe aos 9 anos.   Isso me foi tremendo consolo e passei a ler tudo sobre ele e a assistir seus filmes. Seu filme Cagliostro (Black Magic, 1949) foi forte influencia para que eu estudasse medicina. E seu filme Cidadão Kane (O mundo a seus pés, 1941) fez efeito cumulativo sobre minha ligação com o jornalismo, pois passei a estudar a vida do magnata da mídia William Randolph Hearst, o tal cidadão. Por outro lado, muito me impressionou a perseguição feita a Orson Welles pela extrema direita macarthista, sob a suspeita de que era comunista. Por causa disso, ele teve de interromper um filme que rodava, coincidentemente, no Brasil...!
              Relato essas coisas para mostrar a origem de meu interesse em acompanhar o impacto das redes coletivas de internautas sobre a mídia em geral e a apreensão causada por elas aos detentores de monopólio. Sob pressão, os monopolistas se apegam, de unhas e dentes, ao argumento de que seu direito de monopolizar e de manipular é visceralmente indissociável de seu direito à liberdade de expressão. Isso vinha sendo assim até que houve o escândalo do Murdoch. E a Grã-Bretanha, que foi o berço da liberdade de expressão, acaba de produzir o RELATÓRIO LEVESON, decorrente desse escândalo. Se as recomendações deste relatório forem aprovadas lá, desfecho que parece provável, como é que os monopolistas do Brasil e do mundo vão argumentar?
            Eis a lista:
RUPERT MURDOCH na Grã Bretanha
BBC, pública, na Grã Bretanha
SILVIO BERLUSCONI na Itália
ANNE COX CHAMBERS  nos EUA
ANGEL GONZALES, lado hispânico dos EUA e América Central
WLADIMIR PUTIN na Rússia
EMILIO AZCARRAGA no México
AGA KHAN, xiita, no leste da África
TIONG HIEW KING na Malásia
AMÉRICA DO SUL –
ARGENTINA – Grupo Clarin
COLOMBIA – Grupo Caracol
VENEZUELA – Grupo Globovisión

BRASIL (parte competidores, parte afiliados entre si) –
FAMILIA MARINHO – Rede Globo
FAMÍLIA DO BISPO MACEDO – Rede Record
FAMÍLIA SAAD – Rede Bandeirantes
FAMÍLIA SILVIO SANTOS – Rede SBT
FAMÍLIA DALLEVO – Rede TV
IGREJA CATÓLICA – Rede Vida
FAMÍLIA CIVITA / NASPERS – Revista Veja e Editora Abril
FAMÍLIA  FRIAS – Grupo Folha
FAMÍLIA MESQUITA – Grupo Estado
FAMILIA SIROTSKY – Grupo RBS no RS
FAMÍLIA COLLOR – Grupo Collor em AL
FAMÍLIA SARNEY – Grupo Sarney no MA
FAMÍLIA MAGALHÃES – Grupo Magalhães na BA
FAMÍLIA TEIXEIRA DA COSTA – Grupo Associados em MG
“REDE” CAÓTICA DE MÍDIA PUBLICA E PSEUDO-PÚBLICA


        Segundo o especialista Venício Lima, da Universidade de Brasilia, “a ausência de legislação no Brasil permite que sobrevivam a velha estrutura da propriedade familiar, o renovado vínculo com as elites e a crescente presença das igrejas no setor de comunicações [Venício é o criador da expressão “coronelismo eletrônico]. Venício Lima e Franklin Martins são os intelectuais brasileiros mais autorizados nesta área. 
       LEIAM O RELATÓRIO LEVESON. Você tem acesso a ele exatamente graças à liberdade que a internete propicia ao mais desinformado e ao mais distante internauta. E pode ser lido em inglês ou em português!



AYMORÉ DE CASTRO ALVIM

Ele é mais do  que médico, cientista, historiador e escritor: é autêntico maranhense  

João Amílcar Salgado
            Estamos regressando da ilha de São Luiz, onde, de 07  a 10-11-2012, Aymoré de Castro Alvim nos recebeu para o 17º  Congresso Brasileiro de História da Medicina.
             Dois nomes da medicina mineira são fortes ligações desta com a medicina maranhense, duo que se completa em trio com um presidente da república mineiro. São eles Henrique Marques Lisboa, Pedro Nava e Afonso Pena. Marques Lisboa foi combater a peste bubônica em São Luiz em 1904. Contaminou-se, automedicou-se heroicamente e foi um dos debeladores do sinistro. Essa façanha não teria sido divulgada se Nava não escrevesse suas memórias. Já Afonso Pena viabilizou a estrada de ferro São Luiz – Caxias e foi também o primeiro presidente da república a visitar o Maranhão. Influenciado ou não por tais singularidades históricas, impressionou-me a semelhança entre a gente maranhense e o povo mineiro, inclusive no apego à cultura.
           Se me encontrasse e conversasse com o Aymoré em Sabará, Ouro Preto ou Diamantina, eu o tomaria por plácido cidadão destas comunas. Só que, comparando o Maranhão com Minas, os historiadores mineiros morrem de inveja. Quando Minas começou sua vida colonial, os maranhenses já tinham dela 200 anos. Na metade desses dois séculos, em 1612, receberam em vez da medicina lusa a francesa, na pessoa do cirurgião Thomas de Lastre.  No final dos mesmos, tiveram o privilégio de receber o padre Antônio Vieira. Para mitigar tal inveja, lembro que, nesse final dos seiscentos, nascia outro jesuíta, Matias Antônio Salgado, considerado o padre Vieira mineiro.
           Os pais de Aymoré, certamente sem querer, homenagearam Minas, pois o nome aimoré designa pugnazes indígenas de Minas, jamais subjugados, insubmissão que causou seu genocídio. E o próprio sobrenome Alvim é o mesmo de ilustres cristãos-novos atraídos pelo ouro de nossas entranhas. Em contrapartida, o Maranhão, entre seus médicos ilustres, contou com Carlos Alberto Salgado Borges, meu inesquecível comparsa em pedagogia médica, e conta com Natalino Salgado Filho, a quem conheci ainda estudante, hoje o benemérito da nefrologia do norte-nordeste brasileiro. O que quero dizer é que os Salgado são galegos luso-compostelos, de assinalada contribuição, de norte a sul, à unidade brasileira.
           Quando fui pela primeira vez a São Luiz, pedi que me mostrassem o cajueiro de Humberto de Campos, plantado por ele próprio em sua infância e que marcou minha própria infância.  Pediram-me desculpas, pois o cajueiro não se achava em São Luiz, mas na cidade litorânea de Parnaiba, hoje tombado. Humberto, por sinal, deve ser considerado referência na história da medicina, seja pela doença de que foi vítima, seja porque em suas crônicas encontramos preciosas informações sobre a medicina de seu tempo.
                Por sua vez, o médico Nina Rodrigues, maranhense de Vargem Grande, nascido há 150 anos, foi homenageado, no encontro, por Arquimedes Viegas Vale, que nos forneceu dados preciosos de suas origens familiares. O lado baiano da  carreira de Nina foi tratado por Ronaldo Ribeiro Jacobina.  Antônio Carlos Nogueira Britto e Jacobina formam a linha de frente da historia da medicina na Bahia, o primeiro, por nos revelar documentação implacável das escolas médicas oitocentistas de Salvador e Rio de Janeiro; o segundo, por nos mostrar por inteiro tanto Nina como o incrível Juliano Moreira.  Sugiro a leitura do recente livro de Jacobina  LUZES NEGRAS: NEGROS E NEGRAS LUMINOSOS DA BAHIA (2012).
                Eu próprio também falo de Nina Rodrigues no livro NOS SERTÕES DE GUIMARÃES ROSA (CRV, 2011). Os ninistas, desde o século 19 são bravos polemistas, mas a verdade é que o tema continua em pleno debate, exatamente no momento do estabelecimento de cotas raciais nas escolas e quando o Brasil pela primeira vez entrega a ostensivos afrodescendentes altos postos de mando. No próprio transcurso do congresso em pauta, acompanhamos a façanha da reeleição do primeiro negro no governo estadunidense, eleição profetizada por Monteiro Lobato, outro de posições raciais controvertidas, em seu livro O PRESIDENTE NEGRO (1926) – e de quem também falo no mesmo livro. A invejável composição racial do Maranhão, muito bem simbolizada em Gonçalves Dias e Coelho Neto, demais realçada por seu peculiar teor cafuzo, lhe deu riquíssima cultura e, assim, nada mais própria foi a ocasião desse encontro de historiadores.
               Já de Aymoré Alvim recomendo as obras CRÔNICAS E CONTOS DE UM PINHEIRENSE (2011) e 400 ANOS DE MEDICINA NO MARANHÃO,  assim como aplaudo os versos de seu filho, Aymoré Filho,  forte  poeta. No Maranhão, aliás, é mais fácil saber quem não é prosador e/ou poeta do que fazer a difícil escolha do melhor destes. E não é que houve disso um vaticínio, quando o beletrista quinhentista João de Barros chegou a ser  um dos primeiros donos virtuais do Maranhão? Entre outros, cito mais quatro médicos-historiadores com os quais tive o prazer de trocar preciosas informações: Aldir Penha Costa Ferreira, autor dos saborosos CONTOS DE JALECO BRANCO (2010), Haroldo Silva Souza, organizador da obra biográfica ACHILLES LISBOA (2000), Antônio de Pádua Souza, autor de O VELEJADOR (2009), de intrigantes contos e novelas, e José Márcio Soares Leite, cujo NA DIREÇÃO DA SAÚDE (2012) é lição haurida de bela trajetória, a ser aproveitada por todos os administradores de saúde. 
           Finalmente, volto a Minas para anotar a grata surpresa da apresentação, em jogral, por Leila Barbosa e Marisa Timponi, de A POÉTICA DA DOENÇA,  poemas descobertos sob papéis íntimos de médicos juiz-foranos. Constitui feliz iniciativa, que há de ter continuidade. Nasceu da criatividade dessas incansáveis investigadoras, capazes de farejar e garimpar qualquer afloramento de coisas do saber e de fino gosto.   


JOSÉ SÍLVIO RESENDE

Indizível joalheiro da arte médica

João Amílcar Salgado



      O cirurgião José Sílvio Resende (1930-2012) bem representa o modelo de médico que a Faculdade de Medicina da hoje Universidade Federal de Minas Gerais foi capaz de formar ao longo de sua história, iniciada em 1911. Nesse já longo transcurso, ocorreram os juscelinianos anos dourados, quando determinadas turmas foram graduadas justamente entre o ocaso da hegemonia franco-alemã e o advento da influência anglo-saxônica.  Sílvio Resende, da turma de 1955, é o exato protótipo daquele profissional que bebeu, sem distingui-las, ambas de tais fontes - e, nisso, pôde sedimentar o que ofereciam de mais autêntico e permanente. Está aí a origem de sua incomensurável cultura médica, construída em continuidade harmoniosa com admirável cultura geral, em que o biombo de irrevogável modéstia não consegue ocultar o historiador, o beletrista, o orador, o líder (formador de gerações de notáveis discípulos, entre eles quatro colegas meus de turma: Marcelo Ferreira, Luiz A. Luciano, Ernesto Lentz e Gilberto Lino), o músico (consangüíneo de Abel Ferreira, conviva de Goiá), o pescador e o sertanista.
       José Sílvio Resende por pouco não compôs, ao lado de André Esteves de Lima, da turma de 1952, e Edir Siqueira, seu colega de turma, um trio de mineiros a brilhar nos EUA. Dos três, apenas o Edir ficou lá, André foi e voltou e o José Sílvio não foi.  O André e o Christian Barnard (aquele do primeiro transplante de coração) foram residentes, sob a orientação de Clarence Walton Lillehy, em Minneapolis, Minnesota. Lillely é considerado o pai da cirurgia cardíaca a céu aberto. Daí que o André trouxe a moderna cirurgia cardíovascular para o Brasil e Barnard para a África do Sul.  O André, sabendo da potencialidade do Zé Sílvio, falou dele ao  Richard Overholt, que imediatamente abriu duas vagas, em seu hospital de Boston, uma para o mineiro e outra para um postulante inglês.  E o Zé Sílvio, por questões pessoais, não pôde ir. O cirurgião torácico Richard Overholt hoje é conhecido como o iniciador da guerra médica contra o tabaco, resultante de sua experiência com o tumor pulmonar. Ele ficara célebre como o primeiro a fazer uma pulmonectomia direita para tratar esse tumor, mas acabou confessando que eliminou mais tumores combatendo o tabaco do que com o bisturi. Diante de tais relacionamentos, perguntei o Zé Sílvio se chegou a conhecer o Barnard. Ele disse que sempre visita o André em Brasília e, certo dia, chegando à residência do André, este lhe disse que, se tivesse chegado um pouco antes, teria encontrado ali o Barnard.
         Cada qual dos numerosos admiradores aprecia apontar no José Sílvio Resende as qualidades preferidas, nunca uma entre várias.  Quanto a mim, me impressionam a versatilidade com que transita pelas especialidades cirúrgicas (em várias das quais abriu caminhos), o virtuosismo semiotécnico, a acrobática memória sobre pessoas e coisas, bem como o gosto pela história geral e pela história da medicina. Estamos, pois, diante de alguém que não tem o direito de nos negar suas memórias, ao estilo de Pedro Nava, ou seja, em que não faltarão o trágico e o cômico, a colorir casos médicos (inclusive de celebridades de que cuidou, entre elas o cacique Pichuvi da tribo Cinta-Larga e o político Aureliano Chaves), alternados a passagens da vida em geral, que sei próximas ao realismo fantástico.
           Uma dessas é sua ligação com o célebre padre Eustáquio van Lieshout.  Quando Resende era criança de cerca de nove anos, o padre Eustáquio, vindo de São Paulo, ficou por pouco tempo no Colégio Dom Lustosa, em Patrocínio.  Certo dia o menino Zé ficou encarregado de acompanhar o padre, que saiu a abençoar pelas fazendas e povoados de Coromandel, cidade vizinha a Patrocínio. A devoção ao padre permaneceu na região e mais tarde o próprio Zé Sílvio foi levado a participar da comunicação de um de seus milagres.  Uma fazendeira sofria ataques epilépticos e pediu uma graça a padre Eustáquio. Na  novena rezada para esse fim,  pediu que o sinal de que fora atendida seria uma rosa. Certo dia, seu filho disse que achou uma pedra e que sentiu necessidade de entregar-lhe. A mãe diz: espero uma rosa, mas não uma pedra.  A criança insiste em entregar aquele objeto e, ao fazê-lo, a pedra cai e se quebra ao chão. Na superfície interna do fragmento estava o desenho de uma rosa. O José Sílvio Resende, por ser ex-acompanhante do padre Eustáquio e por ser médico, foi chamado para atestar a cura e testemunhar a figura no fragmento. O diligente cirurgião, que não é religioso praticante, não só fez isso, mas fotografou a rosa e a encaminhou aos responsáveis pelos registros dos milagres do padre Eustáquio.
           Surpreendem as realizações em que José Sílvio Resende foi pioneiro, como a operação de Merendino para megaesôfago. Inovou-a, a seguir, com a abertura abdominal exclusiva. Foi também vanguardeiro na ressecção de traquéia, sem uso de prótese. Repetiu-a dezenas de vezes para estenose traqueal. Igualmente foi o primeiro a empregar a cavernostomia de Bernou no tratamento do micetoma pulmonar, cirurgia hoje adotada amplamente. Não contente, nos apresentou, em casos muito bem sucedidos, a timectomia para a miastenia grave. Sua colaboração com Aristóteles Brasil, na investigação do megaesôfago chagásico, e com João Resende Alves, em cirurgia experimental no cão, não pode deixar de ser ressaltada. Em tais experimentos ele desfez a hipótese de um alegado marca-passo na cárdia. Sua última contribuição científica é a copiosa e inequívoca evidência da transmissão digestiva e não respiratória da tuberculose, inclusive explicando porque esta infecção é rara em equinos e comum em bovinos.
        Tendo sido médico e amigo do outro Pedro, o Salles, eminência tutelar dos historiadores mineiros da medicina, José Sílvio Resende estava assim predestinado a trazer contribuição substantiva a nossa memória médica.  Com fatos de que ele próprio foi partícipe, já nos daria relato inestimável. Sendo, entretanto, quem é, fez mais: investiu-se de sherlockiana obsessão e desencavou verdadeira galeria de personagens até então desconhecidas ou mal-conhecidas e as cercou de documentação e testemunhos inéditos. Acervo tão rico não caberia num único livro e nos presenteia com dois: um sobre a HISTÓRIA DA PNEUMOLOGIA E DA CIRURGIA TORÁCICA EM MINAS GERAIS (2005) e outro, ainda inédito, sobre a epopéia da tisiologia no mundo e entre nós.
      O Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais é esta instituição reverenciada no país por contar, em sua equipe de estudiosos, com gente tão seleta como José Sílvio Resende. Originário de plagas diamantíferas, este coromandelense é médico raro, historiador raro e ser humano raro, em todo o planeta. Não tão raro em Minas, porque Minas prima por brindar o Brasil com gigantes como ele.


JOSÉ GOMIDE BORGES

INVULGAR RASTREADOR DA HISTÓRIA MINEIRA




João Amílcar Salgado

       Logo que o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais foi criado em 1977, sob os auspícios de Pedro Nava, dois entusiastas, Ciro Gomide Loures e Paulo Gomes Leite, vieram compor a equipe de pesquisadores. E passaram a documentar a vida e a obra de Antônio Gonçalves Gomide, médico mineiro, constituinte de 1823, senador do Império e primeiro psiquiatra brasileiro.  
            Em 1992, o Ciro chegou anunciando novo livro na praça, intitulado O SERTÃO DE NOSSA SENHORA DAS CANDEIAS DA PICADA DE GOIÁS, escrito por José Gomide Borges. E acrescentou que o autor era um historiador parente dele, o qual, com aquela obra finalizada, passaria a estudioso do senador. A esperança era que José usasse sua rica documentação genealógica para esclarecer dados de sua própria família, a Gomide. 
              Ciro Gomide Loures já nos havia revelado o interessantíssimo episódio em que o naturalista Sainte-Hilaire e o médico Antônio Gomide testemunham uma antecipação, em 1817, da descrição por Pavlov do reflexo condicionado, observado em animais de tropa, na cidade de Caeté. Paulo Gomes Leite, por sua vez, nos revelou documentos até então inéditos que autenticam ser Antônio Gonçalves o verdadeiro autor da IMPUGNAÇÃO ANALÍTICA (1814) aos milagres da Irmã Germana. Com essa impugnação ele não só inaugura a psiquiatria brasileira como antecipa conceitos só depois esposados por Sigmund Freud.
              Já José Borges nos revelou Itapecerica como a cidade irradiadora dos Gomide em Minas. O tronco da família se inaugura com Xavier Gonçalves Gomide, nascido na freguesia de Santa Maria de Devela, vila de Castelo de Vide, batizado a 9-5-1712. Xavier era filho de pai homônimo e de Margarida Gonçalves Carrilho, sendo neto paterno de Manuel Gonçalves Gomide e Isabel Morata. Migrou para o Brasil, onde se fixou em Itapecerica.
               Seu filho Tomás foi para Piranga, onde se tornou pai do futuro médico e senador. Este veio residir em Caeté, onde cuidou da futura Marquesa de Santos. Dois outros filhos de Tomás, de nome Emílio e Jaime foram para Rio Novo, onde nasceu Ciro.
              Xavier Gomide é também pai de Teresa Gonçalves, genitora de Manuel Antonio Gomide, por sua vez pai de João Lourenço Gomide, fixado em Campo Belo. Este deixou descendentes aí e também em Lavras, Perdões, Nepomuceno e Candeias, onde nasceu José.
          Os dados do historiador José Gomide Borges são preciosos inclusive para mostrar o parentesco entre as famílias Gomide, Carrilho e Morato, desde ainda Portugal. Tal nexo leva ao parentesco mineiro entre estas e as famílias Alves de Figueiredo e Alves Vilela.  Quase todas migraram ao oeste, pela picada de Goiás, encontrando-se Carrilhos, Vilelas e Figueiredo no Triângulo, no noroeste paulista, em Goiás e em Mato Grosso. Observe-se que um dos fundadores de Uberlândia é Carrilho. E o próprio sobrenome Borges do pesquisador é notório nesses mesmos lugares.
           No livro sobre o sertão de Candeias, o autor reproduz a fotografia do casarão da fazenda do Engenho do Bom Jardim da Mata do Jacaré, infelizmente demolido - antiga sede do imenso latifúndio de Antônio Vilela Frazão, que cobria a hoje cidade de Santana do Jacaré e outras ao derredor. Diante de minha surpresa por tal preciosidade, José me presenteou com uma cópia bem mais precisa. Que uso fiz dessa cópia?
             Acontece que esse casarão está na história da medicina mineira. Um farmacêutico de Andrelândia, José Silva de Assis, chegou recém-formado a Santana do Jacaré e se casou com a linda moça Marieta Freire, moradora naquela fazenda. Ali nasceu seu primogênito Aparício Silva de Assis. José Assis, a seguir, se formou em medicina e se tornou catedrático de urologia na atual Universidade Federal de Minas Gerais, sendo pioneiro na endoscopia vesical no Brasil. O filho sucedeu o pai e se tornou um dos dois primeiros em transplante de rim no país. 
            Com a foto em um envelope, me aproximei do Aparício e perguntei-lhe se poderia me conseguir uma foto do casarão do Engenho do Bom Jardim onde nascera. Ele disse: infelizmente foi criminosamente demolido e nem foto ficou. E, ao receber a foto e ao rever aquela imagem de sua infância, o luminar da medicina mineira deixou que eu lhe surpreendesse discretas lágrimas incontidas. Em uma solenidade da Academia de Medicina apresentei o José Borges ao Aparício e ambos se abraçaram, sobrando grande emoção para nós três. O sul de Minas é pródigo dessas coisas.
             Outra contribuição inestimável de José Gomide Borges se refere ao madeirame de Queluz. Seu livro traz essa lenda regional. Mesmo que venha a ser retificada por pesquisa documental, sempre mereceu ser registrada e ele o fez em boa hora, antes que fosse esquecida. Entre os Vilelas de Santana de Jacaré consta a lembrança de que, após o término da construção do palácio de Queluz (réplica de Versailles, onde nasceu e faleceu nosso imperador Pedro 1º), Antonio Vilela Frazão teria oferecido e enviado o jacarandá-rosa de suas terras da mata do Jacaré, para que com ele o revestissem.
               Hoje os turistas apreciam menos a réplica arquitetônica e mais  a guarnição de piso, parede e teto feita com a variedade de jacarandá que praticamente não mais existe em Minas, sua origem. E as árvores formavam mata fechada dos dois lados do rio, por quilômetros. Há também a tradição de que desta fazenda foi gado para a corte de João 6º, quando houve escassez de carne para satisfazer o apetite dos cortesãos recém-chegados. Tanto Borges como eu fomos a Portugal acariciar aquela relíquia de nossa região natal.
         Por fim, a melhor homenagem que podemos prestar a este seleto esquadrinhador de nossa historiografia ocorrerá quando ajudarmos sua família na preservação do precioso acervo documental que acumulou com admirável dedicação.




JUSCELINO KUBITSCHEK E OSCAR NIEMEYER

Tropecei em seus calcanhares

João Amílcar Salgado
   Eu estava em meus 16 anos de idade quando conheci Belo Horizonte e vi de perto o Palácio da Liberdade.  O governador que dali governava Minas era o Juscelino (JK) e nem dele me lembrei naquele momento, pois  me interessou mais contemplar aquela majestosa e agradável praça. No ano seguinte (1954), ingressei no Colégio Estadual e ali cursei o final do curso colegial, enquanto JK cursava o final de seu governo. Esta dupla circunstância fez com que o encontrasse concretamente em meu caminho. 
       Os estrategistas que o queriam na presidência da república, decidiram que, na arrancada de sua campanha, seria ótimo que fosse anunciado como paraninfo da formatura do Colégio Estadual, exatamente naquele ano em que este completava cem anos.  O diretor do Colégio era o poeta Heli Menegale e nos reuniu para propor o paraninfo. Discordamos, pois já havíamos escolhido a Beatriz Alvarenga, nossa jovem e bela professora de física. Ele contrapropôs JK paraninfo e Beatriz uma espécie de co-paraninfa.  Não aceitamos e JK, ao seu estilo, mandou dizer que, se fosse paraninfo, ele brindaria o centenário do Colégio com novo prédio e o autor do projeto arquitetônico seria nada menos que Oscar Niemeyer.  Além disso o baile de formatura seria de gala, de padrão universitário, ou seja, no Cassino da Pampulha, também obra de Niemeyer.
          Não houve acordo e JK foi imposto paraninfo. Em conseqüência, JK não compareceu nem à solenidade nem ao baile, talvez temeroso de vaia, e a Beatriz foi homenageada numa solenidade paralela na churrascaria Camponesa. Nós também homenageamos o Gil Lemos, nosso professor de desenho e irmão da Sara Kubitschek, como uma espécie de co-paraninfo paralelo.  Eu, que vinha sendo orador em minhas formaturas, soube que o orador seria imposto também: alguém que não hostilizasse JK. Deduzimos que seria o Sérgio Vasconcelos, parente da Sara.  Tal dedução não foi confirmada por Lemos e o orador de fato foi o José Guilherme Vilela, mais tarde tragicamente assassinado.  Curiosamente, a Sara, o Gil, o Sérgio, o Zé Guilherme e eu,  todos éramos Vilelas.  
           De tudo isso acaricio o renitente pensamento de que sou co-responsável por uma das obras de Niemeyer: o prédio central do Colégio Estadual, impropriamente denominado Milton Campos.  Por sinal, quando ali entrou a primeira turma a inaugurá-lo, nela se incluía ninguém menos que meu irmão, o hoje engenheiro Antônio Lívio Salgado (cujo casamento, aliás, se fez justamente na igrejinha da Pampulha). De tempos em tempos lhe perguntava se o novo colégio o estava agradando e ele afinal me interpelou: por que tanto interesse nesse prédio? Respondi: é minha preocupação paternal com essa obra, que de certa maneira é minha também. 
                Em meu livro de memórias, O RISO DOURADO DA VILA, 2003, descrevo como prossegui na trincheira oposicionista a JK, inclusive como orador de minha turma em medicina. Só depois de ter-me transformado em historiador é que revi esse posicionamento, por influência de Paulo Pinheiro Chagas e de Pedro Nava. Relembro ali, a propósito, que, em 1958, o Diretório Acadêmico tinha feito o enterro simbólico de JK, gesto do qual eu fora um dos líderes, e então, ao ler as memórias de Pinheiro Chagas, concluí que erramos, pois aquela sátira equivalia a querer tirar de cena o maior dos democratas brasileiros.
           Minha percepção da figura de Oscar Niemeyer sofreu mudança semelhante. Antes associada à citada contenda da formatura, acabei sabendo da proibição pelo bispo dom Cabral ao culto na igrejinha da Pampulha, sua obra de 1945. Diante desta data, me dei conta de que Niemeyer tinha algo notável em comum com meu avô, pois este sofreu proibição análoga exatamente um ano depois.  Meu avô, João de Abreu Salgado, foi o primeiro biógrafo do Padre Vítor, o sacerdote negro do sul de Minas, cujos devotos lutam por sua canonização.  Acontece que a biografia, publicada em 1946, em Três Pontas, foi desautorizada pela mesma orientação eclesiástica que impugnara a igrejinha.  Se esta foi condenada sob a alegação de que os autores, Niemeyer, Portinari e Burle Marx, eram comunistas, o livro de meu avô foi anatematizado sob a alegação de que o biógrafo era espírita, mesmo que nada de espiritismo haja no texto, ora em reedição.  
            Minha admiração por Niemeyer vem do mesmo sentimento que domina a maioria das pessoas diante de sua arquitetura, mas implica algo adicional, em função do que aconteceu a meu avô.  Daí que passei a concentrar minha atenção estética em suas obras relacionadas à religião e à educação. É fácil entender a emoção com que entrei pela primeira vez na igrejinha da Pampulha e depois na universidade e na catedral de Brasília.  Hoje considero obras-primas de Niemeyer a universidade e a mesquita de Argel.  Nada mais grandioso para esse artista ateu do que exibir, como produtos máximos de seu talento, catedrais e mesquitas.  Em verdade, é, ao mesmo tempo, uma lição esmagadora de sublime tolerância e uma santa bofetada em quem nos proibiu de rezar em sua adorável igrejinha e nos proibiu de ler o livrinho de meu avô.
             O comunista Niemeyer foi coroinha e estudou em colégio de padre. Em Minas deu seqüência à obra de Aleijadinho com a igrejinha da Pampulha, prenúncio de seus templos espetaculares. Outra relação de Niemeyer com o Deus de sua juventude foi descoberta pelo ateu Eduardo Galeano quando disse: “É sabido que Oscar Niemeyer odeia o capitalismo e odeia o ângulo reto. Contra o ângulo reto, que ofende o espaço, ele tem feito uma arquitetura leve como as nuvens, livre, sensual, que é muito parecida com a paisagem das montanhas do Rio de Janeiro. São montanhas que parecem corpos de mulheres deitadas, desenhadas por Deus no dia em que Deus pensou que era Niemeyer”.



 


IVO PITANGUY
A mais requintada expressão da medicina mineira
 
João Amílcar Salgado
         Era julho de 1946, eu estava no 3º ano de primeiras letras e acompanhava a animação em minha casa por causa da formatura naquele final de ano de meu tio, Aprígio de Abreu Salgado (saneador da malária sulmineira, sem o que não haveria Furnas), que morava conosco. Na casa em frente residia a dona Sinhaninha, prima de minha mãe, e ali estavam dois outros formandos: o filho dela, Adauto Barbosa Lima (cardiologista de nossa primeira circulação extracorpórea), e o primo deste, Oscar Resende Lima (proeminente docente de psiquiatria da USP). E na cidade havia um quarto formando, filho de grande amigo de meu pai: Alberto Sarquis (admirável médico integral). Aquela cidadezinha, Nepomuceno, que raramente formava um médico, naquele ano formava nada menos do que quatro e numa das mais brilhantes turmas da Universidade. Lembro-me bem que o Adauto e o Oscarzinho orientavam o Aprígio e o Alberto  sobre a casimira que deviam vestir na festa.
          Em meus verdes nove anos, mal sabia que conviveria longamente com outros formandos daquele ano, em minha carreira docente na mesma Faculdade que os graduou. E mal sabia eu que estaria aqui hoje a saudar o astro insigne dessa turma de estrelas, o scollar Ivo Helcius Jardim de Campos Pitanguy.   Por este nome, que é um verso alexandrino, percebe-se que seus pais, o cirurgião Antônio Campos Pitanguy e a beletrista Maria Stael Jardim, eram poetas, e com poesia profetizaram a especialidade do filho, eis que a cirurgia plástica nada mais é que o ramo da medicina mais próximo da expressão estética.
          A medicina mineira tem bela história a dizer ao mundo. Esta afirmação eu a fiz nos 90 anos de nossa Faculdade Máter e a repeti em seu centenário, no ano passado. Não cabem aqui as páginas que listem as impressionantes primazias mineiras. Basta dizer que são mineiras as maiores contribuições brasileiras à ciência: a descoberta da doença de Chagas por Carlos Chagas e a da bradicinina por Wilson Beraldo, além de serem egressos desta mesmíssima Faculdade o maior presidente brasileiro: Juscelino Kubitschek, o maior memorialista lusófono: Pedro Nava,  e o mais original prosador do idioma: Guimarães Rosa. 
Cabe, contudo, acrescentar que Baeta Viana, paraninfo dessa formidável turma de 1946, se coloca ao lado desses cinco gigantes, não por alguma descoberta científica, mas por ter descoberto um conjunto harmonioso de cientistas pré-clínicos, um deles Beraldo, e outro conjunto, não menos esmerado e influente, de clínicos cientistas e cirurgiões cientistas, um destes, Ivo Pitanguy.
        E o apostolado científico desse paraninfo fez dele um engajado político, pois em 1946 ele era apontado como uma das alavancas que fendilharam a sólida ditadura Vargas. Então essa turma está na história do Brasil como aquela que celebrando a ciência em Viana, celebrou nele a democracia, que ele pregou irmã daquela. E mais, é a turma que, na memória deste país, realizou algo inédito: teve a audácia de, homenageando o herói Eduardo Gomes, projetá-lo como candidato à presidência da República.
Minas está bem presente na personalidade do maior cirurgião plástico do mundo. Sim, Ivo Pitanguy deve ser considerado uma das personalidades simbólicas do fenômeno antropológico muitas vezes chamado de “jeito mineiro de ser”.  Se seu jeito é este, impõe-se perguntar: que menino e que adolescente foi ele?
       De acordo com a tradição, infelizmente abandonada, na turma de 1946, cada formando foi retratado em soneto jocoso, assinado por autor incógnito, sendo Ivo Pitanguy assim descrito: Esse rapaz tem vocação “cortante” / Seu destino é pegar... no bisturi / Tem esse nome lírico e cantante: / Hélcio Jardim de Campos Pitanguy // O seu “campo” de estudo é a Anatomia / O seu esporte: tênis, natação / E encerra a vida nessa trilogia: / Uma raquete, um bisturi, um calção. // ... ... ... // 
      Em verdade, no humor do texto está resumida a admiração que causava. Trazendo, nos sobrenomes Jardim e Campos, heráldicas raízes coloniais mineiras, o estudante Ivo, filho de estimada família da Capital, fez parte da juventude dourada dos anos dourados belorizontinos. Este ambiente hoje é bem conhecido graças ao sucesso do livro O ENCONTRO MARCADO, de Fernando Sabino, de 1956, sendo que Hélio Pellegrino, um dos protagonistas, foi contemporâneo (turma de 1947) de Ivo na Faculdade. 
     Desse já tão alto promontório despontou a vocação irresistível de Ivo Pitanguy para conciliar o tradicional e o moderno. De imediato, impressionou seus colegas universitários, afeitos ao francês do Testut, com o acréscimo do inglês e assim alargou o alcance de sua formação humanística, trazida de berço.  Igualmente, aos hábitos ancestrais das famílias mineiras ajuntou o culto ao esporte, abrangendo da natação ao tênis e à luta marcial. Acrescente-se depois sua desenvoltura internacional, em estágios nos melhores centros médicos dos EUA, da Inglaterra e da França e decorrentemente como conferencista em congressos e como formador de centenas de especialistas oriundos de dezenas de países.   Tudo isso alicerçou o estilo original e perfeccionista que imprimiu à especialidade que escolheu, tornando-se figura singular e inigualável no panteão mundial da cirurgia plástica. 
     No Rio, onde cursou o sexto ano de sua graduação, foi-lhe oportuno fazer profuso atendimento a pequenos e grandes traumas em pronto-socorro. Isso lhe deu a inspiração para organizar inéditos e modelares serviços, na 38ª  Enfermaria da Santa Casa e em atendimento privado. De tais realizações, sua liderança e seu carisma extraíram novo pioneirismo, desta vez em pedagogia: criou, em 1960, a primeira pós-graduação cirúrgica formal no Brasil, pela Pontifícia Universidade Católica carioca. 
       Além de cirurgião plástico, com numerosos discípulos, clientes e admiradores, multiplicados pelo Brasil e pelo mundo, entre os quais várias celebridades, foi inevitável que se tornasse autor de livros científicos e literários, alguns em co-autoria. Escreveu MAMAPLASTIAS (1976), CIRURGIA ESTÉTICA DA CABEÇA E CORPO (1981, em inglês, prêmio de melhor obra científica do ano, na Feira Internacional do Livro de Frankfurt), OPERAÇÕES PLÁSTICAS DA ORELHA (1982, bilíngüe), DIREITO À BELEZA (1984, trilíngue), ANGRA DOS REIS – BAÍA DOS REIS MAGOS (1986), UM JEITO DE VER O RIO (1991), PARATII-PARATY (1992), APRENDENDO COM A VIDA (1993), ATLAS DE CIRURGIA PALPEBRAL (1994), APRENDIZ DO TEMPO (2007), CARTAS A UM JOVEM CIRURGIÃO (2008). Em 2011 o escritor e jornalista John Holzer lançou nos EUA um livro consagrador sobre Pitanguy, prefaciado por nada menos que Denton Cooley, o extraordinário implantador e transplantador de corações.
       Com a experiência e a erudição que Ivo Pitanguy acumulou, verifica-se, por seus textos, que afinal desenvolveu uma espécie de filosofia estética, na qual se percebe também inovador ingrediente ecológico. Aristóteles, Vitrúvio e Michelangelo lhe invejariam as oportunidades de ter lidado não só com os mais belos, mas com os mais defeituosos e variados corpos humanos imagináveis, em impressionante amostragem internacional, tendo como ponto de partida a esplêndida composição racial nativa. 
     Do rococó diamantinense ao multifacetado Rio de Janeiro, do trópico brasileiro ao sofisticado burburinho internacional, Ivo Pitanguy não nega e nem procura esconder sua venusta radicalidade mineira. Ao contrário, é dela a fronte e a insígnia, em entalhe e lavor ao pé da letra.
24-11-12
_________________________________________________________________________________O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais

OUTROS  INTEGRANTES DA TURMA DE 1946
Tiveram atividade docente na Faculdade: Adelmo Morais de Souza, Alberto Caram, Geraldo Guimarães da Gama, João Afonso Moreira Filho, José Geraldo Albernaz, José Pellegrino, Naeses de Araújo Couto, Tancredo Alves Furtado e Waldemar Gati. Dirigiu a Associação de Ex-Alunos: Jesus Santos. Tiveram algum grau de convivência com o autor do presente texto e são contemplados, juntamente com os sobreditos em outros de seus escritos: Armando Chiari, João Antunes de Oliveira, João Valle Maurício (orador da turma), Joaquim Afonso Moretzsohn, José Coelho de Santana, Nicolau Cardoso de Miranda e Paulo Chaves Ribeiro.