JOSÉ
MARIA PIRES
O
mineiro contra-estamentário por excelência
João Amílcar Salgado

José Maria Pires é um mineiro que procura mas não consegue disfarçar seu orgulho de originário da gente do Serro do Frio. E nós, historiadores do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, não poderíamos deixar de insistir nesse vínculo, que nos é tão caro, pois outro arauto daquela mesma gente, Aurélio Pires, foi o idealizador e co-fundador da Faculdade de Medicina da hoje Universidade Federal de Minas Gerais. Diante disso, a aula que esse extraordinário sacerdote ministrou no Curso de História da Medicina desta Faculdade, no dia 14-12-12, foi um momento de justo regozijo pelo reencontro da instituição com o que há de mais significativo nos arcanos totêmicos de Minas.
Ele foi chamado de Dom Pelé, sendo ambos (ele e Pelé)
mineiros, um do norte, outro do sul. Mas seu maior título, ainda no símile
futebolístico, é ter sido habilíssimo meio-esquerda em magistrais tabelinhas
com o visionário centro-avante dom Hélder Câmara. Culminou tudo não só como
herói-goleador contra o arbítrio de 64 a 84, mas como o nunca
suficientemente enaltecido arcebispo emérito da Paraíba.
Poderia ter ficado no nordeste brasileiro, nos braços do
povo, mas sua alma mineira o fez retornar para junto de sua doce capelinha de
Córregos, da qual cuida como se ainda fosse aquele coroinha da primeira metade
do século 20, quando a região ainda era literalmente “mato-adentro”. Suas
peripécias hoje são acessíveis em vídeo por meio da TV Assembléia de Minas ou
por meio do livro biográfico UM PROFETA EM MOVIMENTO (O Lutador, 2011)
de Mauro Passos.
De minha parte sou estudioso da contribuição de negros
mineiros na medicina, na religião, nas artes, no esporte e em todas as áreas. Meu
avô, João de Abreu Salgado me colocou nessa trilha quando em 1946 se tornou o
primeiro biógrafo do Padre Vítor com o livro MAGNUS SACERDOS, ora em
reedição. O padre Vítor (Francisco de Paula Vítor) foi um sacerdote negro
ordenado ainda na vigência da escravidão, fato que pode ser considerado seu
primeiro milagre, entre os muitos que lhe são atribuídos. Outros estudados por mim, além dos já
citados, são: na medicina, Joaquim Cândido Soares de Meireles, Francisco de
Paula Cândido e Camilo Maria Ferreira Armond; na religião, o bispo Silvério
Gomes Pimenta e os padres milagrosos Antônio Ribeiro Pinto de Urucânia, José Pinto
Carneiro de Cipotânea, e Libério Rodrigues Moreira do Pitangui; na política, o
quilombola Ambrozio e Joaquim Barbosa; nas artes, Aleijadinho, os compositores Emerico
Lobo de Mesquita, José Maria Xavier, Manuel Dias de Oliveira e Tito Lazarino
dos Santos, bem como inúmeros jongueiros, congadeiros e sambistas, estes
representados por Geraldo Pereira e Ataulfo Alves. Não devem ser omitidos os adotivos,
como os médicos Eduardo de Menezes e João Cândido dos Santos e o músico Milton
Nascimento, os adotados, como Zumbi, Luther King, King Cole e Mandela; ou ainda os
nascidos fora, mas de origem mineira, como parece provável o genial Abdias do
Nascimento.
Darcy Ribeiro se impacientava quando alguém lhe
perguntava se era parente de algum Ribeiro importante de Minas. Respondia que a
gente mineira devia desapegar-se do culto ao estamento, devoção ridícula das famílias
tradicionais. E encerrava a conversa, garantindo que seu Ribeiro era o mesmo
daquele degredado que Cabral desembarcou na Bahia, premiado com um exílio hedonístico,
o primeiro entre outros ocorridos lá atrás em 1500. Trata-se, entretanto, de
tema de maior significado do que a pretensa menor-importância que Darcy lhe
atribui. O verdadeiro estamento mineiro tem raízes mais sérias a partir de um
historiador como Simeão Ribeiro Pires, primo de Darcy, ou a partir da
militância evangélica de um José Maria Pires. Os Pires chegaram a Minas
escaldados por disputas entre parentes bandeirantes e aqui, mesmo sofrendo
recaídas competitivas - mais que beligerantes, se tornaram preferencialmente
sábios. E nada mais próprio que um Pires que traz em seu costado o totem da
etnia banto para ser um símbolo contra-estamentário de altíssimo brilho, em
plena Minas Gerais.
A aula recheada de comoventes parábolas que esse
arcebispo nos ministrou fez-nos perceber que subsiste uma Minas autêntica a ser
cultivada, com aquela simplicidade e aquela sinceridade, que de modo algum nega
a crueldade da sociedade mineira inicial e a dramaticidade da sociedade global
atual, mas que mantem patentes as sendas tributárias de um reto caminho a
percorrer. Lembrou, principalmente, que o médico evangelista Lucas nos
demonstrou que um mero anão pode ser transformado em gigante - dependendo da
luz que persiga em sua vida e, por consequência, do homem integramente novo que
passe a hospedar dentro de si.
O Centro de Memória da Medicina,
desde sua criação, se abriu às diferentes religiões e aos reflexos de cada uma sobre
a medicina. A religião e a medicina foram uma só empresa por mais de 70 mil
anos e só recentemente, há 500 anos, se tornaram objetivamente independentes. Cumpre
ao historiador da medicina e ao historiador da religião não cair na arrogância
de ignorar tantos milhares de anos. E o diálogo sereno e saudável com um
profeta de nosso tempo, José Maria Pires, nos faz cada vez mais conscientes
dessa necessária origem comum.