João Amílcar Salgado

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

 


DOUTOR HONORIS CAUSA EM PEDIATRIA

João Amílcar Salgado

Recebi, no meio deste ano de 2025, duas homenagens que muito me emocionaram: 1) como professor universitário, no jubileu de ouro da turma de 1975 da Faculdade de Medicina da UFMG e 2) como historiador municipal, a medalha Mateus Luiz Garcia, no aniversário de minha cidade Nepomuceno. No preparo de meus agradecimentos, revisitei a também comovida homenagem que recebi do Departamento de Pediatria da UFMG, no 7º  Encontro, no Hotel Taquaril, em 1997. Dai, deparei com uma lista relacionável ao ensino da pediatiria, que elaborei a pedido de meu inigualável mestre Enio Leão, segundo ele, para nomear-me doutor honoris causa em pediatria. Este apanhado ficou inacabado e extraviado. Em virtude da importância histórica que pode ter, transcrevo-o aqui, completado.

1.   Aos 12 anos eu era o braço direito de meu pai e aprendi tudo de farmácia galênica, inclusive o critério rigoroso para a dosagem das poções infantis

2.    Desde então fui pediatra informal para familiares e filhos de auxiliares, em nossa casa e na roça

3.   No 1º ano de medicina, perguntei ao professor Liberato DiDio por que não dissecaríamos cadáveres de crianças. Ele ficou tão desconcertado que disse ser a minha dúvida assunto da próxima aula, a qual não aconteceu até hoje.

4.   No 3º ano, tivemos o privilégio de iniciar, na então cátedra de microbiologia, o “convênio da gastrenterite”, pelo qual as crianças, após o exame clínico, tinham suas fezes sob escrutínio bacteriológico. Dai surgiu o centro de hidratação infantil, hoje João Paulo II, e a  projeção nacional de meu colega de turma Josè Aloysio da Costa Val e do excelente Luciano Peret

5.   No quarto ano, o primeiro leito de que cuidei foi no pavilhão de isolamento. Era uma adolescente com suspeita de hepatite, mas logo diagnostiquei drepanocitose. Na apresentação deste caso, em reunião conjunta da clínica médica, citei o efeito da doença sobre a malária, fato que todo o corpo docente ignorava e ainda suspeitaram de que eu estava inventando.

6.   A partir daí, o Geraldo Canabrava, querido colega de turma e colega-estagiário desse atendimento infectológico, me impressionou com seu modo de se relacionar com os bebês e com as mães, bem como sua capacidade excepcional de interpretar sinais e sintomas. Ao mesmo tempo excursionávamos a cidades sem médico, em mutirão de atendimento, antecipador do internato rural.

7.   O impacto das aulas de pediatria propriamente dita, lideradas pelo genial Ênio Leão, me entusiasmou. Em vez de aulas teóricas, cada aluno era escalado para um consultório e tive enorme prazer em acompanhar o sulmineiro Augusto Severo, exímio semiologista pediátrico e cultor da simplicidade terapêutica.

8.   No final do curso, residi no então excelente hospital do IPSEMG, onde a metade do atendimento era pediátrica, com hidratação venosa, inclusive por ambulância. Ali atendi ao lado de eminentes pediatras, os principais deles Clarindo Cerqueira, pioneiro em neonatalogia, Múcio de Paula, virtuose da habilidade clínica e Guy Jannotti, diligente instrutor. Conheci então a magnífica enfermeira pediátrica, a irmã Teca, da qual recebi elogio inesquecível: “pelo que vejo você vai ser pediatra, não?, mas, se for, será dos melhores”.

9.   Dedicado à semiologia médica e professor dela por vários anos, fiz o estudo comparativo entre adulto e criança, e concluí que qualquer curso médico deve colocar os alunos precocemente no atendimento 50%  de crianças, qualquer que seja a pirâmide populacional. Outro estudo comparativo foi entre o parto de cócoras defendido por Galba Araújo e a defecação de cócoras defendida por Silva Melo.

10.       Isso levou à proposta de dois segmentos de ensino ambulatorial: medicina geral de adultos e medicina geral de crianças, afinal adotado na UFMG em 1975 e depois pelo Brasil. O ambulatório periférico e o internato rural são obviamente também pediátricos. Isso significou a maior carga horária pediátrica do mundo. Proposta correlata fora anteriormente feita, em 1967, de uma equipe mínima de três médicos, sendo um deles pediatra dublê de anestesista. Outras iniciativas foram os apoios coerentes à oftalmologia pediátrica através do brilhante Henderson Celestino de Almeida, à cirurgia infantil através dos eminentes  Manoel Firmato, José Carlos Lana e Moacir Tibúrcio, bem como ao ensino simulado em adulto e criança, através do notável Antônio Cândido, junto a Cristine McGuire, mestra do tema.

11.       Sextanista, recebi no plantão uma criança com síndrome de Waterhouse-Friderichsen e os pediatras diagnosticaram meningite.  Discordei e pedi exame para febre maculosa. Foi o último exame feito por meu querido professor Otávio Magalhães, que me parabenizou pelo diagnóstico confirmado por ele

12.       Ainda sextanista, diagnostiquei mononucleose em outra criança. Na época o exame exigia sangue de carneiro. O laboratorista Sales Jesuino esbravejou comigo e falou aos pediatras: “este menino tem de ser proibido de inventar doença, estou bufando de correr atrás de carneiro!” Depois veio me pedir desculpas, porque o exame deu positivo.

13.       Recém-diplomado, reencontrei, com uma equipe, a paciente Berenice da Doença de Chagas, sendo que a descrição da criança inaugural por Carlos Chagas significa o primeiro ou o maior capítulo da infectologia pediátrica no Brasil. A Berenice de Chagas e a Berenice reencontrada estão no livro A PACIENTE BERENICE DA DOENÇA DE CHAGAS (2024).

14.       Encontrei em Nepomuceno uma criança que ingeriu soda cáustica. Trouxe-a ao pronto-socorro e o tratamento foi modelar, se prestando a muitas aulas. Tanto que a menina, apelidada de Sodinha, passou a residir no hospital, protegida por Elmo Perez, e a devolvi à mãe Aparecida da Maria Rosa plenamente recuperada.

15.       Outra criança estava em opstótono em Nepomuceno e eu tinha acabado de participar da montagem do primeiro CTI completo do país, na UFMG.  Trouxe-a e foi o primeiro tétano tratado em CTI no Brasil. A criança se tornou um homem normal que veio, nós dois emocionados, me agradecer recentemente.

16.       O Ênio Leão veio com sua magnífica tese sobre escorbuto, dizendo que me queria testemunha de sua decisão de jogá-la no lixo. O outro Enio (Cardilho) tinha dito que seria da banca e a reprovaria pela ausência de dosagem da vitamina. Arrebatei o texto, fiz a revisão metodológica e lhe dei dez com louvor.

17.       O Edward Tonelli veio com sua magnífica tese sobre salmonelose septicêmica, fiz a revisão metodológica e lhe dei dez com louvor.

18.       O José Silvério Diniz veio com sua magnífica tese sobre síndrome nefrótica, fiz a revisão metodológica e lhe dei dez com louvor.

19.       Indiquei o José Silvério para diretor do Hospital das Clinicas e o Enio para editor da revista médica que criamos. Indicamos Dario Tavares para a saúde estadual, com o fim de implantar o internato rural, e ele perguntou: com que recurso? Respondi: com os dólares que a Kellogg nos deu para a antinatalidade.

20.       Propus a edição de um livro didático sobre clínica ambulatorial de adultos e outro sobre pediatria ambulatorial, redigidos pelo método de resolução de problemas. Ambos foram editados, mas, por pressa, as equipes encarregadas deixaram de lado o método.

Nenhum comentário:

Postar um comentário