ATAULPHO DA COSTA RIBEIRO
Desassombrado nietszchiano
João Amílcar Salgado
Ataulpho da Costa Ribeiro
diplomou-se pela atual Universidade Federal de Minas Gerais, em 1949, e veio a
ser um dos mais cultos psiquiatras brasileiros. Conheci-o quando, no Centro de
Memória da Medicina, o Ciro Gomide Loures me chegou com um duo cervantino: o cartunista
e historiador Fernando Pieruccetti, alto e magro, e o médico e escritor
Ataulpho, de estatura menor e bigodudo.
Os três queriam discutir os achados minuciosos de Fernando sobre o
primeiro curso médico brasileiro, ministrado em Vila Rica , desde 1801. Nas
apresentações, relacionei o sobrenome Costa Ribeiro com a cidade de origem,
Lavras, e imediatamente reconheci no portador os traços dos Ribeiros
nepomucenenses, quer no físico, quer no comportamento. Diante disso ele me
passou sua árvore genealógica, pelo que hoje o chamo de primo.
Naquele
dia, Ataulpho sugeriu que convidássemos Bi Moreira para ministrar aula no curso
de História da Medicina, o que aconteceu no semestre seguinte. Emocionado, Moreira relatou sua luta para
organizar o museu que hoje traz seu nome e que, em boa hora, passou a preservar
a memória da região de Lavras. Na aula, entre outras preciosidades, revelou-nos
que Paulo Meniccuci, patriarca da medicina lavrense, se consagrou como
cirurgião, quando, no início do século 20, após examinar um homem esfaqueado,
teve a audácia (que, na época, quase nenhum cirurgião teria) de fazer-lhe uma sutura do músculo cardíaco,
salvando aquela vida.
Daí
passei a admirar a boa prosa do erudito Ataulpho Costa Ribeiro, seus deliciosos
comentários críticos e seu lado de poeta sensível e de filósofo cético, bem
assim suas predileções na música, iguais às minhas. Conheci de sua competência
clínica, no exercício da qual joga com habilidade toda sua abrangente cultura. Tudo
me fazia pensar dele um recluso, quando avisto uma pessoa muito parecida com
ele, a passar por mim, todo desenvolto, ao pedal de uma bicicleta, lá no alto
do Miguelão. Não podia ser, mas era ele
mesmo. Sim, ele sim, ciclista ou andarilho, era parte daquela paisagem.
Descobrimos
que ambos éramos fãs de Agripa Vasconcelos.
Revelou-me que conviveu certo tempo com o médico e escritor, ocasião em
que recebeu dele, datado de dezembro de 1948, o manuscrito exclusivo do soneto ADOLESCENTE:
No citoplasma do ovo, ao gene, obscura, / Na química fatal do
cromosoma, / Foste
gerada com a dourada coma
/ Ao calor da genética mais pura! // Produto de um calor que ainda perdura, / Num salto mendeliano,
agora assoma / Teu vulto esbelto que é o resumo, a soma / De protoplasmas que o
calor mistura.
// Na tua biologia recessiva, /Não teu pai – tua mãe é que está viva, / O gene dela é que
prevaleceu // Tu que
vens de uma antese clara e bela,
/ Já te cobri de beijos dados nela / E beijo em ti aquela que morreu.
Em
dezembro de 2005, o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais concedeu pela
primeira vez o Prêmio Pedro Salles de História da Medicina. Sendo premiação
inaugural, foram premiados in memoriam Agripa Vasconcelos, Otávio
Nelson de Sena e Fernando Pieruccetti.
Por sua fraterna ligação a Pieruccetti, Ataulpho foi convidado a
recebê-lo em nome de seu grande amigo – e assim também homenageado. Foi quando lembrou
ter Aníbal Matos cognominado Pieruccetti de o nosso
Aleijadinho do crayon.
Ataulpho
Ribeiro, lendo Nietszche no original, passou a ser respeitado estudioso da vida
e da obra do grande filósofo e poeta alemão. Afinal se transformou em
autoridade naquilo que lhe cabia como psiquiatra, que é a demência de que
Nietszche foi vítima no fim da vida. No centenário de sua morte compareceu ao
túmulo e leu em lágrimas um poema que lhe escreveu em alemão. Convidado
pelo Centro de Memória da Medicina a ministrar conferência sobre o tema, causou
forte emoção nos estudantes do Curso de História da Medicina, quando exibiu o
filme em que aparece o originalíssimo pensador em seu dramático internamento
hospitalar.
Estamos
preparando a publicação do livro A PSICOSE DE NIETSZCHE, que é o
coroamento dos textos escritos por Ribeiro sobre Nietzsche. Seus colegas do
Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais o aconselham a publicá-lo também
no exterior, pois parece que nenhum estudo semelhante foi feito até o momento. Seus ensaios e poemas são densos
e nos induzem a inquietantes reflexões. Na verdade trata-se de um pensador singular,
capaz de arquitetar sedutora ponte entre os iluministas mais radicais e o
pensamento nietszchiano mais revolucionário.
Em
Roeckendorf, na Alemanha, no dia 09-10-1993, Ataulpho Ribeiro rezou à beira do
túmulo de Friedrich Nietszche a seguinte oração-poema: Tu foste poeta e pensador. Em tua
vida introspectiva e solitária, a dor foi prematura e permanente. Aos quatro
anos de idade, ao falecer teu pai, a existência já desvelava, aos teus atônitos
olhos de criança, o seu verdadeiro rosto, as suas dissonâncias, as crueldades
que a desesperam. Desde então, a tua
vida inteira, por poderosa e aguda percepção crítica da realidade, e por tua
sempre frágil condição de saúde, foi uma grande odisséia de sofrimentos, resignação
e desencantos. Filósofo lírico, pensador da existência , artista da palavra,
dotado de excepcional pendor musical, deixaste, para a posteridade, enriquecendo
sobremaneira a herança cultural comum, um legado espiritual marcado por
original e impetuosa avalanche de idéias, todas elas girando em torno de
grandes temas e desconcertando a bi-milenar tradição da filosofia
ocidental. Possuías uma alma nobre e
solitária, meditativa, muito acima das contingências cotidianas da vida. A
música e a palavra, como bem observava Thomas Mann, foram as tuas únicas
vivências. Falando de ti mesmo, dizias:
“Os meus pensamentos tornaram-se os meus acontecimentos; o restante de minha
vida nada é senão a crônica diária de uma doença.” Em verdade, a tua existência
inteira foi um segundo “nascimento da tragédia”. Tua grandeza, como escultor do
idioma, como poeta e pensador, como consciência crítica dos valores, como
filósofo do niilismo e da cultura, como educador da liberdade, tuas antevisões
proféticas, tuas profundas análises psicológicas, são ininterruptos diálogos
interpelativos com a realidade, todos eles colocados em altíssimo nível de
contestação cósmica. Foste, em tuas próprias palavras, “poeta, decifrador de
enigmas e redentor do acaso”. Hoje, seis dias antes de teu aniversário, e após
meio século de paciente expectativa, de atenta leitura de tuas obras,
realizando um antigo anseio, venho ao teu túmulo e à tua aldeia natal para
reverenciar a tua memória, para tributar ao teu nome a minha mais comovida
homenagem. Ao realizar esse gesto, de
contrição e fervor, gostaria que ele o fosse consoante as tuas próprias
aspirações e sensibilidade, consoante a transcendência do momento, a epifania
desse instante, quando nehuma palavra é capaz de expressar, em toda a sua
plenitude, as grandes emoções do espírito: “Oh! minh´alma, ... canta, não fales
mais!”
Tendo
dado o nome de Robespierre a seu filho (também médico e também brilhante), este
jacobino transbordante de mineiridade mostra que em Minas se esconde, em nicho
esplêndido, simbiontes de poesia e dialética. Quando discernidos sem
preconceito e com justiça, terão em Ataulpho da Costa Ribeiro um exemplo digno
de estudo sério, de controvérsia sadia e de admiração verdadeira.