João Amílcar Salgado

domingo, 18 de julho de 2021

 


PADRE JOSÉ DOMINGUES – UM NEPOMUCENENSE ADOTIVO INJUSTIÇADO NÃO SÓ EM VIDA, MAS EM SUA MORTE E ATÉ EM NOSSOS DIAS

João Amílcar Salgado

O Padre José foi pároco da Vila de 1917 a 1930. Era visto com a colher de pedreiro no meio dos operários que erguiam as paredes da matriz, acima dos alicerces cravados pelo Cônego Pedro Macário de Almeida. Igualmente era visto em prolongadas partidas de xadrez com o João Salgado, o Lela, o Juca Azzi, o Alfredo Unes e os demais que fundaram o Clube de Xadrez (depois Clube Nepomuceno). À tarde ele vinha cavalgando seu vagaroso burro, a percorrer as ruas ainda de terra de seus paroquianos. Quando foi eletrificada a cidade, todos ficaram felizes, menos o burro. No meio do caminho as luzes se acendiam e o animal empacava. O Padre José não titubeou: prosseguiu em seu passeio diário, mas antes vendava os olhos do inteligente asno, que sabia o caminho de cor.

O arcebispo da Capital sofria de paranoia contra os protestantes, os espíritas e os maçons.  Alguém teria denunciado o Padre José como maçon. O arcebispo era ignorante em História, pois deveria saber que houve vários ilustres sacerdotes que conciliaram o catolicismo com a maçonaria. Mesmo sem comprovação da denúncia, veio a ordem para levar o virtuoso e queridíssimo vigário para o hospício Raul Soares – sobrepondo-se à autoridade do bispo Ferrão, advertido de que, se obstasse, seria arrolado também como maçon. Para a internação psiquiátrica, a alegação era que só mesmo um padre doido poderia ser também maçon.

Para que essa narrativa não ficasse sob brumas lendárias, procurei nos arquivos do Instituto Raul Soares o prontuário de José Domingues. Um antigo funcionário lembrou que o papelório de religiosos talvez tenha sido recolhido ao arquivo diocesano, onde nada consegui. Nessa época, pesquisávamos no Instituto outros importantes documentos, como os referentes a Luz del Fuego, Agripa Vasconcelos e Lot Mansur.

Felício Assunção se ofereceu para acompanhar o Padre José ao hospício. A Dinica me disse que seu pai viajou chorando às escondidas, inconformado com a crueldade daquele banimento. O admirável Felício superava a todos aqueles enxadristas na imensa afeição ao santo Padre José. 

 

terça-feira, 13 de julho de 2021

 


ZEBEDEU E ELIAS MURAD

João Amílcar Salgado

A ligação entre o Zebedeu (José Monteiro Lima Costa) e o professor de química José Elias Murad começou em 1954, quando o primeiro chegou à Capital como bancário e o segundo era morador da tradicional República Nepomuceno da rua Tomé de Souza 1340. Murad era um tremendo humorista e quando conheceu o Bedeu ficou seu fã pelo resto da vida, a começar pelo espetacular episódio do cabo do guarda-chuva.  O Zebedeu é lembrado agora, em 11/7/21, por sua incrível semelhança com o craque Kane, da seleção inglesa, vice-campeã da Europa. Ele era de inteligência acima da média e disputou o título de nepomucenense mais espirituoso de todos os tempos. Ouviu de mim que o Murad era de uma didática sem igual. Daí resolveu aproveitar sua amizade com o catedrático para aprender química, ideia que agradou tanto o docente que este o levava em animada conversa para as aulas no Colégio Estadual - e o punha entre os alunos. Estes se divertiam demais com as tiradas do improvisado colega. O ponto máximo dessa aventura foi quando o Murad perguntou ao aluno mais estudioso: “Qual sábio disse que nada se perde, nada se cria, tudo se transforma - foi Platão ou Lavoisier?” Nosso querido sabichão da Vila imediatamente levantou a mão. O mestre arregalou os olhos e ouviu dele: “Não foi o Platão e nem esse outro, quem inventou isso foi a dona da pensão onde eu moro: qualquer resto nos pratos do almoço e do jantar não se perde e tudo se transforma num mexidão terrive!”

            Na semana santa de 1955, o Murad ofereceu carona em seu carrão a mim e ao Zebedeu. A estrada Fernão Dias ainda era de terra e passava de cidade em cidade. Em S. Antônio do Amparo, paramos na melhor lanchonete e o pastel era tentador. O Bedeu deu uma mordida gostosa, mas danou a fingir espirrar, dizendo: “Nossa Senhora, vou resfriar, esse pastel só tem ar quente e mais nada!” O dono pegou um facão e gritou: “Repete isso aí, sêo atrevido!” Nessas circunstâncias, o Murad foi mil vezes mais diplomata do que didata, quando amansou o homem e ainda pagou dobrado por nossos pasteis.

Quando chegávamos à Vila, o professor tentava ensinar química nuclear ao bunda-vermelha. Disse que “a bomba mais forte da história é a bomba atômica - ela é atômica, porque é feita com átomos de urânio e átomo é a menor coisa que existe”. O bancário gritou: “Estacione aqui que vou chegar a pé!, prá mim chega! - tenha vergonha, professor Murad, o senhor querendo me pregar uma mentirona dessa de Americano, achando que vou acreditar que a menor coisa do mundo explode o maior estrondo do mundo! – tenha a santa paciência!”

 

[APERITIVO PARA O LANÇAMENTO DE O RISO DOURADO DA VILA 2ª ED, BREVE]

domingo, 4 de julho de 2021

 

ANTONIO SÉRGIO BUENO E AS VÍSCERAS DE NAVA

João Amílcar Salgado

Antônio Sérgio Bueno nasceu em São Gotardo, cidade fundada por gente de Nepomuceno. É ilustre professor de literatura da UFMG e, em 1997, ficou famoso por seu livro VÍSCERAS DA MEMÓRIA, resultado de suas conversas com Pedro Nava. Antes ele já era referência para a chegada da arte moderna a BH, com as obras O MODERNISMO EM BELO HORIZONTE (1982) e AFFONSO ÁVILA (1997) - acontecimento realçado nas memórias de Nava. Os médicos Agripa Vasconcelos, Paulo Pinheiro Chagas, Pedro Nava e João Guimarães Rosa, bem como o farmacêutico Carlos Drummond, estão na temática de Bueno e daí sua aproximação com o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, sendo que Affonso Ávila já havia aí participado do estudo sobre a doença do Aleijadinho. Fortes laços resultaram desse nosso convívio e a admiração de todos por Antônio Sérgio passou de unânime a cada vez maior. Sugiro o vídeo anexo para confirmação do valor excepcional deste raro ensaísta.

https://youtu.be/xW-JvI5FHnE



terça-feira, 29 de junho de 2021

 


O ESPORTE FAZ COMOVENTE HOMENAGEM À CIÊNCIA E À SAÚDE

João Amílcar Salgado

No primeiro dia do torneio de tênis de Wimbledon, 28/6/21, quem se tornou protagonista em Londres não estava em quadra, mas em meio ao público: a britânica Sarah Gilbert, cientista da universidade de Oxford, líder das pesquisas da vacina  AstraZeneca, preciosa arma contra a atual pandemia de covide. Foi aplaudida de pé, em comovente homenagem à ciência, aos cientistas e ao SUS britânico (vídeo anexo). Fiquei bastante emocionado em razão de minha ligação a esta universidade e por ser um dos iniciadores do SUS do Brasil.

https://twitter.com/i/status/1409492721715253251

segunda-feira, 21 de junho de 2021

 


VIAGEM AO REDOR DE MEU QUARTO

Honra-me ter sido orador da turma em 1960, exatos 30 anos após Guimarães Rosa ter sido orador, na mesma faculdade. Na saudação a seu paraninfo - o sulmineiro Samuel Libânio, ex-aluno do Padre Vítor - Rosa diz dele: “Ficaram inesquecíveis para nós aquelas aulas, quando ele conduzia o bando de aventais brancos por entre os leitos da enfermaria, em excursão “não menos instrutiva por menos variada que a VOYAGE AUTOUR DE MA CHAMBRE”, segundo palavras dele próprio.”

A VOYAGE (VIAGEM AO REDOR DE MEU QUARTO) é célebre texto de Xavier de Maistre, de 1794, em que um homem é sentenciado à prisão em seu próprio quarto, na companhia de um criado e um cão. Ali, em vez de se entregar à melancolia, propõe ao mundo nova maneira de viajar: ao redor do quarto. Ora, se Libânio considerava a ronda de leitos da enfermaria tão instrutiva quanto a VOYAGE, é quase certo que Rosa, em sua viagem ao redor do regionalismo de seu sertão nativo, o considerasse universalmente grande. Ou seja, como de Maistre, Rosa propôs ao mundo nova maneira de ser literariamente universal, conforme aplauso ouvido de leitores de todos os continentes.  Proposta análoga fora feita por James Joyce, em uma viagem também universal ao redor de um dia e em outra ao redor de uma noite. Pablo Neruda, por sua vez, percorre quatro partes de um dia, brindando-nos com cem sonetos de amor.

Luiz Savassi Rocha, nosso maior roseólogo, assinala que Carlos Drummond (formando em farmácia quando Rosa era calouro no mesmo ambiente universitário e nele também contemporâneo de meu pai) dá notícia de outra VOYAGE ocorrida no Brasil.  Foi empreendida nos limites da cela da prisão da Ilha Grande pelo eminente ornitólogo Helmut Sick, quando, por ser alemão, ali ficou recluso à época da 2a guerra mundial. Drummond diz: “Aí, não podendo estudar aves em sua cela, estuda míseros companheiros de solidão: pulgas, percevejos, cupins – só destes últimos, identifica onze espécies desconhecidas.”

Na mesma ocasião do Grande Sertão, Aldous Huxley propõe uma sétima VOYAGE: em torno da própria mente, com auxílio de alucinógeno – a qual Timothy Leary chamou psicodélica e de cujo culto surgiu uma seita, o delismo, para alguns, infernal.

 

[APERITIVO PARA “O RISO DOURADO DA VILA” 2ª ED - BREVE]

 

domingo, 13 de junho de 2021

 ILUSTRES LIBANESES E CARVALHOS DO SUL DE MINAS

João Amílcar Salgado

A cidade sulmineira de São Gonçalo do Sapucaí se distingue na história da medicina brasileira por três marcos: 1) é o local de nascimento e destino de Faustino José Azevedo, diplomado em 1793,  um dos estudantes de medicina iluministas, denominados por Pedro Sales de o grupo de Montpellier, responsáveis pelas diversas inconfidências havidas na busca de nossa independência, 2) é o local do assassinato do Barão do Rio Verde cometido por um médico insano, causa de embate corporativo, e 3) é o local de nascimento de três médicos, um pai e dois filhos - esplendente trio, que faz transbordar de orgulho não apenas essa cidade, mas nosso Estado e nosso país. Estes são José, Márcio e Romeu Ibrahim de Carvalho, o primeiro formado no Rio em 1925 e os outros dois na atual UFMG, em 1952 e 1953 (aparentados aos Carvalhos da Vila).

            O são-gonçalense José Ibrahim de Carvalho, ligado à aristocrática escola cirúrgica de Brandão Filho, no Rio, ocupa lugar proeminente na medicina mineira, pois, desde a formatura, decidiu enfrentar a dura missão de dar assistência integral a sua cidade natal e região, com seu excepcional talento de polivalente clínico e seguro cirurgião.  Mais que isso, diante da precariedade das condições, não vacilou em construir hospitais e facilitar o acesso aos necessitados, além de lançar-se na política para conseguir aquilo que estava fora do alcance profissional. Com legendária popularidade, fez-se prefeito municipal, em quatro mandatos desde 1936. Daí assegurou melhorias sanitárias e ágil modernização nos aspectos urbanísticos e sociais, incluindo a educação, o esporte e a cultura.  Talvez não tenha havido médico no Brasil com tamanha capacidade para buscar e dominar recursos emergentes, tanto na saúde como nas demais áreas. Esteve sempre adiante de seu tempo, exemplo disso é a evolução que empreendeu para estar junto dos pacientes. Iniciou atendendo a cavalo, passou ao uso da motocicleta e depois do automóvel, ainda a percorrer estradas de carro de boi. Por fim, na década de 40, convenceu os fazendeiros a construir quatorze campos de pouso em suas fazendas, nos quais, com a maior desenvoltura, descia pilotando um avião Piper, popularmente apelidado de teco-teco. Mas sua maior realização, entre tantas e tão importantes, foi gerar dois expoentes de sua própria profissão, os magníficos doutores Márcio e Romeu.

A turma de 1952 da UFMG é invejável conjunto de médicos. Admiro entre eles o Márcio Ibrahim de Carvalho, que, sobre ser insuperável ortopedista, compõe aquele pugilo de personalidades que denominei varões plutárquicos da medicina.  Quando eu cursava o primeiro ano, em 1955, o Márcio já estava nos EUA, onde desenvolveu sua especialização em alto estilo, ou seja, de certo modo de costa a costa, primeiro em Filadélfia (Pensilvânia) e depois em São Francisco (Califórnia).  Um homem, com sua inteligência e com tal preparo, deveria ter regressado para ser meu professor de quinto ano em 1959, mas fui privado irreparavelmente desse privilégio.

O Márcio acumulou impressionante sucessão de êxitos como clínico, cirurgião, planejador, administrador e líder corporativo – sempre submisso à ética, quer no cuidado da mais humilde pessoa até no de muitas celebridades. Eu que estudei administração hospitalar, não me lembro de aula melhor sobre o tema do que quando o Márcio percorreu comigo os novos arranjos criados por ele no hospital Sarah Kubitschek de Belo Horizonte. Aquele ambiente de Niemeyer estava ali trabalhado por um médico capaz de preenchê-lo com a engenhosidade à altura de quem o criou.

 


quinta-feira, 10 de junho de 2021

 


 GOMIDE BORGES, PICADA DE GOIÁS E GOMIDES DA VILA

        O Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais foi criado em 1977. De imediato, Ciro Gomide Loures e Paulo Gomes Leite passaram a documentar o médico mineiro Antônio Gonçalves Gomide, senador, constituinte de 1823 e primeiro psiquiatra brasileiro. Em 1992, foi publicado por José Gomide Borges O SERTÃO DE NOSSA SENHORA DAS CANDEIAS DA PICADA DE GOIÁS. O acervo reunido por José passou a ser fundamental para documentar a própria família Gomide.

              Ciro Gomide Loures é a maior autoridade no herói Tiradentes, sendo ambos dentistas. Sobre Antônio Gomide, ele revelou o episódio entre o psiquiatra e o naturalista Saint-Hilaire, pelo qual se antecipa em 1817 a descrição do reflexo condicionado de Pavlov (1904). Gomide fez o francês testemunhar o dito reflexo em animais de tropa, na cidade de Caeté. Gomes Leite, por sua vez, autenticou ser Antônio Gonçalves o verdadeiro autor da IMPUGNAÇÃO ANALÍTICA (1814) aos milagres da Irmã Germana. Com essa impugnação ele não só inaugura a psiquiatria brasileira, como antecipa conceitos só depois enunciados por Sigmund Freud.

              Já José Borges nos revelou Itapecerica como a cidade irradiadora dos Gomide em Minas. Iniciam-se pelo luso Xavier Gonçalves Gomide, nascido na freguesia de Santa Maria de Devela, vila de Castelo de Vide, batizado a 9-5-1712. Filho de pai homônimo e de Margarida Carrilho, era neto paterno de Manuel Gonçalves Gomide e Isabel Morata. De Itapecerica, seu filho Tomás foi para Piranga, onde se tornou pai do futuro médico por Edimburgo e senador. Este veio clinicar em Caeté, onde cuidou da futura Marquesa de Santos. Dois outros filhos de Tomás, Emílio e Jaime, foram para Rio Novo, onde nasceu Ciro.

              Xavier Gomide é também pai de Teresa Gonçalves, genitora de Manuel Antônio Gomide, por sua vez pai de João Lourenço Gomide, fixado em Campo Belo. Este deixou descendentes aí e ainda em Lavras, Perdões, Nepomuceno e Candeias, onde nasceu Gomide Borges. Em Perdões também nasceu Laura Eucélia Leite Gontijo Gomide, bisavó do autor do presente texto (esposa do bisavô Manoel Alves Vilela e mãe do avô Joaquim Alves Vilela).

          Gomide Borges traça o parentesco entre os Gomide, Carrilho e Morato, desde ainda Portugal, e o parentesco mineiro destes com os Alves de Figueiredo e os Alves Vilela (denotadores das linhagens Taveira e cabralina).  Quase todos migraram ao oeste, pela picada de Goiás, encontrando-se Carrilhos, Vilelas e Figueiredo no Triângulo, noroeste paulista, Goiás, Tocantins e Mato Grosso. Observe-se que um dos fundadores de Uberlândia é Carrilho (Carrejo ou Carrijo). E o próprio sobrenome Borges do pesquisador é notório nesses mesmos lugares.

[APERITIVO PARA LIVRO O RISO DOURADO DA VILA 2ªed, BREVE]