João Amílcar Salgado

sexta-feira, 12 de abril de 2013


MARGARETE E A AMEAÇA COREANA
João Amílcar Salgado
            A morte de Margaret Thatcher trouxe as homenagens esperadas a um ex-governante britânico. Mas a mídia mundial, por ser tão abrangente, poderia aproveitar a oportunidade para dizer aos jovens de hoje que toda a crise atual, vivida pelo hemisfério norte ocidental, está enraizada em Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Será que isso não é dito em respeito a uma morta?
         Estive na Inglaterra antes do governo Thatcher e ali conversei com um sábio professor de Oxford, Sidney Truelove, sobre as perspectivas do serviço de saúde britânico. Ele era respeitadíssimo especialista e também estudioso das tendências econômicas e políticas ligadas à medicina.  Fiquei impressionado quando me disse que o horizonte econômico da Europa era sombrio. Segundo ele, o mercado comum europeu não ia dar certo. Assim só havia duas saídas. A primeira era voltar ao capitalismo selvagem, com anulação das conquistas do bem-estar social, principalmente na saúde. A segunda era inventar uma guerra.
         Dois anos depois surge a Margarete que escolheu a primeira saída.  E, para ter mais sucesso, fez dobradinha com Ronald Reagan, tão selvagem como ela. Os dois se consideravam os donos do mundo. Sábios, como Gay Talese e outros, não tiveram dúvidas em apontar esses dois como responsáveis iniciais pelo craque imobiliário nos EUA e a estagnação na Europa. Elogios à Margarete, em sua morte, não servem só para homenageá-la, servem muito mais para esconder  seus cúmplices ainda vivos.
         E a Margarete morreu no momento em que toma corpo a segunda saída para a crise agigantada por ela. Uma guerra inventada agora iria dinamizar as economias europeia e americana -  e  todos esqueceriam os crimes de  Thatcher e Reagan.

quinta-feira, 11 de abril de 2013


AFONSO SILVIANO BRANDÃO – VARÃO PLUTÁRQUICO DE MINAS E DA MEDICINA MINEIRA
João Amílcar Salgado
Acaba de ser editado o livro NA VIVÊNCIA  DO MEU TEMPO, escrito por Afonso Silviano Brandão. A primeira edição é de 1977 e foi distribuída  apenas entre familiares e amigos. Tive o privilégio de receber um  exemplar do autor e outro agora do filho, o proeminente patologista Hugo Silviano Brandão. Várias razões me fazem interessado nessa autobiografia, indissociável de várias histórias: a dos Buenos, entre os fundadores  do sul de Minas; a do clube América, vertente esportiva da faculdade federal de medicina; a da faculdade “Católica”, de que sou personagem, e a das entidades médicas, de que sou historiador e crítico.
Estudioso do sul de Minas, sei que os Buenos bandeirantes deixaram descendentes nas Lavras do Funil, região do meu berço, e nas lavras de Ouro Fino, berço dos Bueno Brandão. Pedro Vidigal escreveu que os Bueno vieram também para o Calambau e ai mudaram o nome para Martins da Costa. Eu disse-lhe que seu livro tinha centenas de páginas mas não dizia por que trocaram o nome. “Não disse, porque não sei”, respondeu. E eu: “Eu sei: é porque não era prudente conservar o sobrenome Bueno depois do Capão da Traição. Poucos não o mudaram”.  E o genealogista exclamou: “Então foi assim?, sêo valente!!!...”
Sobre o América, poucos sabem que os antigos campo e quadras próximos à faculdade federal eram área do parque municipal, cedida a esta escola, como campus esportivo, pelo sulmineiro e prefeito Otacílio Negrão de Lima. Virtualmente, o América era o time da faculdade, daí tantos médicos entre seus fundadores, associados e craques, um deles Afonso, cotado a mais ilustre.  Daí nosso protesto inútil quando a área foi depois vendida indevidamente a um supermercado. Nossos argumentos foram ridicularizados (hoje seriam aplaudidos), porque propúnhamos que a área voltasse a ser parte do verde do parque.
Tenho grande carinho pela “Escola Católica” de medicina. Quando fiz exame vestibular ali, vários docentes perambulavam amistosamente pelas salas das provas e participaram, sem qualquer rispidez,  das arguições orais. Tenho vaga lembrança de que Afonso era um deles. As turmas diplomadas em 1960 pela “federal” e pela “católica”, de tão pequenas, somavam uma única turma na Belo Horizonte dos anos dourados.  Mais tarde,  tive atuação decisiva na efetivação do ensino ambulatorial, quando deste fui o mais veemente defensor.  Depois, mais uma vez fui decisivo na deliberação de que o hospital São José viesse a ser seu hospital universitário, tão sonhado. Enfim, participei ativamente na modernização curricular, inclusive a adoção do internato rural.
Quando a antiga Universidade Católica, nos trâmites para ser Pontifícia, abriu mão da faculdade de Ciências Médicas - logo ela que era chamada de “a católica”! - fiz dura crítica aos autores deste ato ignominioso.  E não tive dúvida em rotular o gesto de mesquinho, numa palestra em pleno auditório da instituição ofendida.  Coincide que,  no ano da reedição do livro de Brandão, a PUC  inicia novo curso médico, desta vez não-filantrópico e não-descartável, mas altamente rentável.
Como historiador, examino a origem, os acertos e os erros  de cada entidade integrante da corporação médica mineira, senso lato, e também da corporação brasileira. Estudo, em especial, o papel neste enredo desempenhado por JK e Clóvis Salgado, dois médicos e políticos também presentes na saga da Faculdade de Ciências Médicas. Tais dados são encontrados em outros de meus textos.
Por todo o sobredito é possível avaliar a grata satisfação com que recebi a segunda edição de NA VIVÊNCIA DO MEU TEMPO, título de livro capaz de causar inveja em qualquer escritor. Seus leitores descobrirão que nenhuma personalidade da história brasileira contou com as circunstancias singulares, de nascimento, infância e juventude, que convergem na biografia de Afonso Silviano Brandão.  E a singularidade persiste e cresce quando se completa com  a vertente reta e realizadora do restante de sua existência.
 Eis, enfim, um livro que nos chega como límpida gema de Minas. Sim, nada mais substancial poderia ser ofertado à  história da medicina mineira, exatamente pelo raro conteúdo de nobreza, de honradez e de sul-mineiridade!

quinta-feira, 4 de abril de 2013


ATAULPHO DA COSTA RIBEIRO
Desassombrado nietszchiano
João Amílcar Salgado
         Ataulpho da Costa Ribeiro diplomou-se pela atual Universidade Federal de Minas Gerais, em 1949, e veio a ser um dos mais cultos psiquiatras brasileiros. Conheci-o quando, no Centro de Memória da Medicina, o Ciro Gomide Loures me chegou com um duo cervantino: o cartunista e historiador Fernando Pieruccetti, alto e magro, e o médico e escritor Ataulpho, de estatura menor e bigodudo.  Os três queriam discutir os achados minuciosos de Fernando sobre o primeiro curso médico brasileiro, ministrado em Vila Rica, desde 1801. Nas apresentações, relacionei o sobrenome Costa Ribeiro com a cidade de origem, Lavras, e imediatamente reconheci no portador os traços dos Ribeiros nepomucenenses, quer no físico, quer no comportamento. Diante disso ele me passou sua árvore genealógica, pelo que hoje o chamo de primo.
            Naquele dia, Ataulpho sugeriu que convidássemos Bi Moreira para ministrar aula no curso de História da Medicina, o que aconteceu no semestre seguinte.  Emocionado, Moreira relatou sua luta para organizar o museu que hoje traz seu nome e que, em boa hora, passou a preservar a memória da região de Lavras. Na aula, entre outras preciosidades, revelou-nos que Paulo Meniccuci, patriarca da medicina lavrense, se consagrou como cirurgião, quando, no início do século 20, após examinar um homem esfaqueado, teve a audácia (que, na época, quase nenhum cirurgião teria) de  fazer-lhe uma sutura do músculo cardíaco, salvando aquela vida.
            Daí passei a admirar a boa prosa do erudito Ataulpho Costa Ribeiro, seus deliciosos comentários críticos e seu lado de poeta sensível e de filósofo cético, bem assim suas predileções na música, iguais às minhas. Conheci de sua competência clínica, no exercício da qual joga com habilidade toda sua abrangente cultura. Tudo me fazia pensar dele um recluso, quando avisto uma pessoa muito parecida com ele, a passar por mim, todo desenvolto, ao pedal de uma bicicleta, lá no alto do Miguelão.  Não podia ser, mas era ele mesmo. Sim, ele sim, ciclista ou andarilho, era parte daquela paisagem.
            Descobrimos que ambos éramos fãs de Agripa Vasconcelos.  Revelou-me que conviveu certo tempo com o médico e escritor, ocasião em que recebeu dele, datado de dezembro de 1948, o manuscrito exclusivo do soneto ADOLESCENTE:  No citoplasma do ovo, ao gene, obscura, / Na química fatal do cromosoma, / Foste gerada com a dourada coma / Ao calor da genética mais pura! // Produto de um calor que ainda perdura, / Num salto mendeliano, agora assoma / Teu vulto esbelto que é o resumo, a soma / De protoplasmas que o calor mistura. // Na tua biologia recessiva, /Não teu pai – tua mãe é que está viva, / O gene dela é que prevaleceu // Tu que vens de uma antese clara e bela, / Já te cobri de beijos dados nela / E beijo em ti aquela que morreu.
            Em dezembro de 2005, o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais concedeu pela primeira vez o Prêmio Pedro Salles de História da Medicina. Sendo premiação inaugural, foram premiados in memoriam Agripa Vasconcelos, Otávio Nelson de Sena e Fernando Pieruccetti.  Por sua fraterna ligação a Pieruccetti, Ataulpho foi convidado a recebê-lo em nome de seu grande amigo – e assim também homenageado. Foi quando lembrou ter Aníbal Matos cognominado Pieruccetti de o nosso Aleijadinho do crayon.
            Ataulpho Ribeiro, lendo Nietszche no original, passou a ser respeitado estudioso da vida e da obra do grande filósofo e poeta alemão. Afinal se transformou em autoridade naquilo que lhe cabia como psiquiatra, que é a demência de que Nietszche foi vítima no fim da vida. No centenário de sua morte compareceu ao túmulo e leu em lágrimas um poema que lhe escreveu em alemão. Convidado pelo Centro de Memória da Medicina a ministrar conferência sobre o tema, causou forte emoção nos estudantes do Curso de História da Medicina, quando exibiu o filme em que aparece o originalíssimo pensador em seu dramático internamento hospitalar.
            Estamos preparando a publicação do livro A PSICOSE DE NIETSZCHE, que é o coroamento dos textos escritos por Ribeiro sobre Nietzsche. Seus colegas do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais o aconselham a publicá-lo também no exterior, pois parece que nenhum estudo semelhante foi feito até o momento. Seus ensaios e poemas são densos e  nos induzem a inquietantes reflexões.  Na verdade trata-se de um pensador singular, capaz de arquitetar sedutora ponte entre os iluministas mais radicais e o pensamento nietszchiano mais revolucionário.
            Em Roeckendorf, na Alemanha, no dia 09-10-1993, Ataulpho Ribeiro rezou à beira do túmulo de Friedrich Nietszche a seguinte oração-poema: Tu foste poeta e pensador. Em tua vida introspectiva e solitária, a dor foi prematura e permanente. Aos quatro anos de idade, ao falecer teu pai, a existência já desvelava, aos teus atônitos olhos de criança, o seu verdadeiro rosto, as suas dissonâncias, as crueldades que a desesperam.  Desde então, a tua vida inteira, por poderosa e aguda percepção crítica da realidade, e por tua sempre frágil condição de saúde, foi uma grande odisséia de sofrimentos, resignação e desencantos. Filósofo lírico, pensador da existência , artista da palavra, dotado de excepcional pendor musical, deixaste, para a posteridade, enriquecendo sobremaneira a herança cultural comum, um legado espiritual marcado por original e impetuosa avalanche de idéias, todas elas girando em torno de grandes temas e desconcertando a bi-milenar tradição da filosofia ocidental.  Possuías uma alma nobre e solitária, meditativa, muito acima das contingências cotidianas da vida. A música e a palavra, como bem observava Thomas Mann, foram as tuas únicas vivências.  Falando de ti mesmo, dizias: “Os meus pensamentos tornaram-se os meus acontecimentos; o restante de minha vida nada é senão a crônica diária de uma doença.” Em verdade, a tua existência inteira foi um segundo “nascimento da tragédia”. Tua grandeza, como escultor do idioma, como poeta e pensador, como consciência crítica dos valores, como filósofo do niilismo e da cultura, como educador da liberdade, tuas antevisões proféticas, tuas profundas análises psicológicas, são ininterruptos diálogos interpelativos com a realidade, todos eles colocados em altíssimo nível de contestação cósmica. Foste, em tuas próprias palavras, “poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso”. Hoje, seis dias antes de teu aniversário, e após meio século de paciente expectativa, de atenta leitura de tuas obras, realizando um antigo anseio, venho ao teu túmulo e à tua aldeia natal para reverenciar a tua memória, para tributar ao teu nome a minha mais comovida homenagem.  Ao realizar esse gesto, de contrição e fervor, gostaria que ele o fosse consoante as tuas próprias aspirações e sensibilidade, consoante a transcendência do momento, a epifania desse instante, quando nehuma palavra é capaz de expressar, em toda a sua plenitude, as grandes emoções do espírito: “Oh! minh´alma, ... canta, não fales mais!”    
            Tendo dado o nome de Robespierre a seu filho (também médico e também brilhante), este jacobino transbordante de mineiridade mostra que em Minas se esconde, em nicho esplêndido, simbiontes de poesia e dialética. Quando discernidos sem preconceito e com justiça, terão em Ataulpho da Costa Ribeiro um exemplo digno de estudo sério, de controvérsia sadia e de admiração verdadeira.

quarta-feira, 27 de março de 2013


RACISMO E NEONAZISMO NA UFMG
João Amílcar Salgado
O episódio ao mesmo tempo racista e neonazista protagonizado agora por estudantes do curso de direito da UFMG, seguido de ofensa racista de professor da mesma universidade a aluno adolescente, os quais foram precedidos, no ano passado, pela pichação da frase “A UFMG vai ficar preta”, a propósito das cotas para negros - mostram claramente  que os autores desses atos estão sendo jogados nos braços da extrema-direita.  O principal motor desse perverso desvio político é sem dúvida o martelar doutrinário exercido por forte setor da mídia. Os consumidores dessa mídia são não apenas os universitários, mas seus pais e membros de seu ambiente familiar e social.  A doutrinação racista e neonazista é feita por doutrinadores que, com rapidez, estão aprendendo a manejar a capacidade tsunâmica das redes coletivas da internete.  Silenciar a mídia seria erro maior, daí que a providência mais eficaz será usar meios inteligentes contrários ao desvio ameaçador. 
Acontece que o ensino superior brasileiro está acometido de mediocridade endêmica, associada a burrice epidêmica.  Há quatro décadas, as universidades públicas brasileiras, federais e estaduais, estão-se mostrando subservientes a agressivo assédio tanto governamental  como empresarial.  O resultado evidente desse assédio é o nivelamento  por baixo de tudo o que foi, a custo, conquistado por universidades, faculdades e institutos sérios. A ditadura da QUANTIDADE SOBRE A QUALIDADE, para efeito de exibição internacional, e a ditadura da UNIFORMIDADE SOBRE A CRIATIVIDADE, causaram, a curto prazo, a completa perda de identidade de reconhecidas instituições.
Isso chega ao cúmulo de os mercantilistas do ensino superior decretarem o fim do modelo humboldtiano de universidade, o que, traduzido, significa o abandono da AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA e do ideal da INTEGRAÇÃO ENSINO-PESQUISA.  Apregoam que, já nos dias atuais, essas conquistas não são conquistas coisa nenhuma e devem ser consideradas ultrapassadamente ridículas.  O objetivo é claro: as instituições até aqui tão respeitáveis devem ser degradadas à mera condição de  fornecedoras de recursos humanos SEMI-ACABADOS,  para que sejam ACABADOS nos estágios de treinamento da indústria, tanto privada como estatal.  E o pouco da pesquisa ainda em andamento deverá ser subsidiária dos milionários departamentos de pesquisa dessas mesmas indústrias, sendo por eles financiada, orientada e selecionada. O dinheiro farto de tais departamentos tem irresistível poder para amolecer dirigentes e pesquisadores. Muitos destes, cujo número cresce a cada dia, se mostram felizes com a nova situação e ficam indignados quando alguém insinua que se deixaram corromper.
Espero que os episódios citados despertem uma massa crítica de líderes lúcidos. Se ainda existem e se resistirem a não se vender, que se mexam e consigam tranquilizar-nos, apontando alguma evidencia de que ainda há vida inteligente em nossas queridas e verdadeiras universidades. 

domingo, 6 de janeiro de 2013


CAMILO ASSIS FONSECA
 O decano dos ecologistas mineiros

João Amílcar Salgado

            No dia 25/09/92 a Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais  e o Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais prestaram homenagem ao professor Camilo de Assis Fonseca Filho, a propósito da Semana da Árvore.  Constou de bela solenidade em que o homenageado plantou três buritis em frente à Faculdade, ao som do Hino Nacional executado em solo de flauta pelo estudante de medicina Walker M. Lahmann.  O plantio foi acolitado pelo professor Ênio Pedroso, diretor da Faculdade, e é resultado de sugestão antiga do professor Oswaldo Costa, outro pioneiro da preservação natural dos gerais.
            O professor Camilo de Assis Fonseca Filho, nascido em Formiga e agrônomo pela gloriosa Universidade Federal de Viçosa, veio a se consagrar como o decano dos ecologistas mineiros, por ser o brasileiro que mais árvores plantou em uma vida.  Combativo defensor da flora nativa, arborizador amazônico sobre minérios, ajardinador de nossas ruas e campi, atapetador dos grandes estádios brasileiros de futebol, original em metodologia de florestamento - foi requisitado pelo Centro de Memória, por seu enciclopédico domínio sobre o uso medicinal das plantas brasileiras.
            Sobre a arborização de nossas ruas, Camilo Fonseca se fez irresistível pedagogo com esta inesquecível lição: As cidades não arborizam todas as suas ruas, com a desculpa de que não é possível arborizar rua estreita – e eu respondo que o hibisco é perfeito para rua estreita e, assim,  qualquer cidade pode ter todas as suas ruas arborizadas e floridas. Sobre plantas medicinais, ele é autor desta verdade irrevogável: Os antigos transmitiram a idéia de que só são medicinais as plantas pequenas (ervas e arbustos). Ora, essa idéia era própria para o uso prático nas condições precárias de antigamente. Mas a verdade é que qualquer planta é medicinal, desde a menor erva até a árvore mais gigantesca. Cabe à ciência descobrir sua virtude e seu uso.
            Por causa da 2a Guerra Mundial, foi vedada a importação de madeira estrangeira e Camilo Fonseca Fo se celebrizou ao indicar madeiras brasileiras próprias à confecção de nossos lápis, uma de suas muitas maneiras de ser educador. Correspondeu e trocou sementes com o negus Salassiê da Etiópia, também ilustre botânico, permitindo que árvores africanas sejam admiradas no Horto, em Belo Horizonte, ao lado de plantas de cada paisagem do Brasil – todas pacientemente cultivadas pelo extraordinário sábio formiguense.  
            Em 1989, em comemoração ao Bicentenário da Inconfidência, foi convidado a indicar as plantas que hoje compõem o Horto Medicinal Frei Veloso, inaugurado junto à Biblioteca Baeta Vianna, em lembrança de nosso primeiro botânico, primo de Tiradentes.  Ao mesmo tempo, o Horto Frei Veloso deve contribuir à reabilitação histórica dos hortos medicinais intrínsecos às primeiras escolas médicas, fonte de toda a farmacoterapia atual.
            O plantio dos buritis fez parte também do curso sobre plantas de importância terapêutica, ministrado pelo mestre Camilo por meio de caminhadas ecológicas em diversos sítios, segundo a variedade da flora regional.  Os ensinamentos, gravados em vídeo, serão utilizados em múltiplos desdobramentos, quer do ponto de vista de preservação de espécies e usos, quer para o ensino e a pesquisa.
            O buriti é o traço que une a ecologia, a memória da medicina e Guimarães Rosa.  Foi este ex-aluno da Faculdade, que, em seu harmonioso leque de tematizações, profeticamente reservou para título da maior de suas obras nada mais nada menos que os contra-polos de fantástico e real eco-sistema - o sertão e suas veredas.  Por isso mesmo uma das magistrais lições peripatéticas do professor Camilo não poderia deixar de ocorrer nos arredores de Maquiné, onde as filmagens flagraram a reunião histórica de personagens afins e irmãos, simbólicos e vivos: Manuelzão, Juca Bananeira, Maria de Lourdes Rocha Correa e Camilo de Assis Fonseca Filho.
            Por ocasião de sua aposentadoria, em vez de glorificado por tantas realizações, este extraordinário brasileiro e autêntico mineiro foi vítima de injustiça inominável perpetrada por gente indigna que, estribada em soberba mesquinharia, agiu para impedi-lo de freqüentar sequer o horto e as estufas (Museu de História Natural) co-edificados por ele.  O nome desses infelizes deficientes morais hoje jaz no lixo da memória da instituição, enquanto o de mestre Camilo rebrilha, com ternura e com carinho, no coração de inumeráveis discípulos e admiradores.
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O autor é professor titular de Clínica Médica e  pesquisador em  História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012


JOSÉ MARIA PIRES
O mineiro contra-estamentário por excelência
João Amílcar Salgado















José Maria Pires é um mineiro que procura mas não consegue disfarçar seu orgulho de originário da gente do Serro do Frio. E nós, historiadores do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, não poderíamos deixar de insistir nesse vínculo, que nos é tão caro, pois outro arauto daquela mesma gente, Aurélio Pires, foi o idealizador e co-fundador da Faculdade de Medicina da hoje Universidade Federal de Minas Gerais. Diante disso, a aula que esse extraordinário sacerdote ministrou no Curso de História da Medicina desta Faculdade, no dia 14-12-12, foi um momento de justo regozijo pelo reencontro da instituição com o que há de mais significativo nos arcanos totêmicos de Minas.
            Ele foi chamado de Dom Pelé, sendo ambos (ele e Pelé) mineiros, um do norte, outro do sul. Mas seu maior título, ainda no símile futebolístico, é ter sido habilíssimo meio-esquerda em magistrais tabelinhas com o visionário centro-avante dom Hélder Câmara. Culminou tudo não só  como  herói-goleador contra o arbítrio de 64 a 84, mas como o nunca suficientemente enaltecido arcebispo emérito da Paraíba.
            Poderia ter ficado no nordeste brasileiro, nos braços do povo, mas sua alma mineira o fez retornar para junto de sua doce capelinha de Córregos, da qual cuida como se ainda fosse aquele coroinha da primeira metade do século 20, quando a região ainda era literalmente “mato-adentro”. Suas peripécias hoje são acessíveis em vídeo por meio da TV Assembléia de Minas ou por meio do livro biográfico UM PROFETA EM MOVIMENTO (O Lutador, 2011) de Mauro Passos.
            De minha parte sou estudioso da contribuição de negros mineiros na medicina, na religião, nas artes, no esporte e em todas as áreas. Meu avô, João de Abreu Salgado me colocou nessa trilha quando em 1946 se tornou o primeiro biógrafo do Padre Vítor com o livro MAGNUS SACERDOS, ora em reedição. O padre Vítor (Francisco de Paula Vítor) foi um sacerdote negro ordenado ainda na vigência da escravidão, fato que pode ser considerado seu primeiro milagre, entre os muitos que lhe são atribuídos.  Outros estudados por mim, além dos já citados, são: na medicina, Joaquim Cândido Soares de Meireles, Francisco de Paula Cândido e Camilo Maria Ferreira Armond; na religião, o bispo Silvério Gomes Pimenta e os padres milagrosos Antônio Ribeiro Pinto de Urucânia, José Pinto Carneiro de Cipotânea, e Libério Rodrigues Moreira do Pitangui; na política, o quilombola Ambrozio e Joaquim Barbosa; nas artes, Aleijadinho, os compositores Emerico Lobo de Mesquita, José Maria Xavier, Manuel Dias de Oliveira e Tito Lazarino dos Santos, bem como inúmeros jongueiros, congadeiros e sambistas, estes representados por Geraldo Pereira e Ataulfo Alves. Não devem ser omitidos os adotivos, como os médicos Eduardo de Menezes e João Cândido dos Santos e o músico Milton Nascimento, os adotados, como Zumbi, Luther King, King Cole e Mandela; ou ainda os nascidos fora, mas de origem mineira, como parece provável o genial Abdias do Nascimento.
            Darcy Ribeiro se impacientava quando alguém lhe perguntava se era parente de algum Ribeiro importante de Minas. Respondia que a gente mineira devia desapegar-se do culto ao estamento, devoção ridícula das famílias tradicionais. E encerrava a conversa, garantindo que seu Ribeiro era o mesmo daquele degredado que Cabral desembarcou na Bahia, premiado com um exílio hedonístico, o primeiro entre outros ocorridos lá atrás em 1500. Trata-se, entretanto, de tema de maior significado do que a pretensa menor-importância que Darcy lhe atribui. O verdadeiro estamento mineiro tem raízes mais sérias a partir de um historiador como Simeão Ribeiro Pires, primo de Darcy, ou a partir da militância evangélica de um José Maria Pires. Os Pires chegaram a Minas escaldados por disputas entre parentes bandeirantes e aqui, mesmo sofrendo recaídas competitivas - mais que beligerantes, se tornaram preferencialmente sábios. E nada mais próprio que um Pires que traz em seu costado o totem da etnia banto para ser um símbolo contra-estamentário de altíssimo brilho, em plena Minas Gerais.
            A aula recheada de comoventes parábolas que esse arcebispo nos ministrou fez-nos perceber que subsiste uma Minas autêntica a ser cultivada, com aquela simplicidade e aquela sinceridade, que de modo algum nega a crueldade da sociedade mineira inicial e a dramaticidade da sociedade global atual, mas que mantem patentes as sendas tributárias de um reto caminho a percorrer. Lembrou, principalmente, que o médico evangelista Lucas nos demonstrou que um mero anão pode ser transformado em gigante - dependendo da luz que persiga em sua vida e, por consequência, do homem integramente novo que passe a  hospedar dentro de si.
            O Centro de Memória da Medicina, desde sua criação, se abriu às diferentes religiões e aos reflexos de cada uma sobre a medicina. A religião e a medicina foram uma só empresa por mais de 70 mil anos e só recentemente, há 500 anos, se tornaram objetivamente independentes. Cumpre ao historiador da medicina e ao historiador da religião não cair na arrogância de ignorar tantos milhares de anos. E o diálogo sereno e saudável com um profeta de nosso tempo, José Maria Pires, nos faz cada vez mais conscientes dessa necessária origem comum.  

domingo, 23 de dezembro de 2012


OSCAR NIEMEYER E WILSON ABRANTES
João Amílcar Salgado
Em 1997, a convite da inesquecível arquiteta Maria Elisa Meira, compareci à Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde participei da mesa de abertura do congresso brasileiro sobre ensino da arquitetura, no qual falaria sobre pedagogia do ensino superior. A meu lado estava Lúcio Costa, aos 95 anos, com quem cochichei dados genealógicos. Disse-lhe que, por meu lado materno, eu era, como ele, Ribeiro Lima Costa. A conversa com que combinamos prosseguir a troca de dados não foi possível. Nela, eu lhe perguntaria sobre sua saída da diretoria da Escola Nacional de Belas Artes.
Vinte anos antes, em 1976, estive hospedado na Casa do Brasil em Londres e seu diretor era colega de turma de Oscar Niemeyer. Frequentemente eu o interpelava sobre a vida estudantil do Oscar. Quando percebeu que eu conhecia o lado desabusado do homem, ele me revelou várias de suas passagens estudantis. Quando lhe contei a versão humorística de como Oscar se inspirara no mercado de Diamantina para o palácio da Alvorada, ele comentou que, pelo passado do colega, isso devia mesmo ter acontecido.  E me fez repetir o causo para outros, entre estes o sociólogo Gilberto Freire, o embaixador Roberto Campos e professores de Oxford, que riram repetidamente. 
Mas a principal pergunta que lhe fiz foi: por que Oscar Niemeyer não ficou na escola como docente? Respondeu que não sabia, mas deu a entender que aquele aluno, aos olhos severos dos dirigentes, pouco prometia como eventual docente. De fato, Niemeyer começara o curso já casado e sustentando-se como tipógrafo – tudo isso sem deixar a tendência boêmia. Vejamos as datas. Oscar se casou em 1928; no ano seguinte entrou na Escola de Belas Artes; em 30 e 31 esta é dirigida conflituosamente por Lúcio Costa; Oscar ainda aluno de 3º ano vai estagiar no ateliê de Lúcio; em 32 nasce a filha de Oscar, que é diplomado em 34. Assim, mesmo se os dirigentes conservadores lhe fossem simpáticos, a relação com o inovador Lúcio impediria seu aproveitamento docente. Em compensação, posso inferir que a docência imediata lhe teria tolhido o talento, do qual nem mesmo ele, Oscar, sabia ser dotado.
Para o estudo que faço sobre desperdício docente e sua recíproca, que é a docência clandestina, julgo oportuno anotar as seguintes evidências apuradas no caso Niemeyer: 1) a escola onde estudou perdeu uma futura celebridade como docente, 2) ainda estudante, cumpriu um currículo clandestino como estagiário não remunerado de Lúcio Costa, circunstancia que lhe despertou o talento, 3) depois de formado, as universidades de Yale (1946) e Harvard (1953) perderam a oportunidade de tê-lo como sua estrela, por odiosa e mesquinha discriminação ideológica, 4) a equipe ministerial de Capanema soube evitar os erros precedentes, pois não só o aproveitou no projeto do edifício do MEC (no qual se pós-graduaram clandestinamente vários talentos), como sugeriu seu nome a JK, para o projeto da Pampulha.  Outra coincidência favorável a Niemeyer foi a saída do médico Washington Pires do ministério. Pires, embora mineiro como Capanema e embora com veleidades de arquiteto, era catedrático da Faculdade de Medicina da hoje UFMG e estava empenhado em outros objetivos.  Ou seja, sem Capanema no ministério não seria possível o revolucionário edifício.
Passemos ao caso do notável médico Wilson Luiz Abrantes, inspirador dos conceitos de desperdício docente e docência clandestina. Wilson foi excluído da Faculdade de Medicina da hoje UFMG por razões políticas e isso consternou a maioria de professores e alunos, pois ninguém o imaginava privado da docência. Basta dizer que desde segundanista já era o melhor professor de anatomia, inclusive na opinião dos professores de anatomia. A alternativa adotada por esse docente nato foi a docência clandestina. Wilson Abrantes passou a exercer no Pronto Socorro (hoje Hospital João 23) a docência que lhe foi negada na faculdade. As demais equipes de plantonistas se pautaram pela requisitada equipe liderada por ele, de tal modo que gerações de médicos lhe devem esta pedagogia inestimável.  E isso era tão patente que a faculdade, ao fazer a notória reforma curricular de 1975, formalizou o clandestino estágio no Pronto-Socorro, timbrado como disciplina obrigatória.  E foi assim que ele retribuiu, com generosa contribuição, a injustiça de que foi vítima.
            O mas significativo é que a retribuição se deu não só no fato em si, mas como origem do CONCEITO PEDAGÓGICO  DE CURRÍCULO PARALELO OU CLANDESTINO, ou seja, aquele currículo desenvolvido extramuralmente pelo aluno, na busca desesperada para conseguir fora o treinamento que lhe é negado dentro da escola. E é notável que a concepção se inspira naquele que buscou exercer  fora o ensino que lhe foi negado dentro da escola! Em 1986 tive a oportunidade de expor a ideia e o fenômeno de currículo paralelo ou clandestino em universidades dos EUA. Um prestigioso especialista em ensino médico me aparteou dizendo que este conceito era o instrumento de análise mais interessante ouvido por ele nos últimos tempos. E eu lhe respondi que era, em grande parte, resultado de reflexões sobre tremenda injustiça cometida contra um excepcional médico de meu país.
            E isso não ficou por aí, pois tal inspiração levou a um conceito mais amplo, o de UNIVERSIDADE PARALELA.  De fato, quando meu colega Cid Veloso foi candidato a reitor, incluí em sua plataforma a proposta de criar a Universidade Paralela da UFMG, que nada mais é que trazer ao público interno e externo de nossa universidade aqueles, como Wilson Abrantes, que jamais deveriam estar fora dela.  Nisso incluiríamos uma gama enorme de gente, inclusive da cultura popular.  Infelizmente não foi possível concretizar essa ideia, cujo único remanescente é a premiação que a universidade oferece a seus egressos de admirável brilho fora de seus quadros. Além disso, temos no Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais uma miniatura de como seria a coisa, pois ali historiadores, estudiosos e interessados, não pertencentes ao corpo docente, comungam com este, sem discriminação, o grato prazer de dialogar com a juventude, alternando o papel de docente, de discente e de apenas interlocutor.
            No momento em que Oscar Niemeyer é celebrado sob múltiplos ângulos, parece-me oportuno vê-lo ao lado de Wilson Abrantes como inspiração e subsídio ao conceito de docência e aprendizagem clandestinas.

O presente texto resume dados do livro em preparo intitulado AUDÁCIAS EM SAÚDE E EM EDUCAÇÃO, a ser publicado como sequencia a O RISO DOURADO DA VILA (2003). O tema é tratado também em outro livro, a sair junto ao primeiro citado, intitulado SÍNTESE CRÍTICA DA PEDAGOGIA MÉDICA