OSCAR NIEMEYER
E WILSON ABRANTES
João Amílcar
Salgado
Em 1997, a convite da inesquecível arquiteta Maria Elisa Meira,
compareci à Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde participei da mesa de
abertura do congresso brasileiro sobre ensino da arquitetura, no qual falaria
sobre pedagogia do ensino superior. A meu lado estava Lúcio Costa, aos 95 anos,
com quem cochichei dados genealógicos. Disse-lhe que, por meu lado materno, eu
era, como ele, Ribeiro Lima Costa. A conversa com que combinamos prosseguir a
troca de dados não foi possível. Nela, eu lhe perguntaria sobre sua saída da
diretoria da Escola Nacional de Belas Artes.
Vinte anos antes, em 1976, estive hospedado na Casa do Brasil em
Londres e seu diretor era colega de turma de Oscar Niemeyer. Frequentemente eu
o interpelava sobre a vida estudantil do Oscar. Quando percebeu que eu conhecia
o lado desabusado do homem, ele me revelou várias de suas passagens estudantis.
Quando lhe contei a versão humorística de como Oscar se inspirara no mercado de
Diamantina para o palácio da Alvorada, ele comentou que, pelo passado do
colega, isso devia mesmo ter acontecido.
E me fez repetir o causo para outros, entre estes o sociólogo Gilberto
Freire, o embaixador Roberto Campos e professores de Oxford, que riram
repetidamente.
Mas a principal pergunta que lhe fiz foi: por que Oscar Niemeyer não
ficou na escola como docente? Respondeu que não sabia, mas deu a entender que
aquele aluno, aos olhos severos dos dirigentes, pouco prometia como eventual
docente. De fato, Niemeyer começara o curso já casado e sustentando-se como
tipógrafo – tudo isso sem deixar a tendência boêmia. Vejamos as datas. Oscar se
casou em 1928; no ano seguinte entrou na Escola de Belas Artes; em 30 e 31 esta
é dirigida conflituosamente por Lúcio Costa; Oscar ainda aluno de 3º ano vai
estagiar no ateliê de Lúcio; em 32 nasce a filha de Oscar, que é diplomado em
34. Assim, mesmo se os dirigentes conservadores lhe fossem simpáticos, a
relação com o inovador Lúcio impediria seu aproveitamento docente. Em
compensação, posso inferir que a docência imediata lhe teria tolhido o talento,
do qual nem mesmo ele, Oscar, sabia ser dotado.
Para o estudo que faço sobre desperdício docente e sua
recíproca, que é a docência clandestina, julgo oportuno anotar as
seguintes evidências apuradas no caso Niemeyer: 1) a escola onde estudou perdeu
uma futura celebridade como docente, 2) ainda estudante, cumpriu um currículo
clandestino como estagiário não remunerado de Lúcio Costa, circunstancia que
lhe despertou o talento, 3) depois de formado, as universidades de Yale (1946)
e Harvard (1953) perderam a oportunidade de tê-lo como sua estrela, por odiosa
e mesquinha discriminação ideológica, 4) a equipe ministerial de Capanema soube
evitar os erros precedentes, pois não só o aproveitou no projeto do edifício do
MEC (no qual se pós-graduaram clandestinamente vários talentos), como sugeriu
seu nome a JK, para o projeto da Pampulha.
Outra coincidência favorável a Niemeyer foi a saída do médico Washington
Pires do ministério. Pires, embora mineiro como Capanema e embora com
veleidades de arquiteto, era catedrático da Faculdade de Medicina da hoje UFMG
e estava empenhado em outros objetivos.
Ou seja, sem Capanema no ministério não seria possível o revolucionário
edifício.
Passemos ao caso do notável médico Wilson Luiz Abrantes, inspirador dos
conceitos de desperdício docente e docência clandestina. Wilson foi excluído da
Faculdade de Medicina da hoje UFMG por razões políticas e isso consternou a
maioria de professores e alunos, pois ninguém o imaginava privado da docência.
Basta dizer que desde segundanista já era o melhor professor de anatomia,
inclusive na opinião dos professores de anatomia. A alternativa adotada por
esse docente nato foi a docência clandestina. Wilson Abrantes passou a exercer
no Pronto Socorro (hoje Hospital João 23) a docência que lhe foi negada na
faculdade. As demais equipes de plantonistas se pautaram pela requisitada
equipe liderada por ele, de tal modo que gerações de médicos lhe devem esta pedagogia
inestimável. E isso era tão patente que
a faculdade, ao fazer a notória reforma curricular de 1975, formalizou o
clandestino estágio no Pronto-Socorro, timbrado como disciplina obrigatória. E foi assim que ele retribuiu, com generosa
contribuição, a injustiça de que foi vítima.
O mas significativo é que a
retribuição se deu não só no fato em si, mas como origem do CONCEITO
PEDAGÓGICO DE CURRÍCULO PARALELO OU
CLANDESTINO, ou seja, aquele currículo desenvolvido extramuralmente pelo
aluno, na busca desesperada para conseguir fora
o treinamento que lhe é negado dentro
da escola. E é notável que a concepção se inspira naquele que buscou
exercer fora o ensino que lhe foi negado dentro da escola! Em 1986 tive a oportunidade de expor a ideia e o
fenômeno de currículo paralelo ou clandestino em universidades dos EUA. Um prestigioso
especialista em ensino médico me aparteou dizendo que este conceito era o
instrumento de análise mais interessante ouvido por ele nos últimos tempos. E
eu lhe respondi que era, em grande parte, resultado de reflexões sobre tremenda
injustiça cometida contra um excepcional médico de meu país.
E
isso não ficou por aí, pois tal inspiração levou a um conceito mais amplo, o de
UNIVERSIDADE PARALELA. De fato,
quando meu colega Cid Veloso foi candidato a reitor, incluí em sua plataforma a
proposta de criar a Universidade Paralela da UFMG, que nada mais é que trazer
ao público interno e externo de nossa universidade aqueles, como Wilson
Abrantes, que jamais deveriam estar fora dela.
Nisso incluiríamos uma gama enorme de gente, inclusive da cultura
popular. Infelizmente não foi possível
concretizar essa ideia, cujo único remanescente é a premiação que a
universidade oferece a seus egressos de admirável brilho fora de seus quadros.
Além disso, temos no Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais uma
miniatura de como seria a coisa, pois ali historiadores, estudiosos e
interessados, não pertencentes ao corpo docente, comungam com este, sem
discriminação, o grato prazer de dialogar com a juventude, alternando o papel
de docente, de discente e de apenas interlocutor.
No
momento em que Oscar Niemeyer é celebrado sob múltiplos ângulos, parece-me
oportuno vê-lo ao lado de Wilson Abrantes como inspiração e subsídio ao
conceito de docência e aprendizagem clandestinas.
O presente texto resume dados do livro
em preparo intitulado AUDÁCIAS EM SAÚDE E EM EDUCAÇÃO, a ser publicado como
sequencia a O RISO DOURADO DA VILA (2003). O tema é tratado
também em outro livro, a sair junto ao primeiro citado, intitulado SÍNTESE
CRÍTICA DA PEDAGOGIA MÉDICA