CULTURA RESGATA CARTA DE 1974
CARTA DO
EDUCADOR PAULO FREIRE AO POETA TIAGO DE MELO
A carta
foi escrita por Paulo Freire (1921-1997), enviada em 1974, de Genebra, na Suíça,
e publicada no livro “Poesia Comprometida com a Minha Vida e a Tua Vida”
de Tiago de Melo
De Paulo Freire
Para: Thiago de Mello
Eita, Thiago velho de guerra,
amigo-sempre, companheiro imenso, poeta “de mesmo”, sorriso constante para o
mundo e para os seres humanos, capaz de conversar com uma flor, de entender os
passarinhos e doar a vida bonita aos esfarrapados do mundo, aguente o barco,
irmão.
Precisamos de você, da sua fé e
coragem, do seu desprendimento, da sua poesia – um grito de amor e de
esperança, esperança na manhã de um amanhã de liberdade que homens e mulheres,
oprimidos hoje, teremos de criar. Poeta que propõe aos oprimidos um discurso
diferente – sua palavração. Um discurso permanente, que abalará vales e
montanhas, rios e mares e deixará atônitos e medrosos os atuais donos do mundo.
Precisamos do menino que você guarda em você e que ajuda a ser mais homem o
homem que você é.
Aguente o barco, querido amigo!
Muitas madrugadas, cheias de orvalho macio, esperam por você. Andarilho da
liberdade, você tem ainda muitos trilhos a percorrer; seus braços longos,
muitas crianças a abraçar; suas mãos, muitos poemas a escrever.
Geneve, 13 de janeiro de 1974
Paulo Freire
EIS
O CÉLEBRE POEMA DE TIAGO DE MELO “OS ESTATUTOS DO HOMEM”
OS ESTATUTOS DO HOMEM
(Ato Institucional Permanente)
A Carlos Heitor Cony
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.
Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
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