João Amílcar Salgado

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

CANONIZAÇÃO DOS LUTEROS
João Amílcar Salgado
Em 1992 o papa João Paulo 2º  pediu perdão, em nome da Igreja, pela condenação ao cientista Galileu. Na comissão que assessorou o papa atuaram dois homens de ciência ligados a Minas Gerais: Carlos Chagas Filho e Francisco Magalhães Gomes Filho. Este falou em nosso Centro de Memória da Medicina sobre o fato. Uma das perguntas que fiz a Magalhães foi se, em seguida, Galileu não seria canonizado. Ele considerou pouquíssimo provável.  Em reunião subsequente no mesmo Centro, foi feita a sugestão de um movimento pela canonização de Martinho Lutero, de Martin Luther King Jr e de Gandhi. A ideia não prosperou porque não houve consenso sobre o uso do termo canonização e foram apontados  nomes adicionais, todos bem aceitos, mas o número maior enfraqueceria o impacto da proposta. Quando foi eleito o Papa Francisco, em 2013, alguns lembraram que ele seria capaz de aceitar a proposta. Em 2017, os quinhentos anos da reforma protestante, trouxe às manchetes a figura do monge Lutero, enquanto o protagonismo de Trump, empossado presidente ianque também em 2017, nos fez relembrar o pastor Martin Luther King Jr. A propósito disso, assinalamos aqui frases atualíssimas do Lutero negro.
FRASES DE MARTIN LUTHER KING JR
- Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, rasteje.  Mas continue em frente, de qualquer jeito!
- Se um homem não descobriu nada pelo qual morreria, não está pronto para viver.
- Temos de aprender a viver todos como irmãos ou morreremos todos como loucos.
- Eu decidi ficar com o amor. O ódio é um fardo muito grande para suportar.
- Nunca se esqueça que tudo o que Hitler fez na Alemanha era legal.
- O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.
- Para criar inimigos não é necessário declarar guerra, basta dizer o que pensa.
- O amor é a única força capaz de transformar um inimigo em amigo.
- Aprendemos a voar como pássaros e a nadar como peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos.
- Mesmo se eu soubesse que amanhã o mundo se partiria em pedaços, eu ainda plantaria a minha macieira.
- Uma das coisas importantes da não-violência é que ela não busca destruir a pessoa, mas transformá-la.
- A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todos os lugares.
- Não há nada mais trágico neste mundo do que saber o que é certo e não fazê-lo.  Que tal mudarmos o mundo começando por nós mesmos?
- Eu tenho um sonho. O sonho de ver meus filhos julgados por sua personalidade, não pela cor de sua pele.



segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

O LIVRO O ÍNDIO BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO FRANCESA DE AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
80 ANOS DE SUA PUBLICAÇÃO

João Amílcar Salgado

INTRODUÇÃO

Em 1937 Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990) publicou O ÍNDIO BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO FRANCESA. Este livro talvez seja o golpe mais vigoroso jamais infligido ao  colonialismo cultural, no qual se comprometeu e ainda se compraz a maioria dos intelectuais brasileiros.  E é obra tanto mais notável quanto se sabe que o autor aparentemente nascera para se somar à galeria pedante de nossos aristocratas letrados, portador de todos os requisitos de um caudatário a mais do pensamento eurocêntrico. Felizmente, o contrário se deu. E afinal com nenhuma surpresa diante da nobilitante coerência exibida por gerações de sua  família. Ainda no século 18, o médico Francisco de Melo Franco afrontou a Universidade de Coimbra, apelidando-a de REINO DA ESTUPIDEZ, com o requinte de ser um libelo em versos clássicos.  Mais tarde, o primeiro Afonso Arinos, com o livro PELO SERTÃO, de 1898, foi eminente pioneiro no temário de nossa identidade nacional, prenunciando OS SERTÕES de Euclides da Cunha (1902) e o GRANDE SERTÃO: VEREDAS de Guimarães Rosa (1956).  E o próprio Afonso Arinos de Melo Franco, sobrinho do primeiro, já cuidara, antes de 1937, de temas semelhantes: INTRODUÇÃO À REALIDADE BRASILEIRA (1933), PREPARAÇÃO AO NACIONALISMO (1934) e CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA (1936). Mais tarde, tal coerência se estenderia à sua POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE, que começou a implantar como Ministro das Relações Exteriores, nos fugazes meses do governo Jânio Quadros e do regime parlamentarista. Demais, foi o primeiro investido nesse cargo a visitar o continente africano e ali foi saudado como o autor da primeira lei anti-racista de nosso país.

O LIVRO

            Em  O ÍNDIO BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO FRANCESA, Afonso Arinos procura documentar que o iluminismo francês se inspirou na cordialidade, na afabilidade e na docilidade do índio encontrado pelos europeus no Brasil, donde surgiu a concepção teórica da bondade natural.  O autor, inclusive, sentiu a necessidade de acrescentar um subtítulo ao livro: AS ORIGENS BRASILEIRAS DA TEORIA DA BONDADE NATURAL.  Esta teoria é uma das formulações iluministas que se contrapunham, de modo escandaloso, ao pensamento estabelecido até então.  Contrariava gritantemente a tendência de qualquer cultura para se considerar superior às demais. Os termos selvagem, selvageria, bárbaro e barbárie, bem como incivis, incivilizados, não-educados, brutos, estúpidos, ferozes, animalescos e bestiais, são adjetivos e substantivos preferidos para denotar de modo pejorativo os estrangeiros e seus costumes, principalmente quando se quer  demarcar a superioridade de quem os denigre. Para maior contraste, aqueles que empregam tais termos se autodenominam, em geral, civilizados ou educados. De fato, a bondade inesperada de nossos índios está registrada no próprio texto inaugural de Pero Vaz de Caminha: esta gente é boa e de bela simplicidade. ... Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons.  Segundo Arinos, há uma relação direta entre a idéia da bondade natural vinda do Brasil e a DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO proclamada pela Revolução Francesa e aprovada em 17 artigos pela Assembléia Nacional da França, em 1789, que tem por artigo 1o : Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais não podem ser fundadas senão sobre a utilidade comum.

CONTEXTO DA OBRA

            A notícia do livro deve ter impressionado os franceses, pois Afonso Arinos o publicou em português, em 1937, e, em 1939, já ministrava curso na Sorbonne sobre CULTURA BRASILEIRA. Justo nessa época, o mesmo Arinos era membro da célebre elite convocada pelo médico Pedro Ernesto para criar a UNIVERSIDADE DO DISTRITO FEDERAL, da qual fazia parte, entre outros, três outros mineiros influentes: Abgar Renault e os também médicos Silva Melo e Baeta Viana, este guindado a reitor. O grupo de fato era de notáveis, como Anísio Teixeira, Gilberto Freire, Mário de Andrade e Cecília Meireles. Tanta gente pensante e altiva, reunida sob o mesmo teto, deve ter atemorizado Getúlio Vargas, que, logo após o golpe de estado, fechou a Universidade em 1938, quando ela engatinhava e nem tinha três anos de vida. 
Antes, Afonso Arinos, como recém-formado em direito, viera ser promotor em Belo Horizonte e aqui entrou para a turma de Pedro Nava, Carlos Drummond, Emílio Moura, Abgar Renault, Gustavo Capanema e Milton Campos interessados em literatura e voltados para o modernismo de Mário de Andrade.  Outros intelectuais, ligados a esse grupo, porém mais  voltados para a política e engajados na trama da Revolução de 1930, eram Virgílio de Melo Franco (irmão de Afonso), os Pinheiro Chagas (dois dos quais médicos) e Francisco Campos. Podemos dizer que, assim como, entre os modernistas paulistas, surgiram o grupo nacionalista Pau Brasil e o subgrupo direitista do integralismo, no grupo de Belo Horizonte, surgiram o grupo de artistas (Drummond, Abgar, Emílio, Nava e outros), o grupo de políticos (Virgílio, Arinos, Capanema,  Campos e os Pinheiro Chagas).  Aqui houve semelhante subdivisão entre um nacionalista liberal (Afonso Arinos) e um direitista (Francisco Campos).  Por outro lado, na turma da referida Universidade, Arinos deve ser colocado ao lado de Gilberto Freire, sendo o mineiro a vertente política e o pernambucano a vertente sociológica da busca da identidade nacional.
É importante considerar a marginalização política do irmão Virgílio de Melo Franco, empreendida por Vargas, e seu efeito sobre a carreira de Afonso Arinos. Aqui é inevitável especular que se Virgílio tivesse ocupado o lugar de Valadares na direção de Minas, não teria havido o golpe de 1937 e a Universidade do Distrito Federal existiria até hoje, sendo outros o papel político de Afonso e sua contribuição ao desenvolvimento acelerado do Brasil, até mesmo na condição de nação-líder, como tentou fazer tardia e frustradamente depois.

ATUALIDADE DA TESE

          Fatos históricos conhecidos após 1937 não só reforçam a tese de Arinos, mas sugerem ter havido uma espécie de “má vontade européia” para esmiuçar o tema. O desinteresse estaria ligado também a protagonistas judeus da Península Ibérica, refugiados em locais hoje situados na França e nos Países Baixos.  Essa postura discriminatória pode ter sido adotada não só por historiadores em geral, mas, paradoxalmente, por historiadores judeus, neste último caso por causa da conhecida tendência entre cristãos-novos ibéricos e seus familiares em colocar sua sobrevivência acima da preservação da identidade judaica.   Com tal perspectiva, passamos a enumerar alguns subsídios não explícitos no texto de Arinos e que são notável confirmação de sua tese. Para corroborá-los, convém lembrar que especulações heurísticas indicam que o iluminismo seria a sequência imediata do renascentismo, mas a interceptação da contra-revolução barroca retardou por pelo menos um século esse decurso mais que lógico e natural.  Nessa perspectiva, cresce a importância de Montaigne e Descartes como iluministas antecipados.

O MEIO-LUSO MIGUEL DE MONTAIGNE

É inestimável o tributo que o iluminismo deve a Miguel Eyquem de Montaigne, nascido na região de Bordeus, França.  Afirmamos mesmo que o pessimismo de Montaigne, em relação ao progresso social é indissociável da idéia da bondade natural. Se é o caso, então qual seria a relação entre Montaigne e a notícia sobre os índios brasileiros?  Ora, a mãe de Montaigne era portuguesa, Antonieta Lopes, e seu secretário havia estado com Villegaignon no Rio de Janeiro. Bastam esses dois fatos para que seja feito estudo minucioso da correlação entre a ascendência lusitana do ensaísta, de um lado, e, de outro, a França Antártica, Jean de Léry (divulgador da bondade natural) e o conteúdo dos ENSAIOS.

FRANCISCO SANCHEZ E RENÉ DESCARTES

             O racionalismo peculiar ao iluminismo está diretamente relacionado a Descartes. Entretanto, é pouco conhecida a curiosa ligação entre o francês Descartes e o médico português Francisco Sanchez. Para os que sabem do pensamento de Sanchez há uma proximidade entre o CÓGITO de Descartes e o CÓGITO de Sanchez.  Como este precedeu aquele, há a suspeita de plágio ou no mínimo de espantosa coincidência.

O MISTERIOSO DOCTEUR SILVA

Sabe-se que o iluminista Voltaire, assim como Montaigne,  era avesso aos médicos. Havia, entretanto, um médico, Jean Baptiste Silva (1682-1744), no qual confiava e este era de origem portuguesa. Descendia de portugueses judiados em Portugal que se refugiaram em colônia próxima a Bordeus. Era perseguido pelos demais médicos, que o acusavam de judeu, e isso o fazia mais ainda assediado pelos clientes. O rei Luís 15, ao ser coagido a agir contra Silva, lembrou que, se o adversário dos médicos o tinha como competente, ele, o rei, o queria para si. E o fez médico da corte.

O PEDAGOGO JEAN JACQUES ROUSSEAU

Rousseau, suiço de origem judáica, foi o mais radical dos iluministas e aquele que fez a ligação mais direta entre a bondade natural e as propostas revolucionárias. E a mais revolucionária destas idéias é a proposta pedagógica contida em seu livro EMÍLIO. Nela ele defende que a criança seja criada como selvagem até os doze anos e só depois submetida à escola, estando esta coerente com a primeira etapa. Com isso todas as potencialidades psíquicas seriam preservadas contra qualquer inibição, de tal maneira que todos os homens assim educados seriam altamente inventivos, livres e insubmissos. Estariam, então, em condições de serem protagonistas de um progresso sem igual em uma  sociedade nova.

FRANÇOIS MAGENDIE – O  “EMÍLIO”  REAL

O pai de François Magendie era médico e também habitava próximo a Bordéus. Quando leu o EMÍLIO, decidiu que seu filho seria educado como um Emílio. De fato o próprio Magendie se imbuiu de tal maneira de seu modelo teórico que exerceu formidável papel na revolução científica causada pelo iluminismo. Deu início a uma linhagem de cientistas que mudariam a face não só da ciência mas da sociedade, a começar por seu igualmente revolucionário discípulo Claude Bernard.

CLAUDE BERNARD  - A CIÊNCIA MODERNA LEVADA À SOCIEDADE

              Claude Bernard está para Magendie assim como Napoleão está para Robespierre, ou seja,  se Magendie foi o Robespierre da ciência, Bernard foi seu Napoleão. Bernard não inventou a ciência nem sequer criou a ciência fisiológica ou a farmacologia. Seu papel foi estatuir em ideologia o método científico já utilizado desde Herófilo, Galileu, Vesálio, Harvey e Morgagni. Quando Emile Zola adota e propõe essa ideologia também para as artes (romance, música e pintura), toda uma revolução inventiva, semelhante à idéia de Rousseau, se põe a caminho e chega até o século 21.  Interessa acrescentar que, na obra científica de Bernard, há um dado a mais que diz respeito ao Brasil, pois algumas de suas pesquisas cruciais foram feitas com um produto indígena da Amazônia: o curare.

HELENA ANTIPOFF  E O RETORNO DE ROUSSEAU

            A vinda da russa Helena Antipoff para Minas Gerais, em 1929, estado natal de Afonso Arinos, representa um retorno apropriado do Emílio de Rousseau ao local de origem da bondade natural. Estando ela no Instituto Jean Jacques Rousseau, em Genebra, foi convidada para vir ao Brasil, onde foi a principal figura da revolução educacional operada em Minas Gerais. Ora, sendo Minas Gerais a terra de Afonso Arinos de Melo Franco, nada mais apropriado que esta notável educadora nos viesse retribuir com o fruto daquilo que seu ancestral pedagógico daqui extraiu: a idéia da bondade natural de nosso indígena.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRITO, A. M. R..Francisco Sanches, médico, professor e pedagogo. Braga : Bracara; 1952.
CAMINHA, P.V.. A carta de Pero Vaz de Caminha. São Paulo: Moderna; 1999.
DESCARTES, R.. Discurso sobre o método. Tradução. São Paulo: Atena, 1954.
FRANCO, A.A.M.. O índio brasileiro e a revolução francesa. Rio: José Olympio; 1937.
LERY, J.. História de uma viagem à terra do Brasil. Tradução. São Paulo: Nacional, 1926.
MONTAIGNE, M. E. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural; 1980.
OLMSTED, J.M. D.. Claude Bernard and the experimental method in medicine. Toronto: Schuman; 1952.
OLMSTED, J.M.D.. Francois Magendie: pioneer in experimental physiology and scientific medicine in
                nineteenth century France. Montana: Kessinger; 2007.
PECKER, A.. La médecine à Paris du XIIIe au XXe siècle. Paris: Hervas, 1984.
ROUSSEAU, J.J.. Emílio ou da educação. Tradução. São Paulo: Martins Fontes; 2005.



JOÃO AMÍLCAR SALGADO é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

MEDICINA DA NOITE: DA CRONOBIOLOGIA À PRÁTICA CLÍNICA
Por José Manoel Jansen,Agnaldo José Lopes,Ursula Jansen,Domenico Capone,Teresinha Yoshiko Maeda,Arnaldo Noronha,Gerson Magalhães
EDITORA FIOCRUZ
ESTE LIVRO ENCONTRA-SE GRATIS NO GOOGLE - books.scielo.org/id/3qp89/pdf/jansen-9788575413364.pdf

O CAPÍTULO DE MEDICINA DA NOITE DO PONTO DE VISTA GASTROENTEROLOGICO É DE AUTORIA DE CARLOS AMÍLCAR SALGADO, JOÃO AMÍLCAR SALGADO E LUIZ DE PAULA CASTRO

ANTÔNIO LEITE
Raríssimo exemplo de idealismo, coerência e implacável engajamento
João Amílcar Salgado

            Meu ex-aluno Antônio Leite acaba de falecer vítima da violência hoje crescente, resultado do descalabro geral no país. O caos da saúde faz parte nuclear disso e contra ele o Antônio Leite estava engajado com todas as forças de seu invejável idealismo, de que sou testemunha desde quando ele se matriculou na Faculdade. Ele teve a sorte de alcançar o auge da inovação curricular na medicina, que durou de 1975 a 1985. Sua personalidade e seu ideal social estavam pré-condicionados ao pleno aproveitamento em tão auspiciosa oportunidade.  E foi com alegria que flagramos a convergência entre sua aptidão e a proposta inovadora. 
            A partir de 1985, começaram os retrocessos.  Houve as mortes de Tancredo Neves, de Juan Cesar Garcia e de Domingos Gandra, houve o torpedeamento do reitorado de Cid Veloso, houve a suspensão da eleição direta paritária e, então, os carreiristas e/ou oportunistas puderam sair das sombras.  Percebemos que o Antônio Leite se entrincheirou na proposta do Internato Rural. Ele sabia dos desvios gerais e específicos, paulatinamente nele introduzidos, mas, até ser assassinado, achava que a parte restante ainda valia a pena.
            O controle da universidade passou a pessoas com viseiras flagrantemente retrógradas, cristalizadas na rotina colegialesca das áreas de educação e letras. Eram personagens sobretudo alheias à mudança na medicina. O caráter revolucionário de nossa inovação lhes parecia mistério insondável. Sucessivas reversões foram, então, arrogantemente impostas. Por exemplo, o endurecimento em itens ridículos, a abolição da disciplina de prática hospitalar, a supressão do ensino anti-consumo, o abandono das disciplinas optativas, bem como a renúncia a centros de memória e internatos rurais nas outras unidades.  A maior vítima seria o próprio Internato Rural. O Antônio Leite indagou junto a mim e a outros companheiros por eventuais opções diante de tal ameaça. Foi informado de que um pediatra de nosso grupo inicial, transbordante de ingenuidade, estava quase convencendo a reitora de que o Internato Rural era excelente marketing para a universidade. Restou a única alternativa, que seria eleger para reitor alguém do nosso lado. E isso não foi viável.
            Se o Internato Rural sobreviveu por décadas, o fato deve ser creditado a Antônio Leite e demais equipe remanescente. As notórias distorções, em comparação com a proposta inicial, são como cicatrizes da luta sem trégua, desde 1977. Ajudou nisso o Projeto Manuelzão que, com seu apelo ecológico, deu forças principalmente a este professor na defesa do direito à saúde.
 O Projeto Manuelzão foi inspirado pelo curso de plantas medicinais ministrado no Centro de Memória pelo agrônomo Camilo de Assis Fonseca, então o decano dos ecologistas mineiros. Constou de aulas, ao vivo, do notável professor, em vários ecossistemas. Luiz Eduardo Miranda Gonzaga, que era o supervisor do Internato Rural em Cordisburgo, trouxe o próprio Manuelzão, seu cliente, de Andrequicé para esta cidade, com o fim de nos instruir sobre as plantas medicinais do “Grande Sertão”. O professor Apolo Heringer Lisboa, membro do colegiado do Centro e aluno do curso, ao ouvir a exposição dos mestres Camilo e Manuelzão, teve a feliz ideia de criar o projeto.
Escrevi o capítulo HISTÓRIAS SUBMERSAS NO RIO QUE NÃO QUER MORRER, como abertura do livro NAVEGANDO O RIO DAS VELHAS DAS MINAS AOS GERAIS (2007), coroamento da viagem de caiaque evocativa de Burton e, ao mesmo tempo, requintado desfecho do projeto Manuelzão. Quando atualizar esse texto, deverei incluir a morte do Antonio Leite, defensor de todos os rios, ocorrida nos 40 anos do Internato Rural, como que submerso no rio de violência que nos quer levar a todos.

O autor é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais, criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais e um dos criadores do internato rural.

OBSERVAÇÃO: Quando faleceu o notável prof. Valênio Perez França, o diretor Francisco Pena proibiu que o velório fosse feito na Faculdade. Indignados, seus colegas de turma e amigos apelaram ao Centro de Memória, que desafiou o diretor e honradamente acolheu o corpo de seu membro. Já o velório de Antônio Leite foi feito na Faculdade, porque a diretoria desta não teve como impedi-lo e assim desobedeceu a proibição estatuída por aquele infeliz dirigente.
           

            
ZULMIRA VILELA TEIXEIRA
SACERDOTISA NA ARTE, NO HUMOR E NA ESPIRITUALIDADE

João Amílcar Salgado
            Minha primeira lembrança da Zulmira foi quando minha prima apareceu vestida de caipira no palco do teatrinho do Socônego. Era uma linda caipirinha que além de fazer a plateia gargalhar, no final, deixou todos enlevados, quando, com sua doce voz, cantou ROSA DE MAIO e LA LONGE NO SUL.
            Com a inauguração do ginásio, ela veio morar em nossa casa. Ela encheu de alegria nosso dia-a-dia, apesar de ter febre-tifo, que logo superou com a medicação de meu pai. Perguntei que mais se lembrava de nossa casa e ela disse que de nossa comida: tudo era gostoso e farto, cada vez uma coisa diferente e principalmente havia muita fruta e doces deliciosos de sobremesa. Enquanto na sua casa a tia Licínia obrigava as crianças a arrumar a casa, na nossa havia duas empregadas para arrumar tudo, enquanto a dona ficava lendo romances.
            A Zulmira começou a incendiar os corações da rapaziada. O mais apaixonado por ela foi o Nassif.  Ele era balconista na loja do cunhado Zé Sebastião e em vez de atender os fregueses ficava na porta esperando que a Zulmira chegasse ao alpendre. Ele me cercou e perguntou: você pode dar um recado pra sua prima? Eu disse que daria. E ele: diga que eu mandei dizer que ela é um anjo. Dei o recado e ela respondeu: diga a ele um muito obrigado, mas minha paixão é o Sinhô (o galã da Vila, filho do Afonso Felicori). O Nassif ficou deprimido e ainda foi demitido por desatenção ao serviço. Todavia se transformou num bancário de primeira linha.
            A Zulmira, filha do casal José Teixeira da Silva e Licínia Alves Vilela, se casou com o Rui, filho do casal formado pelo agente postal Soliveira (Antônio Peixoto) e de Alaíde Oliveira, exímia na confecção de pasteis inefáveis. Ela e o Rui tiveram os filhos Terezinha, Cleuza, Marize, Nelson, Evaldo e José Antônio, todos com notável inclinação pela música. Atribuo esse talento ao DNA da família Peixoto, toda musical, cujo maior astro é o inigualável Cauby. Inesquecível para mim ficou a voz celestial da Marize, que quando cantava parecia seguir um repertório evocado por mim. Já o talento do Rui era de radialista. Se tivesse seguido para um grande centro, teria sido nome nacional como animador de auditório. Isso o fez boêmio, obrigando a Zulmira a se fazer guerreira, na luta pelo bom encaminhamento dos filhos. Numa segunda união, a Zulmira teve a sorte de encontrar o Francisco Batista, raro exemplar de bondade e de romantismo.
            Quando desenvolveu seus dotes mediúnicos, a Zulmira surpreendeu-se a si mesma. Viu-se com extraordinária capacidade de conciliar diversas correntes espiritualístas, sem se submeter a qualquer delas, exceto a seu pendor espontâneo. E logo descobriu um meio de colocá-lo a serviço de muitos.  Desenvolveu uma prática específica para tratamento dos mais variados problemas mentais. Sua capacidade passou a ser testada até nos casos mais graves de distúrbios psicológicos e psiquiátricos. Acabou fazendo demonstrações terapêuticas até na Suíça.
            No programa de intercâmbio com estudantes estrangeiros da UFMG, vieram três estudantes de medicina francesas que trouxeram notícia do Chico Xavier e quiseram vê-lo. Em vez de levá-las a ele em Uberaba, levei-as à Zulmira, que as conquistou de pronto com uma bandeja de pão de queijo. Meia hora depois, elas estavam lá na cozinha recebendo uma aula prática de como manipular a iguaria mineira. A seguir, na Clínica Boa Esperança, do psiquiatra Armando Leite Naves, a família de um jovem em grave agitação autorizou que o atendimento da Zulmira fosse presenciado pelas francesas e por mim. A rapidez com que a agitação foi transformada em mansuetude nos deixou boquiabertos. O mais impressionante foi que, para isso, a Zulmira recebeu o espírito da mãe do paciente, estando esta bem viva lá na sua residência.
            Participei de outro episódio igualmente admirável. A Zulmira pediu que levasse meus meninos para saborearem o pão de queijo que já estava no forno. Quando chegamos, ela atendia alguém numa emergência. Seu trabalho era receber urgentemente o espírito do Joaquim.  Este veio, mas não foi reconhecido pela consulente. Era porque a Zulmira supôs tratar-se do Joaquim do tio Lela, na época auxiliar na farmácia do Spencer. Corrigido o engano, o caso foi resolvido, mas não para mim. Deixei os meninos ali e fui rápido para a farmácia. Lá estava o Joaquim atendendo alguém. Perguntei ao Spencer que sucedera ao Joaquim meia hora atrás. Ele respondeu com outra pergunta: “como você soube?, achei estranho, ele estava fazendo algo, sentiu-se meio zonzo e sentou-se ali”. Estava confirmado então que o espírito do Joaquim o deixara, para breve visita até a casa da Zulmira.
            Diante disso, dei à Zulmira uma tarefa de historiadora. Pedi que recebesse o espírito do Padre Vítor e lhe perguntasse se o Milton Nascimento era a reencarnação dele. Isso seria incluído em meu livro O RISO DOURADO DA VILA. A resposta veio positiva, mas um tanto evasiva. Anos depois estávamos na fazenda da Jaguara e meu grande amigo e colega Ajax fotografou a igreja local. Na foto apareceu inexplicavelmente um senhor vestido de bandeirante sentado na soleira. Pensei: só pode ser o espírito do Borba Gato. Pedi à Zulmira que recebesse a alma deste, para que ele próprio confirmasse minha hipótese.  Ela se recusou, alegando que eu não acreditava naquilo e estava apenas fazendo literatura. Confessei que sim e pedi desculpas. Dois dias depois, ela sonhou com o Borba Gato e este então lhe disse que a foto não era dele, mas do homem que ele matou naquele lugar, chamado Rodrigo Castelo Branco.
            Afinal, não posso deixar de mencionar o caso da própria Zulmira. Ela foi acometida de forma grave da síndrome de Guillain-Barré e fiquei consternado com sua ampla paralisia.  Dentro de poucos meses ela estava andando lépida. Seu neurologista me disse que nunca vira nada igual e eu disse o mesmo. Perguntei à ex-paciente qual era o segredo daquilo. Ela sorriu e falou: sei que você sabe muito bem...
            Na escolha do nome Zulmira para a filha, a tia Licínia estava interessada em beneficiar o lindo bebê com uma madrinha muito rica. O convite foi para a dona Zulmira Augusta de Barros, a tia-avó da criança, que não tivera filhos e, segundo o costume da época, cada afilhado seria herdeiro. A madrinha Zulmira tinha carinho único, verdadeiro xodó, para com a afilhada Zulmirinha.  Quando esta aprendeu a falar, a primeira coisa que pediu à dindinha foi tomar banho no imenso tacho de cobre da fazenda. A tia Zulmira permitiu o banho e acrescentou que a garotinha herdaria o tacho. Quando foi aberto o testamento, o tacho sequer foi mencionado. E mais nada foi deixado para a afilhada predileta. Isso reforçou os rumores de que, ainda no cartório, houve adulteração do testamento. Hoje a afilhada relembra o ocorrido sem qualquer mágoa e ainda o recheia com os floreados mais engraçados.





             

terça-feira, 17 de outubro de 2017

PAULO MADUREIRA DE PÁDUA  - HIERARCA DA REUMATOLOGIA BRASILEIRA


João Amílcar Salgado
     As turmas de medicina formadas na UFMG nos anos de 1960 e 1961 eram tão pequenas e o currículo médico era tal que ambas conviviam como uma só turma. Assim, dois de meus maiores amigos, durante e após o curso, foram o Paulo Madureira de Pádua, de Conceição do Mato Dentro, e o Rubens Nery Simões, de Brasília de Minas. Sendo eu sulmineiro, nós três passamos a viver uma amizade de integração cultural entre três regiões distintas de Minas. O Paulo, entretanto, sendo ligado aos Páduas de Lavras, acaba sendo também meu parente, pois meu trisavô Vicente Ferreira Costa integra o matricial tronco lavrense dos Costa-Pádua-Sales.
     O Paulo Madureira foi um jovem cheio de leitura, muito atento às políticas nacional e mundial e sempre crítico para com os homens públicos, sobre os quais exibia informações privilegiadas, que lhe eram repassadas por um conterrâneo, seu confidente, o José Aparecido de Oliveira. Foi por intermédio do Zé Aparecido, então secretário de cultura do Tancredo Neves, que o Paulo trouxe grande apoio a nosso Centro de Memória da Medicina.
    Antes de graduar-se, o Paulo prenunciava seu brilho, por rara preocupação em buscar iniciação científica, escolhendo ser aprendiz junto a nada menos do que José Noronha Peres, então o maior virologista do país. Apresentou sua pesquisa inicial em memorável convenção no Rio Grande do Sul. Fui honrado para participar da banca examinadora do concurso pelo qual o Paulo Madureira se tornou professor titular de reumatologia da UFMG. Em minha apreciação, tive oportunidade de repassar sua carreira, a partir de, quando recém-formado, foi inaugurar, ao lado de Achiles Cruz Filho, o setor de reumatologia da cátedra de Caio Benjamim Dias – à época localizada no Hospital da Cruz Vermelha.
     Éramos de andares vizinhos, pois no 4o ficava o serviço do professor Caio e no 5o ficava o do professor João Galizzi, de que eu participava. Assim nossa amizade estudantil se prolongou em frutífero companheirismo docente, sendo que ali tínhamos como abalizado mentor nosso queridíssimo Luiz Cisalpino Carneiro, em bate-papos acalorados e hilariantes. Participavam dos debates sobre temas gerais, entre outros, Alberto Paolucci, Douglas Andrade, Naftale Katz, Emílio Grinbaum, Cid Veloso e Carlos Alberto Barros Santos.
      Esse grupo de auxiliares do Caio e do Galizzi foi denunciado como subversivo logo depois do golpe de 1964, mas não era fácil para os denunciantes persegui-los. A cada dia figuras proeminentes estavam ali fazendo exames, aos cuidados do Luiz Carneiro, proclamado por nós o melhor laboratorista de Minas. Eram personalidades que estavam sob stress político, pois eram antigos democratas agora na posição conflitiva de golpistas. Assim cruzávamos ora com Magalhães Pinto, ora com Milton Campos, ora com Pedro Aleixo – e outros.
      Mesmo assim alguns repressores mantiveram a esperança de prender e torturar pelo menos o Luiz, principalmente quando souberam que ele conseguira viagem clandestina a Cuba. O Paulo correu pequeno risco, quando os inimigos de José Aparecido o fizeram cair em desgraça. Gente de Nepomuceno muito ligada ao Paulo são o João de Lima Pádua (cunhado de Lucas Lopes) e Evandro Veiga Negrão de Lima - parentes da Sara Kubitschek. O Paulo não quis beneficiar-se de tais ligações, para fim de cargo ou outra vantagem.  Lembro também que Lucas era irmão de meu grande amigo Hélio Lopes, sobre quem escrevi um perfil com surpreendentes revelações, recolhidas de tal proximidade familiar.
        Paulo e Achiles, colegas de turma, decidiram especializar-se na Alemanha e de lá trouxeram a sólida experiência germânica em reumatologia. Daí que, ao arguir o Paulo, lembrei que seu acabamento de especialista exibia bela harmonia entre três raras qualidades no mesmo clínico: o rigor semiotécnico, o seguro repertório científico da complexa nosologia dos reumatismos e o raciocínio feito de lógica férrea. Foi-me possível, com isso, anunciar ali a reumatologia mineira no devido vértice de invejável posição no país. De fato, Minas Gerais detém a primazia de ter madrugado na atenção aos reumáticos brasileiros, por meio de nossas estâncias hidrotermominerais. Veio a seguir a formalização da reumatologia nacional pelo mineiro Pedro Nava, ligado à escola francesa.
        Do Rio de Janeiro, Nava disseminou-a por vários centros, sendo seu procônsul mineiro o Geraldo Guimarães da Gama, entusiasta de nosso grupo de naveanos. E, para coroar, Minas foi brindada com o referido complemento, salutar e indispensável, da reumatologia alemã. Ao longo do tempo, o eminente professor Paulo Madureira de Pádua, graças a sua natural liderança universitária, gerou sua própria linha de discípulos, aplaudida pelos pares de fora de Minas. E assumiu com espontaneidade a grave responsabilidade de ser a principal referencia científica e clínica, exatamente no Estado que detém aquele privilegiado cabedal histórico da especialidade. É um dos diversos nomes (entre os quais Baeta Viana e Liberato DiDio), que injustamente não foram agraciados com o título de professor emérito.

 O autor João Amílcar Salgado é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais e criador do Centro de Memória de Minas Gerais

domingo, 15 de outubro de 2017

ILUSTRE FARMACÊUTICA MARIA ILCRAM VILELA

MARIA ILCRAM VILELA 

 Não existe ninguém que se interesse mais por outro ser humano do que este ser imensamente humano chamado Ilcram. 


 João Amílcar Salgado 

      Minha primeira lembrança da Ilcram foi numa roda de meninas em volta da Fina. Serafina era o nome desta, criada por minha avó Amélia. Eu, que convivi com educadoras e educadores extraordinários, coloco minha madrinha Fina entre a mais alta hierarquia deles. No caso, a Fina estava ensinando a arte do tricô às netas da Sá Amélia. Cheguei-me ao grupo e a Ilcram, toda loira e graciosa, me chamou para aprender tricô. Respondi que eu era homem e homem não fazia tricô. Ela insistiu: é tão fácil que até homem aprende! E veio passando o fio de lã por meu pescoço e me entregando as agulhas. Não protestei, porque senti que aquilo era o jeito que minha linda prima achou para me dar um abraço. 

       Nos anos 50, o concurso de miss fica popular e o coadjutor padre Virgílio, em contraponto, cria uma espécie de concurso para moças católicas. O sucesso veio da beleza das concorrentes e fiquei muito feliz de ver no palco duas primas, moradoras da praça da matriz. Eram a Zélia da tia Adélia e a Ilcram do tio Lela. O padre foi diplomático, porque não houve uma miss e todas alcançaram o primeiro lugar. Para nós, a escolher uma, esta estaria entre a Ilcram e a Zélia, de fato dois tipos de igual beleza. 

     Quando a Ilcram entra na UFMG, a escola de farmácia havia adquirido a fama de alunas bonitas. Nas férias ela chegava com uma a três beldades em Nepomuceno. A casa ficava festiva e meus tios as recebiam como filhas. Uma delas me confessou que jamais conhecera um lar como aquele. Ali, o prazer em agradar era sem fim e tudo muito risonho. Quando a Ilcram fica noiva, fiquei maravilhado com o noivo. O Spencer era nada menos que o irmão da Beatriz, minha querida paraninfa no Colégio Estadual. Outra grata revelação foi a saga daquele clã de farmacêuticos. O Spencer é filho de um farmacêutico e professor – e eu também. Demais, meu pai foi colega de Carlos Drummond, na mesma faculdade do Spencer e da Ilcram. Além disso, o Drummond foi professor no colégio do pai do Spencer. Afinal, a Ilcram, o Spencer e eu comungamos a circunstância de termos sido crianças curtidas no ambiente das farmácias antigas, principalmente o aroma dos ingredientes de poções, láudanos e elixires magistrais. 

      Tenho o privilégio de conhecer algumas das bondades secretas da Ilcram. Ela as esconde de todos, mas não conseguiu evitar que eu as descobrisse. Se um parente ou um amigo está em dificuldade, ela tanto faz que acaba achando um meio de ajuda. Não estou autorizado a revelar exemplos e nem devo, mas de um caso posso falar por ser humorístico. A prima dela era casada com o Hélio, ótima pessoa, mas danou a beber. Os pais dele eram caseiros de nossa chácara e fui médico deles. Os filhos preferiam usar o sobrenome da mãe que era Garcia. 

     A Ilcram decidiu recuperar o Hélio. Ele viria para a casa dela e, enquanto trabalhasse ali, não beberia e ganharia bem. Escreveu o endereço, comprou-lhe o bilhete do ônibus e lhe deu o dinheiro do táxi. Ele chega à rodoviária, mas o endereço ele perdeu e o dinheiro também. Pensou: a Ilcram e o Marcli são pessoas importantes e são conhecidos de muita gente. O guarda percebeu que ele incomodava a cada passante, indagando onde morava a Ilcram ou o Marcli. Aproxima-se do importuno: Seu nome, por favor. Resposta: Hélio Garcia. O guarda ironiza: Então estou falando com o governador de Minas Gerais?... E o Hélio: Sou primo dele. A sorte foi que a revista feita nos bolsos do Hélio foi tão bem feita que a carteira de identidade foi achada e lá estava escrito Hélio Garcia. O nepomucenense se livrou desta, mas, como não sabia sair dali, entrou na lanchonete. Aquele senhor de cara afável ali no balcão parecia ser o dono da loja. Perguntou: O senhor conhece o Marcli? Espantosamente, o homem abriu um sorriso: Se for meu grande amigo Marcli Vilela, conheço muito! Deu ao Hélio um lanche e pagou o táxi, que rumou não para a casa da Ilcram, mas para o endereço do Marcli. Este quis reembolsar o amigo, que recusou com a seguinte justificativa: Não é todo dia que a gente pode fazer um agrado a um governador... 

       Para terminar, deixo aqui o registro de minha mais alta gratidão à Ilcram e à Tia Mariinha. Minha tia Licínia e minha mãe me proibiram relatar, no livro O RISO DOURADO DA VILA (2003), o épico episódio inaugural da lua de mel dos nubentes Lela-Mariinha. E não é que a própria noiva e a Ilcram me autorizaram plenamente a transcrição? Hoje sei que isso foi um dos fatores do sucesso dessa publicação, que logo se esgotou e aparecerá agora em segunda edição. 

 Texto comemorativo dos 80 anos da ilustre farmacêutica Maria Ilcram Vilela, em 14/10/2017