O LIVRO O ÍNDIO BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO FRANCESA
DE AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
80 ANOS
DE SUA PUBLICAÇÃO
João Amílcar Salgado
INTRODUÇÃO
Em 1937 Afonso Arinos de Melo
Franco (1905-1990) publicou O ÍNDIO BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO FRANCESA.
Este livro talvez seja o golpe mais vigoroso jamais infligido ao colonialismo cultural, no qual se comprometeu
e ainda se compraz a maioria dos intelectuais brasileiros. E é obra tanto mais notável quanto se sabe
que o autor aparentemente nascera para se somar à galeria pedante de nossos
aristocratas letrados, portador de todos os requisitos de um caudatário a mais
do pensamento eurocêntrico. Felizmente, o contrário se deu. E afinal com
nenhuma surpresa diante da nobilitante coerência exibida por gerações de sua família. Ainda no século 18, o médico
Francisco de Melo Franco afrontou a Universidade de Coimbra, apelidando-a de
REINO DA ESTUPIDEZ, com o requinte de ser um libelo em versos clássicos. Mais tarde, o primeiro Afonso Arinos, com o
livro PELO SERTÃO, de 1898, foi eminente pioneiro no temário de nossa
identidade nacional, prenunciando OS SERTÕES de Euclides da Cunha (1902)
e o GRANDE SERTÃO: VEREDAS de Guimarães Rosa (1956). E o próprio Afonso Arinos de Melo Franco,
sobrinho do primeiro, já cuidara, antes de 1937, de temas semelhantes: INTRODUÇÃO
À REALIDADE BRASILEIRA (1933), PREPARAÇÃO AO NACIONALISMO (1934) e CONCEITO
DE CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA (1936). Mais tarde, tal coerência se estenderia à
sua POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE, que começou a implantar como Ministro
das Relações Exteriores, nos fugazes meses do governo Jânio Quadros e do regime
parlamentarista. Demais, foi o primeiro investido nesse cargo a visitar o
continente africano e ali foi saudado como o autor da primeira lei anti-racista
de nosso país.
O LIVRO
Em O ÍNDIO BRASILEIRO E A REVOLUÇÃO FRANCESA,
Afonso Arinos procura documentar que o iluminismo francês se inspirou na
cordialidade, na afabilidade e na docilidade do índio encontrado pelos europeus
no Brasil, donde surgiu a concepção teórica da bondade natural. O autor, inclusive, sentiu a necessidade de
acrescentar um subtítulo ao livro: AS ORIGENS BRASILEIRAS DA TEORIA DA
BONDADE NATURAL. Esta teoria é uma
das formulações iluministas que se contrapunham, de modo escandaloso, ao
pensamento estabelecido até então.
Contrariava gritantemente a tendência de qualquer cultura para se
considerar superior às demais. Os termos selvagem, selvageria, bárbaro e
barbárie, bem como incivis, incivilizados, não-educados, brutos, estúpidos,
ferozes, animalescos e bestiais, são adjetivos e substantivos preferidos para
denotar de modo pejorativo os estrangeiros e seus costumes, principalmente
quando se quer demarcar a superioridade
de quem os denigre. Para maior contraste, aqueles que empregam tais termos se
autodenominam, em geral, civilizados ou educados. De fato, a bondade inesperada
de nossos índios está registrada no próprio texto inaugural de Pero Vaz de
Caminha: esta gente é boa e de bela simplicidade. ... Nosso Senhor lhes deu bons
corpos e bons rostos, como a homens bons. Segundo Arinos, há uma relação direta entre a
idéia da bondade natural vinda do Brasil e a DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO HOMEM
E DO CIDADÃO proclamada pela Revolução Francesa e aprovada em 17 artigos
pela Assembléia Nacional da França, em 1789, que tem por artigo 1o : Os
homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais
não podem ser fundadas senão sobre a utilidade comum.
CONTEXTO DA OBRA
A
notícia do livro deve ter impressionado os franceses, pois Afonso Arinos o
publicou em português, em 1937, e, em 1939, já ministrava curso na Sorbonne
sobre CULTURA BRASILEIRA. Justo nessa época, o mesmo Arinos era membro
da célebre elite convocada pelo médico Pedro Ernesto para criar a UNIVERSIDADE
DO DISTRITO FEDERAL, da qual fazia parte, entre outros, três outros
mineiros influentes: Abgar Renault e os também médicos Silva Melo e Baeta
Viana, este guindado a reitor. O grupo de fato era de notáveis, como Anísio
Teixeira, Gilberto Freire, Mário de Andrade e Cecília Meireles. Tanta gente
pensante e altiva, reunida sob o mesmo teto, deve ter atemorizado Getúlio
Vargas, que, logo após o golpe de estado, fechou a Universidade em 1938, quando
ela engatinhava e nem tinha três anos de vida.
Antes, Afonso
Arinos, como recém-formado em direito, viera ser promotor em Belo Horizonte e
aqui entrou para a turma de Pedro Nava, Carlos Drummond, Emílio Moura, Abgar
Renault, Gustavo Capanema e Milton Campos interessados em literatura e voltados
para o modernismo de Mário de Andrade.
Outros intelectuais, ligados a esse grupo, porém mais voltados para a política e engajados na trama
da Revolução de 1930, eram Virgílio de Melo Franco (irmão de Afonso), os
Pinheiro Chagas (dois dos quais médicos) e Francisco Campos. Podemos dizer que,
assim como, entre os modernistas paulistas, surgiram o grupo nacionalista Pau
Brasil e o subgrupo direitista do integralismo, no grupo de Belo Horizonte,
surgiram o grupo de artistas (Drummond, Abgar, Emílio, Nava e outros), o grupo
de políticos (Virgílio, Arinos, Capanema,
Campos e os Pinheiro Chagas).
Aqui houve semelhante subdivisão entre um nacionalista liberal (Afonso
Arinos) e um direitista (Francisco Campos).
Por outro lado, na turma da referida Universidade, Arinos deve ser
colocado ao lado de Gilberto Freire, sendo o mineiro a vertente política e o
pernambucano a vertente sociológica da busca da identidade nacional.
É importante
considerar a marginalização política do irmão Virgílio de Melo Franco,
empreendida por Vargas, e seu efeito sobre a carreira de Afonso Arinos. Aqui é
inevitável especular que se Virgílio tivesse ocupado o lugar de Valadares na
direção de Minas, não teria havido o golpe de 1937 e a Universidade do Distrito
Federal existiria até hoje, sendo outros o papel político de Afonso e sua contribuição
ao desenvolvimento acelerado do Brasil, até mesmo na condição de nação-líder,
como tentou fazer tardia e frustradamente depois.
ATUALIDADE DA TESE
Fatos históricos conhecidos após 1937 não só
reforçam a tese de Arinos, mas sugerem ter havido uma espécie de “má vontade
européia” para esmiuçar o tema. O desinteresse estaria ligado também a
protagonistas judeus da Península Ibérica, refugiados em locais hoje situados
na França e nos Países Baixos. Essa
postura discriminatória pode ter sido adotada não só por historiadores em
geral, mas, paradoxalmente, por historiadores judeus, neste último caso por
causa da conhecida tendência entre cristãos-novos ibéricos e seus familiares em
colocar sua sobrevivência acima da preservação da identidade judaica. Com tal perspectiva, passamos a enumerar
alguns subsídios não explícitos no texto de Arinos e que são notável
confirmação de sua tese. Para corroborá-los, convém lembrar que especulações
heurísticas indicam que o iluminismo seria a sequência imediata do renascentismo,
mas a interceptação da contra-revolução barroca retardou por pelo menos um
século esse decurso mais que lógico e natural.
Nessa perspectiva, cresce a importância de Montaigne e Descartes como
iluministas antecipados.
O MEIO-LUSO MIGUEL DE MONTAIGNE
É inestimável
o tributo que o iluminismo deve a Miguel Eyquem de Montaigne, nascido na
região de Bordeus, França. Afirmamos
mesmo que o pessimismo de Montaigne, em relação ao progresso social é
indissociável da idéia da bondade natural. Se é o caso, então qual seria a
relação entre Montaigne e a notícia sobre os índios brasileiros? Ora, a mãe de Montaigne era portuguesa,
Antonieta Lopes, e seu secretário havia estado com Villegaignon no Rio de
Janeiro. Bastam esses dois fatos para que seja feito estudo minucioso da
correlação entre a ascendência lusitana do ensaísta, de um lado, e, de outro, a
França Antártica, Jean de Léry (divulgador da bondade natural) e o conteúdo dos
ENSAIOS.
FRANCISCO SANCHEZ E RENÉ DESCARTES
O racionalismo peculiar ao iluminismo está
diretamente relacionado a Descartes. Entretanto, é pouco conhecida a curiosa
ligação entre o francês Descartes e o médico português Francisco Sanchez. Para
os que sabem do pensamento de Sanchez há uma proximidade entre o CÓGITO de
Descartes e o CÓGITO de Sanchez. Como
este precedeu aquele, há a suspeita de plágio ou no mínimo de espantosa
coincidência.
O MISTERIOSO DOCTEUR SILVA
Sabe-se que o iluminista
Voltaire, assim como Montaigne, era
avesso aos médicos. Havia, entretanto, um médico,
Jean Baptiste Silva (1682-1744), no qual confiava e este era de origem
portuguesa. Descendia de portugueses judiados em Portugal que se refugiaram em
colônia próxima a Bordeus. Era perseguido pelos demais médicos, que o acusavam
de judeu, e isso o fazia mais ainda assediado pelos clientes. O rei Luís 15, ao
ser coagido a agir contra Silva, lembrou que, se o adversário dos médicos o
tinha como competente, ele, o rei, o queria para si. E o fez médico da corte.
O PEDAGOGO JEAN JACQUES ROUSSEAU
Rousseau,
suiço de origem judáica, foi o mais radical dos iluministas e aquele que fez a
ligação mais direta entre a bondade natural e as propostas revolucionárias. E a
mais revolucionária destas idéias é a proposta pedagógica contida em seu livro EMÍLIO.
Nela ele defende que a criança seja criada como selvagem até os doze anos e só
depois submetida à escola, estando esta coerente com a primeira etapa. Com isso
todas as potencialidades psíquicas seriam preservadas contra qualquer inibição,
de tal maneira que todos os homens assim educados seriam altamente inventivos,
livres e insubmissos. Estariam, então, em condições de serem protagonistas de
um progresso sem igual em uma sociedade
nova.
FRANÇOIS MAGENDIE – O “EMÍLIO”
REAL
O pai de
François Magendie era médico e também habitava próximo a Bordéus. Quando leu o EMÍLIO,
decidiu que seu filho seria educado como um Emílio. De fato o
próprio Magendie se imbuiu de tal maneira de seu modelo teórico que exerceu
formidável papel na revolução científica causada pelo iluminismo. Deu início a
uma linhagem de cientistas que mudariam a face não só da ciência mas da
sociedade, a começar por seu igualmente revolucionário discípulo Claude
Bernard.
CLAUDE BERNARD - A CIÊNCIA MODERNA LEVADA À SOCIEDADE
Claude Bernard está para Magendie assim como Napoleão
está para Robespierre, ou seja, se
Magendie foi o Robespierre da ciência, Bernard foi seu Napoleão. Bernard não
inventou a ciência nem sequer criou a ciência fisiológica ou a farmacologia.
Seu papel foi estatuir em ideologia o método científico já utilizado desde
Herófilo, Galileu, Vesálio, Harvey e Morgagni. Quando Emile Zola adota e propõe
essa ideologia também para as artes (romance, música e pintura), toda uma
revolução inventiva, semelhante à idéia de Rousseau, se põe a caminho e chega
até o século 21. Interessa acrescentar
que, na obra científica de Bernard, há um dado a mais que diz respeito ao
Brasil, pois algumas de suas pesquisas cruciais foram feitas com um produto
indígena da Amazônia: o curare.
HELENA ANTIPOFF E O RETORNO DE ROUSSEAU
A
vinda da russa Helena Antipoff para Minas Gerais, em 1929, estado natal de
Afonso Arinos, representa um retorno apropriado do Emílio de Rousseau ao
local de origem da bondade natural. Estando ela no Instituto Jean Jacques
Rousseau, em Genebra, foi convidada para vir ao Brasil, onde foi a principal
figura da revolução educacional operada em Minas Gerais. Ora,
sendo Minas Gerais a terra de Afonso Arinos de Melo Franco, nada mais
apropriado que esta notável educadora nos viesse retribuir com o fruto daquilo
que seu ancestral pedagógico daqui extraiu: a idéia da bondade natural de nosso
indígena.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BRITO, A. M. R..Francisco Sanches,
médico, professor e pedagogo. Braga : Bracara; 1952.
CAMINHA, P.V.. A carta de Pero Vaz de Caminha. São
Paulo: Moderna; 1999.
DESCARTES,
R.. Discurso sobre o método. Tradução. São Paulo: Atena, 1954.
FRANCO,
A.A.M.. O índio brasileiro e a revolução francesa. Rio: José Olympio; 1937.
LERY, J.. História de uma viagem à terra do Brasil.
Tradução. São Paulo: Nacional, 1926.
OLMSTED,
J.M. D.. Claude Bernard and the experimental method in
medicine. Toronto: Schuman;
1952.
OLMSTED, J.M.D.. Francois Magendie: pioneer in
experimental physiology and scientific medicine in
nineteenth
century France.
Montana:
Kessinger; 2007.
PECKER,
A.. La médecine à Paris du XIIIe au XXe siècle. Paris: Hervas, 1984.
ROUSSEAU, J.J.. Emílio ou da educação. Tradução. São
Paulo: Martins Fontes; 2005.
JOÃO
AMÍLCAR SALGADO é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História
da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.